Família multiespécie na visão ecossistêmica
Nascemos e descendemos de uma família biológica, onde aprendemos a cultivar os primeiros vínculos afetivos.
No caminhar pelas estradas da vida, certas pessoas ganham especial importância, quando se revelam grandes afinidades, e as reconhecemos como irmãs ou irmãos, pais e mães do coração, formando assim uma família afetiva!
Há quem goste de ter a companhia de plantas dentro de casa. Conversam com elas enquanto regam, retiram folhas secas com carinho, adubam e tratam de fungos e parasitas. Algumas espécies perfumam, outras servem para cozinhar, muitas possuem propriedades terapêuticas e há aquelas que são tão sensíveis, que podem até secar diante do olhar de visitas invejosas.
Quando perdem a vitalidade, ficam murchas. Tem gente que fica triste por isso, enquanto outras nem se importam de jogá-las no lixo. As plantas nos ensinam sobre o afeto, a despedida, o desapego e, muito mais. Temos então a interação de seres do reino hominal com seres do reino vegetal.
Além das plantas, em muitos lares, cães, gatos, aves, peixes entre outros animais de companhia, vão conquistando cada vez mais corações das pessoas que os acolheram, formando afetuosos laços de ternura. De acordo com dados do IBGE de 2021, há 149,6 milhões de animais de estimação no Brasil.
Temos assim, as famílias multiespécies, com seres dos reinos vegetal, animal e hominal, interagindo sob o mesmo teto, compartilhando a rotina diária. De acordo com Gazzana e Schmidt (2015), esta configuração consiste em um grupo familiar, “composto por pessoas que reconhecem e legitimam seus animais de estimação como membros da família.”
Pesquisa feita pela empresa alemã GFK entrevistou 27 mil pessoas em 22 países. O resultado revelou que as famílias da América Latina possuem mais animais de estimação do que as da América do Norte, Europa e Ásia, destacando-se assim: Argentina (82% das famílias), México (81%) e Brasil (76%). Os preferidos foram: cães (33%), gatos (23%), peixes (12%) e aves (6%), conforme Rossini (2022) in Revista Super Interessante (2022).
Gazzana e Schmidt (2015) mencionam que “muitas vezes, tais animais acabam por assumir o papel de um membro da família, tanto em relação às pessoas que vivem sós (domicílios unipessoais), quanto em famílias com ou sem filho.”
Segundo Faraco (2008) e Sarandy (2015), em citação de Vieira e Cardin (2017), os seres humanos tendem “a perceber os animais de estimação como seres frágeis e dependentes de seus tutores, tal como ocorre com as crianças.”
Sim, é comum ouvirmos as pessoas empregarem um tom de voz infantil quando conversam com seus pets, dar brinquedos e chamá-los de “meu bebê”!
Mas, será que eles gostam desta forma de tratamento? Por intermédio da comunicação telepática com alguns cães e gatos (inclusive com o felino que me adotou), vários me disseram que não gostam, outros disseram que não ligam.
Segundo Verzemiassi (2023), no artigo publicado em Aurum Portal: (...) “os laços afetivos, construídos entre seres humanos e seus animais, passaram a traduzir um fenômeno sociocultural, que exigiu mudanças no Judiciário Brasileiro”, e cita o Projeto de Lei nº 27/2018, uma emenda à Lei nº 9.605/1998, aprovado no Senado Federal.
Este PL determina que os animais possuem natureza jurídica sui generis, e que “são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, seno vedado o seu tratamento como coisa.”
A Áustria foi o primeiro país a aprovar uma lei federal sobre o estatuto jurídico dos animais, em 1988, afirmando que não podem ser vistos como “coisas”. Na sequência, foi a Alemanha. Em 2003 foi a vez da Suíça, prevendo indenização no caso de ferimento ou morte dos animais de companhia. E, em 2015, na França, a legislação penal vigente foi modificada, passando a considerá-los como seres sencientes (Ximenez e Teixeira, 2018).
Abordamos as emoções e os sentimentos de cavalos, lobos, macacos e pets no artigo: Animais têm alma, sentimentos e direitos como você e eu? — Jus Animalis.
Terni (2023) menciona mais três projetos de lei no Brasil:
- PL 1289/2019, que estabelece normas para o transporte de animais de estimação em veículos automotores;
- PL 145/2021, o qual permite que os animais figurem individualmente como parte, em processo judicial; e
- PL 179/2023, que prevê uma série de direitos para os animais de estimação, e regulamenta o conceito de família multiespécie.
Temos muito que avançar e amadurecer na aprovação de instrumentos legais, de maneira sensata. Inclusive, urge aprovação do governo federal para que as despesas com consultas e clínicas veterinárias sejam deduzidas do imposto de renda dos tutores, considerando que são seus dependentes.
Terni (2023), no mesmo artigo, cita que “o modelo de Família Multiespécie representa uma mudança na forma como as pessoas veem, convivem e tratam os animais, e como são integrados à vida em sociedade. Essa mudança “reflete uma maior conscientização sobre a importância do bem-estar animal e da convivência harmoniosa entre diferentes espécies”, além de reforçar a ideia de que “esta relação pode ser baseada no respeito, no cuidado e no amor mútuo.”
