Vida de gado
“Oh, boi!
Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Eh, oh, oh, vida de gado
Povo marcado, eh!
Povo feliz!”
A letra da música de Zé Ramalho, Admirável gado novo, utiliza uma figura de linguagem para abordar uma humanidade servil, que trabalha muito e recebe pouco. A letra procura passar a mensagem de um povo “marcado” pela massificação e manipulação social. Trata-se de um recurso linguístico especista. O apelo às metáforas e metonímias animais como símbolo de inferiorização são uma forma de especismo semântico. O autor da letra, como outras tantas pessoas, sabe do sofrimento pela qual o gado passa, desde a “marcação” à ferro e fogo até o abate em escala industrial, porém prefere vitimizar a humanidade. A vida humana e a vida de gado não podem ser comparadas nestes termos tendo em vista que os animais não humanos não possuem o direito à escolha. Se pudessem escolher, com certeza, optariam pela liberdade e pela vida.
Os casos de abandono de gado à própria sorte estão aumentando no Brasil. Alguns deles são emblemáticos e ganharam repercussão internacional, podemos citar o episódio com as búfalas de Brotas e os bezerros de Cunha. Desde aqueles acontecimentos vemos emergirem notícias bastante preocupantes e que são possíveis em um mundo onde o especismo é considerado normal.
Em setembro de 2024, com o agravamento das secas e das queimadas criminosas no Brasil vimos mais alguns casos de abandono de bovinos, eles foram deixados para morrerem à míngua. A alegação, geralmente, é de que o plantio de soja dará mais lucro do que alimentar o gado. Foi este o caso do proprietário da Fazenda Alvorada, localizada entre Coxim e Rio Verde no Mato Grosso.
O caso ganhou repercussão depois que pescadores encontraram vários animais mortos nas margens do Rio Taquari. A Polícia Militar Ambiental foi acionada e ao entrar na fazenda constatou que no local não havia pasto, ração e nem mesmo água disponível. Os animais, na tentativa desenfreada de sobrevivência, tentaram descer o leito do rio, mas como estavam fracos e debilitados acabavam atolando e morrendo. Foram localizados mais de 270 animais mortos e mais de 700 em situação de maus-tratos. O criminoso prestou depoimento e logo após foi liberado [1].
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os resultados das pesquisas trimestrais da pecuária. Em 2024, o abate de bovinos cresceu 17,2% em comparação ao 2º trimestre de 2023 [2]. A notícia é preocupante, demostra o descaso com a morte violenta pela qual passam os ruminantes, além disso, os danos ambientais incluem florestas devastadas; terras queimadas para que cresça pasto e os grãos transgênicos regados com veneno; produção de gases de efeito estufa; desperdício de toneladas de água potável, aproximadamente 15 mil litros por quilo de carne; solos desertos; zoonoses causadas pelo manejo de animais em desequilíbrio ambiental; doenças derivadas do uso de antibióticos administradas nos animais, dentre tantos outros problemas.
Um rastro de sangue e destruição pode ser visto como resultado da indústria da morte/carne. Cabe aos santuários e à proteção animal minimizar os dados e colaborar na recuperação destas vidas desprezadas em nome de um paladar sanguinário. Foi assim com as búfalas de Brotas e com os bezerros de Cunha.
Em novembro de 2021, a Polícia Ambiental de São Paulo recebeu denúncias sobre maus-tratos e abandono de mais de mil búfalas em uma propriedade rural localizada em Brotas. A divulgação inicial era que as autoridades haviam encontrado 335 vacas e 332 bezerros confinados em uma pequena Área de Preservação Ambiental. A fazenda havia sido arrendada para plantação de soja e as búfalas e seus filhotes largados em uma área sem pastagem nem água. O proprietário, Luiz Augusto Pinheiro de Souza, foi multado em R$ 2,13 milhões. Ele alegou que devido à pandemia não conseguiu comprar alimentos ou mesmo vender os animais. A verdade é que ele optou por abandonar os animais em função de ter maior lucro com o arrendamento. Mesmo em sua conduta criminosa o proprietário reivindicou judicialmente a posse dos animais para continuar o martírio. Graças ao apoio de influenciadores, advogados dos direitos animais, ativistas veganos e celebridades que protestaram nas redes sociais, os animais foram resgatados e ficaram sob a tutela da ONG Amor e Respeito Animal (ARA) até outubro de 2023 [3].
