Canções ecológicas e animalistas na MPB: de Erasmo Carlos a Chico César – Parte 3

Lampejos ecológicos na música regional 

Muitos artistas brasileiros regionalistas, atentos aos desastres ambientais oriundos do desmatamento, da poluição, das queimadas e dos crimes contra a fauna e a flora, produziram em diversas regiões do país uma obra admirável e coerente com seus princípios de vida. No repertório do cancioneiro popular, apenas nos anos 80, é possível identificar algumas canções que contêm o apelo das transformações interiores voltadas à louvação da natureza-mãe, consideradas suas múltiplas e quase imperceptíveis faces. Dentre tantos notáveis compositores que dedicaram sua carreira à relação orgânica e natural com o Outro, seja este quem for, gente, árvore, terra, rio, bicho ou planta, quatro merecem um olhar diferenciado: Dércio Marques, Paulinho Pedra Azul, Marlui Miranda e Deo Lopes. Isso porque a obra musical de cada um deles é simplesmente primorosa. 

Autor de discos como Canto forte - Coro de Primavera, Segredos Vegetais, Anjos da Terra, Espelho d´água e Cantos da Mata Atlântica, Dércio Marques exalta a natureza, o cerrado, as estradas, o vento, a arara canindé azul e outros tantos voos e louvores nascidos de sua alma cantadora. Nesses trabalhos autorais o compositor de Rio-Mar e Feito Borboleta, imerso nas melodias harmoniosas que seu violão traz, aventura-se por uma profusão de sons que se assemelham a cânticos dedicados àquilo tudo que o mundo circundante possui e oferece de mais precioso. 

Paulinho Pedra Azul, cujo romantismo foi influenciado pelos conterrâneos do Clube da Esquina, iniciou sua trajetória musical no Vale do Jequitinhonha e se notabilizou com a canção Jardim da Fantasia: “Bem te vi, bem te vi / Andar por um jardim em flor / Chamando os bichos de amor / Tua boca pingava mel”.  Uma das temáticas recorrentes no artista, em suas composições, é a de evocar amores, pássaros e voos, tal qual se vê em Cantiga de Voar e Ave Cantadeira. Na canção Voarás o eu lírico recorre às asas do sonho para tentar encontrar aquilo tudo que procura e deseja: “Todo mundo quer voar / Nas costas de um beija-flor / Todo mundo quer viver de amor / Mas nem tudo é só querer”.     

Marlui Miranda, cantora, compositora e pesquisadora da cultura indígena, lançou em 1983 o LP Revivência, verificando-se desde logo que a artista buscava conexões com outros saberes. Falas de Bicho, Falas de Gente – que reúne 49 cantigas de ninar juruna, entoadas pelos bichos-gente da cosmologia ancestral da tribo - é um dos trabalhos marcantes em sua carreira, que lhe rendeu em 2015 o Prêmio da Música Brasileira Regional. Mas a canção ecológica símbolo de Marlui Miranda, composta em parceria com Marcos Santilli logo na estreia de sua carreira, chama-se Mata. O interessante jogo de palavras representado em seus versos é um libelo em favor da floresta em pé: “Moto serra / rapa a mata / rasga a serra / rompe o verde / mata o tronco / muda a terra / motoserra”.

 No início daquela década surge também, no cenário da música regional brasileira, o cantor e compositor Deo Lopes, cuja obra se consolidou nos discos autorais Voar (1980), Canticorda (1982), Certos Caminhos (1984), Relação Natural (1988), Noite cheia de estrelas (1993), na coletânea Tesouros da Terra (1988) e nos CDs Sambeiro (2008) e Concerto Sentido (2022), além de trabalhos exitosos com o grupo Trem da Viração. A principal composição ecológica sua, em parceria com Célio Piazza, vai ao encontro da consciência ambiental que despontava no país e se intitula Tesouro da Terra (1984). Os versos dessa canção falam de uma natureza vilipendiada e que pede socorro, na esperança de salvar, reviver e respirar. A mensagem da música é toda ela voltada a um mundo que se busca reconstruir. Pela voz do artista, o tema da proteção do ambiente e dos animais ressurge com a força de sua simplicidade transcendente:

  

Estive aqui um século atrás, vim por caminhos altos astrais

Da bola azul eu pude sentir a natureza toda fluir 

Da harmonia das constelações às verdejantes plantações

E os passarinhos cantavam em coro toda alegria deste tesouro

(...)

Tanta água correu no leito do rio, trilha de terra hoje meio fio

E a natureza por um fio, toda beleza da constelação

A brisa das matas, pra respiração, tudo retrata em cada canção

E os passarinhos cantam em cor, chorando o finzinho desse tesouro!