Enaltecendo a relação de harmonia entre seres de diferentes espécies, vemos diversas matérias na mídia mostrando cães e gatos dormindo juntos “de conchinha”, cadelas adotando filhotes órfãos de outros mamíferos etc.
Tal qual ocorre nas famílias, biológica e afetiva, seus membros apresentam personalidades diversas: dóceis ou encrenqueiras, altruístas ou egocêntricas, sociáveis ou ciumentas, e o mesmo percebemos nos pets.
Conflitos, doenças e velhice fazem parte de todos os tipos de famílias! Nem todos os pais, mães, filhos, netos e tutores praticam as virtudes da paciência, da tolerância, da compreensão, da aceitação e da resiliência para com seus semelhantes, assim como vemos nos animais para conosco.
Pesquisa realizada pelo Instituto de Medicina Veterinária do Coletivo – IMVC (Silva, 2023) demonstrou que, entre os motivos que levam ao abandono do pet estão: não ter disposição física para tomar conta, falta de tempo para cuidar como gostaria, e comportamento inapropriado (do cão ou gato).
De fato, muitos humanos adquirem um bichinho lindo, imaginando que se comportarão como meigos robozinhos obedientes, e se decepcionam com o passar das semanas. Infelizmente, existem muitos casos de agressão, quando perdem a paciência e descontam nos bichinhos suas raivas e frustrações.
Temos que considerar ainda que há quem não disponha de verba (ou não queira dispor), para os necessários cuidados com consultas, castração, vacinação, exames periódicos, medicamentos e rações especializadas.
Este estudo do IMVC revelou que há 30,2 milhões de cães e gatos abandonados no Brasil, dos quais 185 mil estão em abrigos (Silva, 2024). Entre as possíveis soluções apresentadas pelos tutores, destacamos: combater a crueldade animal, oferecer cuidados veterinários gratuitos e esterilização.
Ainda bem que há seres humanos maduros que, por amor, tudo toleram, não procuram os próprios interesses, nada fazem de inconveniente, não se irritam, tudo desculpam e cuidam com carinho dos seus entes queridos, de duas pernas ou de quatro patas, até o último suspiro!
Concluindo, precisamos amadurecer muito mais nesta relação com outras espécies, para vê-los como partes de uma grande irmandade! Transmutar a visão de posse, de ser utilitário, de sacrificá-los em oferendas, e de humanização.
Na visão ecossistêmica de família multiespécie, valorizemos as tradições ancestrais dos povos originários, passadas dos anciãos para os jovens, ensinando que a fauna e a flora, os rios e as montanhas, a Terra e o Sol são partes integrantes de uma mesma família pluriversal.
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Referências bibliográficas
Gazzana, C. e Schmidt, B. Novas configurações familiares e vínculo com animais de estimação em uma perspectiva de família multiespécie. In: III Congresso de Pesquisa e Extensão da FSG I Salão de Extensão & I Mostra Científica. In: http://ojs.fsg.br/index.php/pesquisaextensao ISSN 2318-8014. Caxias do Sul – RS, 15 a 17 de setembro de 2015.
Rossini, M.C. Quais países têm mais animais de estimação. Revista Super Interessante. Julho/2022. In: https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/quais-paises-tem-mais-animais-de-estimacao/. Acessado em julho/2024.
Silva, A. de Souza. Índice de Abandono no Brasil. Revisado por: Lucas Galdioli. Instituto de Medicina Veterinária do Coletivo (IMVC). Abril/2024. In: Índice de Abandono no Brasil - IMVC (institutomvc.org.br). Acessado em julho/2024.
Terni, A. P. Família Multiespécie. Pais de Pet Sim! Um Novo Modelo Jurídico Familiar. Dezembro/2023. In: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/familia-multiespecie/2111537114. Acessado em julho/2024.
Verzemiassi, S. A família multiespécie e seu contexto de surgimento. Junho/2022. Atualizado em 14 jun 2023. In: Família multiespécie: Confira o que diz a doutrina! (aurum.com.br). Acessado em julho/2024.
Vieira, R. e Cardin, V.S.G. Antrozoologia e Direito: o afeto como fundamento da família multiespécie. Revista de Biodireito e Direito dos Animais. Recebido em: 04.04.2017. Aprovado em:10.05.2017. e-ISSN: 2525-9695| Brasília | v. 3 | n. 1 | p. 127–141|Jan/Jun/2017. In: ANTROZOOLOGIA E DIREITO: O AFETO COMO FUNDAMENTO DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE - CORE Reader. Acessado em julho/2024.
Ximenez, L.R.B. e Teixeira, O.P.L. Família multiespécie: o reconhecimento de uma nova entidade familiar. Revista Homem, Espaço e Tempo, 11(1). 2018 In: FAMÍLIA MULTIESPÉCIE: O RECONHECIMENTO DE UMA NOVA ENTIDADE FAMILIAR | Revista Homem, Espaço e Tempo (uvanet.br). Acessado em julho/2024.