Em 31 de outubro de 2023, o infrator recorreu à Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo destituiu a ONG ARA do papel de depositária das búfalas resgatadas, devido à falta de documentos de registro e de um plano de manejo para a retirada dos animais da fazenda. Foi neste momento que os Santuários Vale da Rainha e o Rancho dos Gnomos passaram a assumir a responsabilidade pelos animais. Os custos de transporte, veterinário, alimentação foram altíssimos. Foi uma operação complexa, onerosa e delicada que aconteceu graças ao apoio de pessoas voluntárias e doações para ajudar nos gastos.
Em fevereiro de 2022 a Polícia Ambiental de São Paulo foi acionada para averiguar uma denúncia anônima de maus-tratos em uma fazenda no bairro Santa Cruz, em Cunha. Mais de 300 bezerros foram encontrados em situação de penúria, desnutridos, sem alimento, sem água, sem alojamento e sem forças para levantar. Novamente, o santuário Vale da Rainha acolheu os animais e organizou um movimento de manejo, tratamento veterinário e locomoção dos sobreviventes [4].
Vitor Favano e Patrícia Andrade Varela Favano divulgaram nas redes sociais que o Vale da Rainha está sofrendo com o caso de 100 búfalas sequestradas e vendidas para a exploração de leite e de carne. 30 delas foram recuperadas e um dos criminosos foi preso. A terra arrendada está em vias de vencer o contrato e os animais precisam ficar em um local mais seguro [5]. A luta pelas vidas do gado martirizado pela fome, pela sede e pelo abandono não terminou após os resgates. A indústria da morte/carne está em constante busca por mais corpos para serem explorados.
Os santuários e a proteção animal no Brasil trabalham para minimizar o sofrimento das vítimas de uma indústria sanguinária e insaciável. A indústria da morte/carne está levando a humanidade para o abismo. Com o avanço das mudanças climáticas seria importante a derrubada dos hábitos carnistas. A vida de gado não deve ser comparada com a vida humana, que possui o privilégio da escolha. Esperamos que um dia a vida de gado seja uma vida valorosa.
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Referências bibliográficas
[1] BRANDÃO, Nélio. Absurdo! Fazendeiro de Coxim que abandonou 1.000 bois com fome e sede é liberado da cadeia. 9 set. 2024. Disponível em: https://blogdonelio.com.br/absurdo-pma-prende-fazendeiro-apos-encontrar-em-coxim-1-000-bois-desnutridos-e-50-mortos/#:~:text=Pecuarista%20de%2062%20anos%2C%20dono,Rio%20Verde%20de%20Mato%20Grosso. Acesso em: out. 2024.
[2] GAMA, Esther. Abates de bovinos, suínos e frangos crescem no 2º trimestre de 2024. 13 ago. 2024. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/40961-abates-de-bovinos-suinos-e-frangos-crescem-no-2-trimestre-de-2024. Acesso em: out. 2024.
[3] GENV. As búfalas de Brotas: o maior caso de crueldade animal no Brasil. 14 fev. 2024. Disponível em: https://genv.org/pt-br/as-bufalas-de-brotas/#:~:text=Em%20novembro%20de%202021%2C%20a,maus%2Dtratos%20e%20da%20neglig%C3%AAncia. Acesso em: out. 2024.
[4] ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais. Veja como estão os bois de Cunha (SP) um ano após resgate em situação de maus-tratos. 2 fev. 2023. Disponível em: https://anda.jor.br/veja-como-estao-os-bois-de-cunha-sp-um-ano-apos-resgate-em-situacao-de-maus-tratos. Acesso em: out. 2024.
[5] VALE DA RAINHA. Disponível em: https://www.instagram.com/p/DAWNj7_udjL/. Acesso em: out. 2024.