Pátria queimada, Brasil!
O céu brasileiro está encoberto por uma nuvem de fumaça. Os noticiários informam que chegamos ao marco de 60% do território nacional coberto pela fumaça das queimadas. A fuligem das queimadas está em nossas casas e adentrando em nossos pulmões. O sol vermelho é o augúrio de dias piores, dias de seca, dias sem água e com prejuízos incalculáveis. As perdas não são somente econômicas, são vidas que estão sendo dizimadas e o ser humano que está secando por dentro. Muitos destes incêndios são criminosos, foram realizadas algumas prisões. Mas, sabemos que os mandantes dos crimes ambientais estão sempre protegidos pelo poder do dinheiro e/ou da política.
Os pássaros voando desesperados por não conseguirem salvar suas crias e suas casas são a imagem da dor e da perda de liberdade. A humanidade também perde. Perde vida, perde saúde, perde empatia, perde possibilidade de futuro. As cenas da fauna lutando pela sobrevivência são dilacerantes. São incontáveis as mortes da fauna e da flora brasileira. A humanidade é egocentrada! Enquanto as mortes em massa não forem as mortes humanas haverá indiferença. Quantas vidas estão sendo exterminadas pela ganância ou indiferença humana? A humanidade secou por dentro? Brasília está irrespirável com cerca de 7% de umidade no ar.
Grande parte do Brasil está ardendo em fogo, tomado por uma fumaça tóxica e com graves riscos para a produção de alimentos saudáveis. No sul do país está caindo uma chuva de fuligem que pode impactar o meio ambiente, a saúde humana e das outras espécies, pode contaminar o solo e a vegetação onde houver acúmulo de água. Os governantes não nos informaram quais serão os impactos para a saúde humana, sobretudo, para os corpos mais vulneráveis: crianças, pessoas idosas, gestantes, pessoas imunocomprometidas, dentre outros. O silêncio mórbido dos governantes é a prova da negligência com relação à emergência climática.
Algumas questões devem ser pensadas: a quem interessa estes crimes ambientais? Quem são os piromaníacos e o que os move? Interessa aos que lucram com a morte alheia? Aos que possuem sangue nas mãos e nos pratos? Sabemos que está havendo uma luta pungente entre a “bancada do cocar” e simpatizantes da causa indígena, animalista e ambiental contra o marco temporal proposto pela “bancada ruralista” e apoiado pela “bancada evangélica” e a “bancada da bala”. Aliados pelo império extensionista, predatório e destrutivo são alvos de críticas pelo agravamento da situação de destruição e morte que tomou conta do país.
No entanto, tanto os governos da direita quanto da esquerda e centro são coniventes com o agronegócio e seu poder destrutivo. Basta ver as críticas que estão sendo feitas ao Plano Safra 2024/2025. O governo federal vai destinar para agricultura familiar 70 bilhões e para o agronegócio 400 bilhões. Vale lembrar que o agronegócio é o responsável por 97% do desmatamento da vegetação nativa no Brasil. A agricultura familiar é responsável pela produção de 70% de nossos alimentos, já o agronegócio produz menos de 20% dos alimentos que chegam até o povo. Ele produz commodities. Quando as pessoas irão se tocar que o dinheiro não se come? Quando não for mais possível plantar por conta do desequilíbrio ambiental? A fome por dinheiro e poder está matando grande parte da população mundial que vive em condições de penúria e escassez de alimentos.
A problemática da terra no Brasil é complexa. O país carrega a marca do coronelismo e, portanto, muitos crimes cometidos contra as comunidades rurais de pequenos produtores rurais, de quilombolas, de ribeirinhos, de indígenas são ocultados pela grande mídia. Muitos crimes cometidos contra a fauna silvestre e a flora são omitidos pela mídia e ignorados pelos governantes. Davi Kopenawa já dizia que “os brancos em torno da terra são hostis. Não sabem nada da gente e nunca perguntam como viviam nossos ancestrais. Só pensam em ocupar a nossa floresta com seu gado e em destruir nossos rios para catar ouro” [1].
As enchentes seguidas de queimadas são o prenúncio da aceleração da emergência climática. Na área rural a devastação é visível a olhos nus. A criação de gado e a monocultura de grãos transgênicos regados a veneno substituem as últimas áreas de mata nativa. Na cidade, o senso comum diz que as folhas “sujam” a calçada e os animais “sujam” as ruas, sem admitir que o único animal que suja o planeta é o humano. Vale lembrar que a espécie humana produz baboseiras para serem consumidas e virarem lixo. As ruas das grandes, médias e pequenas cidades estão tomadas de lixo. Mas, algumas pessoas acreditam e falam que as árvores e os animais não humanos sujam as ruas. Inversão de valores ou cegueira total?
A Terra é a nossa casa maior, somos parte dela. Somos um corpo-território que não existe fora desta relação. Embora alguns milionários, cientistas e lunáticos estejam planejando mudar para outro planeta, até o momento não descobriram outro local para viver e prosseguir sua saga destrutiva e predatória. Por isso, os povos indígenas no Brasil falam da necessidade de “reflorestar mentes”. Reflorestar as mentes significa reavivar, dar vida, fazer valer a vida acima do poder e do dinheiro, recuperar a vida enquanto há tempo. Diz Davi Kopenawa:
“Vemos os dias que não amanhecem e as auroras cheias de fumaça. Vemos, de noite, a lua que fica avermelhada e enfumaçada também. Vemos a chuva que não cai mais, ou muito pouco. Depois de um tempo ela volta, mas desta vez em chuvaradas que não acabam mais [...]. Mas quando todos os habitantes da floresta tiverem desaparecido e todos os xamãs tiverem morrido, quando os brancos comedores de terra tiverem matado todas as árvores e os rios, reduzidos seu chão a buracos lamacentos, vocês também sofrerão” [2].