Deo Lopes, que já havia incorporado em seu repertório a canção Voarás, de Paulinho Pedra Azul, assim como Ponto de Cruz, de Dércio Marques e Gildes Bezerra, também gravou Sabiá, de Silene Araújo e Olivio Araújo. Isto se deu na abertura do LP Relação Natural, lançado coincidentemente no mesmo ano em que a Constituição Federal era aprovada com um capítulo exclusivo dedicado ao meio ambiente e à proteção dos animais. Nunca é demais lembrar que a música Sabiá, que trata do sofrimento dos pássaros aprisionados pelo homem, assume um caráter pedagógico pela mensagem compassiva que traz em seus versos: 

Sabiá viajando preso na gaiola, muito triste com vontade de voar

Vai levado do sertão para a cidade por alguém que quer seu canto apreciar

Passarinho a sua dor ninguém consola, o seu pranto é canto que me faz pensar

É bom viver em plena liberdade, eu não sei porque se prende um sabiá

Eu não quero água fresca na gaiola, nem ração que possa me alimentar

Quero ter de volta minha liberdade, escolher onde voltar para cantar

Quero voar voar voar voar voar, quero ser livre pra cantar

Minhas asas traçarão o destino para o céu alcançar, ao voar”

Razão e sensibilidade em Chico César

Autor de consagradas canções como Mama África, À Primeira Vista, Onde Estará o Meu Amor, Pensar em Você e Deus me Proteja, Chico César formou-se em jornalismo, mas se dedicou profissionalmente à música. Em meio à carreira iniciada em 1995 gravou um CD promocional contendo uma composição ativista de sua autoria, intitulada Odeio Rodeio, com a participação de Rita Lee. Nas suas letras o lirismo aparece como recurso linguístico característico da obra, levando o texto cantado a dimensões estéticas inimagináveis. Em contrapartida, nos temas sociais ou naqueles relacionados ao meio ambiente, o artista faz uso de um discurso inflamado para protestar contra as injustiças. Chico César recebeu o Prêmio da Música Brasileira 2018 por seu oitavo álbum, que reúne gêneros musicais como o forró e a MPB. 

O CD premiado denomina-se Estado de Poesia e sua canção de encerramento é a contundente Reis do Agronegócio, que celebra, em termos musicais, uma significativa parceria ecológica entre Chico Cesar e Carlos Rennó. Em linguagem direta e sem meias palavras, o cantor ergue sua voz contra o setor produtivo que, em nome do progresso, destrói o ambiente e os recursos naturais. Bem ao estilo de Bob Dylan das canções de protesto, pela extensão da letra e os pungentes solos de guitarra que a pontuam, Chico César projeta toda sua inquietação e angústia em defesa da mãe-terra, vítima da ganância do agronegócio. A temática ecológica/animalista surge com vigorosa lucidez:

Ó donos do agrobis, ó reis do agronegócio

Ó produtores de alimentos com veneno...

(...)

Vocês me dizem que o Brasil não desenvolve

Sem o agrobis feroz, desenvolvimentista

Mas até hoje, na verdade, nunca houve

Um desenvolvimento tão destrutivista

Para você que emitem montes de dióxido

Para vocês que yêm um gênio neurastênico

Pobre tem mais é que comer com agrotóxico

Povo tem mais é que comer, se tem transgênico

(...)

Vocês que criam, matam cruelmente bois

Cujas carcaças formam um enorme lixo

Vocês que exterminam peixes, caracóis,

Sapos e pássaros e abelhas do seu nicho

E que rebaixam planta, bicho e outros entes

E acham pobre, preto e índio tudo chucro

Por que dispensam tal desprezo a um vivente?

Por que só prezam e só pensam no seu lucro?

Mais não é preciso dizer. Chico Cesar cantou dolorosamente a realidade de um setor econômico que se projeta, com respaldo técnico, político ou mesmo legislativo, à custa da destruição e do sofrimento do Outro. Nada tão atual e verdadeiro. Ele fala de latifúndios, de agrotóxicos, de desmatamento, de ignorância, de racismo, de contaminação, de doenças, de assassinatos. Um sistema excludente de direitos e de justiça. O desprezo à gente humilde. Os atentados à natureza.  A crueldade aos animais. Que o canto corajoso de Chico César possa ecoar em todos os cantos do país, como uma mensagem de esperança a todos aqueles que estão e que virão. Pelas pessoas, pela floresta, pelos bichos. Antes que a natureza morra...

LAERTE LEVAI

Jornalista ambiental (DRT nº 96682/SP) e associado ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (matrícula nº 23.466). Atuou por mais de três décadas no Ministério Público do Estado de São Paulo, como Promotor de Justiça em São José dos Campos e, depois, no Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (GAEMA Paraíba do Sul), até se aposentar. É pesquisador do Núcleo Ética e Direito Animal, do Diversitas (FFLCH/USP) e do Núcleo Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão em Direitos dos Animais, Meio Ambiente e Pós-humanismo (UFBA).

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