Não é esporte!

“Desorientado, exausto, o touro está com espuma escorrendo da boca, o olhar dirigido ao portão, atrás deste está o bom estábulo, agradável e cheiroso, a pátria acolhedora. Ah! O portão está fechado e talvez não volte a se abrir! As pessoas gritam e riem, parece que agora o touro já sabe distinguir entre os gritos provocadores e o deboche barato. Um desprezo colossal, maior que essa arena, preenche a alma do touro. Agora sabe que zombam dele. Agora está fraco demais para se enfurecer. Agora reconhece sua impotência. Agora já não é um animal. Agora ele é a personificação de todos os mártires da história universal. Agora ele se parece com um judeu do leste, escarnecido e golpeado, agora com uma vítima da Santa Inquisição, agora com um gladiador dilacerado, agora com uma menina torturada diante do conselho medieval e em seu olhar tem um brilho da dor viva que queimou nos olhos do crucificado. O touro está imóvel e sem esperanças” [1].

Tourada não é esporte! 

Rodeio não é esporte! 

Vaquejada não é esporte! 

Gineteada não é esporte!

Pesca não é esporte! 

Caça não é esporte!

Rinha de cães não é esporte!

Rinha de galos não é esporte!

Farra do boi não é esporte!

Tourada, rodeio, vaquejada, gineteada, pesca, caça, rinha, farra do boi são praticadas por humanos contra a vontade do animal. São práticas cruéis onde não há um jogo justo, com regras igualitárias para ambos. O animal não humano sempre perde, geralmente a vida. Estas práticas com animais não podem se caracterizar como esporte, por sua natureza injusta e desigual, são atos covardes e sádicos. O atleta se caracteriza por sua coragem em enfrentar um adversário com iguais condições de competitividade.

Os Jogos Olímpicos de Paris estiveram sob os holofotes do mundo. As pessoas falaram sobre os esportes, se reuniram para torcer pelos seus ídolos e comemorar cada vitória levantando a bandeira de seu país. O esporte contemporâneo se caracteriza por possuir regras e objetivos bem definidos. Um dos objetivos é a superação dos adversários, que devem pertencer a mesma categoria, em absoluto respeito às regras.

Os esportes podem ser praticados individualmente ou coletivamente, de forma profissional, recreativa e para melhoria da saúde. As pessoas que praticam são nomeadas de atletas, desportistas ou esportistas. As categorias garantem uma competição justa. Divididas por gênero, idade ou peso corporal, a divisão por categorias estabelece que haverá condições igualitárias de competitividade. Com o advento da Carta Internacional da Educação Física, da Atividade Física e do Esporte [2] o esporte contemporâneo passou a ser um direito social e foi dividido em: educativo, recreativo ou de rendimento. Em nenhum destes conceitos cabe a tortura contra animais não humanos.

A citação que abre o texto é de Joseph Roth e foi publicada em 1925 no jornal Frankfurter Zeitung. Dóris Lutz traduziu o texto de Roth como uma prática antiespecista. No contexto de sua escrita a Europa vivia um período sanguinário marcado pela ascensão de governos totalitários. O autor era antifascista e em seus escritos havia a marca dos que lutaram contra a violência que tomou conta das ruas e das mentes do povo europeu. 

As touradas representavam/representam a encenação da masculinidade. O touro, geralmente, é associado à virilidade. A performance do toureiro coloca em jogo o repertório da masculinidade tóxica: despreza a vida, a dor e o perigo. O touro, seu suposto adversário, nada mais é do que um animal encurralado, sem condições de defesa, amedrontado, defende-se como pode. O único que luta contra é o animal humano. O animal não humano luta pela sua vida. 

Das touradas às práticas de espetáculo entre homens e animais não humanos algumas características são permanentes: a luta desigual, a falta de opção dos animais, a crueldade e o sadismo com o qual os animais são abatidos diante do público sedento por sangue. Para além das práticas já destacadas, muitas outras são realizadas de forma regionalista. 

O caso de uma gata colocada dentro de uma jarra de barro em festa de rua foi noticiado pela ANDANews [3]: “[...] um vídeo que está circulando na internet mostra um caso de crueldade contra uma inocente gata durante a Festa da Fogueira Gigante no município de Cumbe, em Sergipe, no último sábado (13/07). As imagens mostram um homem vendado acertando um vaso de barro pendurado por uma corda que cai no chão. Quando o pote quebra, uma gata assustada sai de dentro dele e as pessoas começam a persegui-la. É possível ver que ela corre desesperada tentado fugir de um grupo de pessoas que a agarra. 