Stefano Mancuso cria a concepção de Nação das Plantas. Ela é representa a nação mais “populosa, importante e vasta da Terra”. Ela é a única, verdadeira e eterna potência. Sem as plantas, os animais não sobrevivem e a própria vida planetária talvez não existiria. Para o autor, o desmatamento deveria ser um crime contra a humanidade. Ele propõe que as cidades sejam cobertas de plantas, não somente nos parques e jardins, diz ele: “a regra deveria ser única e simples: haver uma planta onde quer que seja possível fazê-la viver. Demandaria custos insignificantes, melhoraria a vida das pessoas de inúmeras maneiras, não exigiria nenhuma revolução em nossos hábitos [...]. Vamos defender as florestas e cobrir de plantas as nossas cidades” [3].
O Brasil é terra coronelista e está longe de ser uma Nação das Plantas. Larissa Mies Bombardi é a autora do livro Agrotóxicos e colonialismo químico [4]. Sua obra rendeu-lhe ameaças de morte e perseguição à sua família. Ela teve que se exilar em função das intimidações criminosas. No Brasil os criminosos ficam protegidos e as vítimas saem do país com medo da morte que espreita em cada esquina ou mensagem virtual. Seu livro propõe que existe um colonialismo químico. O Sul Global foi transformado em uma máquina de produzir grãos, carne, celulose, cana-de-açúcar e outras commodities para o comércio internacional. Está máquina funciona com sementes transgênicas, fertilizantes químicos e agrotóxicos vendidos pelo Norte Global, mas seu uso é proibido em grande parte dos países fornecedores.
O modelo químico-dependente imposto pelo agronegócio coloca em risco a segurança, a soberania alimentar e nutricional, a biodiversidade, a justiça social e ambiental no Sul Global. Seu exílio é a prova viva que de o agronegócio é morte e devastação. Milhares de espécies de plantas e animais não humanos são sacrificados para que o Sul Global continue produzindo lucros para as grandes corporações globais. É possível outra forma de cultivar a terra? Sim.
Ana Primavesi revolucionou a agronomia, sobretudo na área de agroecologia. Para ela, lutar pela terra, pelas plantas, pela agricultura, significa lutar pela vida, inclusive a nossa. Ela foi pioneira no estudo do solo como organismo vivo, para ela, os solos são feitos de matéria viva, e, portanto, devem estar em harmonia com o restante do ecossistema. Solos, seres humanos, água, ar, plantas, animais necessitam de equilíbrio e harmonia. Para ela: “Se as pessoas não conservarem as características do ambiente que permitem a vida saudável [...] se os lixos e dejetos não forem minimizados e reciclados ou convenientemente tratados, nossa vida se tornará um suplício ou mesmo impossível. A escolha é nossa [5].
As obras que sugerem mudanças existem e são viáveis. Lev Tolstoi (1828-1910), o escritor russo, abdicou da fortuna herdada, fundou uma escola rural em uma das propriedades da sua família. Ele virou vegetariano após conhecer a realidade dos abatedouros e defendeu a divisão justa e sustentável da terra para a produção de alimentos saudáveis. Na sua escola, para crianças filhas de camponeses humildes, ele utilizava seus textos que reuniam registros de histórias contadas pelas crianças. Um deste textos foi traduzido e publicado no Brasil: De quanta terra o ser humano precisa [6]. Hoje sabemos que a terra é abundante, e com pouco espaço é possível produzir uma diversidade de alimentos. Mas, neste conto de Tostoi o protagonista vai às ultimas consequências para acumular terras e sonhar com a riqueza financeira.
Célia Xakriabá nos ensina que “ainda dá tempo de repensarmos como temos tratado a terra e eu faço esse chamado. A Terra e a terra somos nós. Lutamos pelo território porque quem tem território tem lugar para onde voltar. Quem tem lugar para onde voltar tem mãe, tem colo e tem cura” [7].
O atual modelo de agronegócio mata a terra, devasta as florestas, extermina animais não humanos, adoece o ser humano e, sem dúvida, é um dos maiores responsáveis pela emergência climática. Fica o convite para a renovação do pensamento, para o despertar telúrico e para cuidarmos do corpo-território. Vale lembrar que dinheiro não se come. Matar a fauna e a flora é matar o nosso futuro na Terra.
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Referências bibliográficas:
[1] ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 54.
[2] ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 172-173.
[3] MANCUSO, Stefano. Nação das plantas. São Paulo: Ubu, 2024, p. 79.
[4] BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.
[5] PRIMAVESI, Ana. A convenção dos ventos: agroecologia em contos. São Paulo: Expressão Popular, 2016, p. 10.
[6] TOLSTOI, Lev. De quanta terra o ser humano precisa. São Paulo: Expressão Popular, 2021.
[7] XAKRIABÁ, Célia. Lutas e diversidades gerais das Minas Gerais: a importância dos povos tradicionais nas re/existências de MG. ANAYA, Felisa Cançado; BRONZ, Deborah; MAGALHÃES, Sônia (org.). Terra arrasada: desmonte ambiental e violação de direitos no Brasil. Montes Claros, MG: Editora Unimontes, 2024, p. 301.