O tutor da gata disse à Polícia Civil que quem conseguisse capturá-la, ganharia 20 reais. [...] O coordenador do Departamento de Cultura e Turismo, Lucivanio Silva, disse em nota que a quebra de potes é promovida há mais de 30 anos por uma família da cidade envolvendo brindes e que, por isso, ela foi inclusa na programação, mas alegou que não sabia da presença do gato no pote. A ANDA expressa o mais profundo repúdio ao ato de crueldade cometida contra a gata. As imagens que circulam nas redes sociais são extremamente perturbadoras e inaceitáveis”.

As práticas cruéis são inaceitáveis e deveriam ser severamente coibidas pelos governantes, mas, no caso da festividade de Cumbe, o que vimos foi o oposto. O incentivo à brutalidade, a barbárie é uma ruptura com o marco civilizatório. As praticas de sadismo e maus-tratos com os animais não humanos vão muito além daquelas já conhecidas.

Nos Jogos Olímpicos de Paris vimos a repercussão internacional de repúdio ao hipismo. Muitas foram as manifestações contra a permanência do hipismo no Jogos Olímpicos. O Brasil foi eliminado após serem constatados ferimentos ocasionados por esporas usadas no lombo do cavalo. Pedro Veniss foi eliminado após a identificação de um sangramento no animal. Charlotte Dujardin foi suspensa pela Federação Equestre Internacional após viralizar um vídeo no qual ela chicoteia o lombo do cavalo durante o treinamento.

O certo é que as práticas de crueldade contra os animais não humanos estão sendo denunciadas como nunca antes na história. O que alguns nomeiam de “esporte com animais”, trata-se de tortura, sadismo, maldade, crueldade, crime, violência, covardia... menos esporte. Com o avanço dos direitos dos animais não haverá paz aos torturadores.

Os adoradores do sangue inocentem seguem mudos!

“A espuma não lhes basta. Querem ver sangue, os valentes!

Não verei mais os heróis vermelho-dourados. Se entre essas pessoas eu tivesse a aparência de um animal – talvez eu ficaria. Mas um touro poderia, por infelicidade, considerar-me um ser humano. Meu único companheiro é um pequeno cão branco que uma mulher trouxe. O cão sempre late agitado quando uma pessoa foge do touro. O cão gostaria de ajudar o touro. Eu também.

Mas, ah! O que podem dois pobres coitados contra cinco mil pessoas?!

Jornal Frankfurter Zeitung, 01/ 10/ 1925 [4].


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Referências bibliográficas


[1] LUTZ, Dóris. “Tourada no domingo”: traduzindo Joseph Roth como prática antiespecista. LESSA, Patrícia; STUBS, Roberta; BELLINI, Marta (Org.). Relações interseccionais em rede: feminismos, animalismos e veganismos. Salvador: Editora Devires, 2019, p. 28-29. 

[2] UNESCO. Carta Internacional da Educação Física, da Atividade Física e do Esporte. Disponível em: https://www.confef.org.br/arquivos/235409POR.pdf. Acesso em: 13 ago. 2024.

[3] ANDANews. Gata é vítima de tortura e maus-tratos ao ser presa em um pote de barro e depois perseguida em festa de rua em Cumbe (SE). Disponível em: https://www.instagram.com/andanews/reels/. Acesso em: 13 ago. 2024.

[4] LUTZ, Dóris. “Tourada no domingo”: traduzindo Joseph Roth como prática antiespecista. LESSA, Patrícia; STUBS, Roberta; BELLINI, Marta (Org.). Relações interseccionais em rede: feminismos, animalismos e veganismos. Salvador: Editora Devires, 2019, p. 29.

PATRICIA LESSA

Escritora, educadora e atuante na promoção cultural. Alguns de seus livros autorais que abordam a questão dos animais não humanos são:  Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura, publicado pela editora Entremares (2020), Literatura infantil: Nise da Silveira (2023) e Maria Lacerda de Moura (2023), ambos fazem parte da coleção Lute como uma garota e foram publicados pela Appris; O Resgate do Touro Vermelho, pela editora Luas (2021); e os livros que organizou: Relações multiespécies em rede: feminismos, animalismos e veganismo pela editora Eduem (2017) e Relações interseccionais em rede: feminismos, animalismos e veganismos, pela editora Devires (2019). Demais dados podem ser encontrados em seu site: https://patricialessa.com.br/. Créditos da foto: Isa Angioletto.

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