O gato preto ganhou o Oscar e conquistou o mundo
Em 2024, meu primeiro texto na coluna Ética Animal foi sobre a nossa relação com os gatos. Gatos, entre o repúdio e a adoração [1] abordou a dificuldade de os seres humanos aceitarem com afeto os felinos domésticos e propagarem crendices que prejudicam os bichanos. Em outras épocas e diferentes geografias estas relações assumiram um caráter de adoração, tendo em vista a divinização desta espécie. Na Idade Média foram associados às bruxas e, tal como elas, perseguidos e jogados nas fogueiras da “Santa Inquisição”. De “santa” a Inquisição não teve nada! Ela levou milhares de mulheres e gatos à tortura pública e morte brutal no fogo. Com a matança de gatos veio a peste, doença que devastou a Europa. Até hoje, em muitas linhas de conhecimento, o gato é visto como a espécie que transita entre o mundo material e o espiritual. Na arte animalista vemos este conceito atravessar várias formas de expressão, cito a poesia:
“Sempre perto dos humanos
Animais sagrados no Antigo Egito,
Ainda que não goste, não há como negar,
Gato é mesmo um bicho bonito [...]
E há quem diga por aí que gato preto dá azar.
Pois saiba que, se tens um gato preto,
Quebranto nunca te há de pegar.
É fato, o que aqui vos digo, é verdade o que ensino” [2].
Ao final de 2024 publiquei um texto que questionava: A arte animalista pode sensibilizar o ser humano? [3]. A pergunta é auspiciosa e requer uma longa análise, que não caberia neste contexto. Mas, vale lembrar que vivemos em um tempo muito austero: emergência climática, crescimento da desigualdade entre os poucos milionários e uma multidão de famintos, ascensão dos governos totalitários com forte tendências neofascistas, incitação ao ódio e aos crimes via redes sociais, monetização via discursos de ódio e de intolerância, redes de crime organizado na deep web etc. A ONG SRD de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, há alguns anos está denunciando uma rede de torturadores de gatos e de cães [4]. Estas pessoas envolvidas nestas redes de violência, provavelmente, não irão se sensibilizar com uma arte animalista.
O cinema animalista já é uma estratégia política usada por ativistas dos direitos animais, do veganismo e das redes de proteção. Cito alguns documentários: A Dieta de Gladiadores (2018); Terráqueos: faça a conexão (2005); Paredes de vidro (2007); Cowspiracy (2014); A Carne é fraca (2005); M6nths (2019); Que raio de saúde (2017); Dominion (2018) e, alguns filmes de ficção: Guardiões da Galáxia III (2023); Não! Não olhe! (2023); Okja (2017); O Touro Ferdinando (2017); Blackfish: fúria animal (2013); Planeta dos Macacos: origem (2011); A fuga das galinhas (2000); Babe, o porquinho atrapalhado (1995); Os doze macacos (1995); Free Willy (1993); Os cães plagueados (1982); 101 dálmatas (1961), dentre tantos outros.
A força poética, pode ser que não sensibilize quem optou pela violência e pelo ódio como modo de vida, mas, certamente, irá afetar as novas gerações atentas às novidades e possibilidades de mudança. Este é o caso de Flow (2024). O filme que ganhou o Oscar de Melhor Animação neste ano é protagonizado por um gato ou gata de pelagem preta. O filme foi muito comemorado na Letônia, o país ergueu estátuas com o gato preto, criou um selo e muitos produtos com a imagem do personagem central. A animação foi dirigida por Gints Zilbalodis e contou com o trabalho de Matīss Kaža, Ron Dyens e Gregory Zalcman.
O filme acontece em um cenário apocalíptico. As águas sobem enfurecidamente e levam tudo por diante. Na cena inicial, vemos um gato preto procurando comida em meio à uma floresta onde há vestígios humanos. A riqueza de detalhes é muito grande. Foi na segunda vez que assisti ao filme que notei que havia um barco em cima de uma árvore na primeira cena. O que indica que as águas sobem e descem modificando o cenário. Na casa onde o gatinho entra nota-se uma escultura inacabada e um desenho de gato. No seu entorno vê-se uma série de esculturas de gatos. Desde o início há uma forte relação do gato preto com aquela casa, aquele ambiente onde vivia uma pessoa que aparentemente amava gatos e criava arte para homenageá-los.
O primeiro encontro interespécie acontece entre o gato e uma matilha de cães. Enquanto os cães brigam entre si por causa de um peixe, o gato abocanha o animal e corre em rota de fuga, sendo perseguido pelos cães na sequência. Ele se esconde e os cães passam por ele. Aqui acontece uma virada. A matilha volta, no mesmo momento em que um rebanho de cervos e uma revoada de pássaros passam pelo gato aparentando perigo iminente. Logo aparece a água levando tudo e todos por diante.
Neste contexto de inundação acontece um encontro inusitado entre um pássaro secretário, uma capivara, um lêmure, um cachorro e o gato preto. Eles vivem uma aventura dentro de um barco tentando sobreviver à enxurrada de água e tempestade. Pelo caminho das águas o gato encontra uma baleia que irá salvá-lo do afogamento. Abaixo uma das imagens dos animais quando conseguem sair do barco em uma cidade sem a presença humana.
A união de representantes de diferentes espécies demonstra a necessidade de solidariedade, cooperação e empatia para a sobrevivência diante da fúria das águas. A baleia, que salvou o gatinho, aparece em várias cenas e lembra-nos da força da natureza. Ela reaparece após a exibição dos créditos do filme para nos lembrar da potência da vida e da reorganização da natureza.
A voz dos animais quase nunca é digna da atenção humana. A maioria dos filmes humaniza os animais. No processo de humanização, as outras espécies ganham a voz humana. Este não foi o caso de Flow. Gints Zilbalodis contribuiu para a produção sonora. O som das águas se mistura com a vocalização das diferentes espécies. Neste quesito, me senti incomodada com algumas análises, inclusive em grupos veganos, afirmando que o filme é mudo, não possui nenhum diálogo. Vale ressaltar que os miados do protagonista foram gravados de Miut, a gata de Gurwal Coïc-Gallas, engenheiro de som do filme.
Há uma experiência imersiva e realista nos sons emitidos pelas diferentes espécies que compõem a história. Suas vozes não dizem nada pelo fato de não entendermos? Arnaldo Antunes e Marisa Monte escreveram a composição A língua dos animais:
“[...] E no meu caminho
Encontrar um passarinho para conversar
Sobre uns assuntos sobrenaturais
Quando estou sozinho
E sigo meu instinto
E até consigo sem saber
Falar a língua dos animais [...]”
Quantas pessoas “conversam” com os pássaros nos jardins, com os cães e gatos em suas casas ou mesmo com os cavalos. A reflexão me fez recordar uma fala da minha avó paterna. Ela me disse, certa vez, que conversava com os cavalos. Até a gramática ajuda no silenciamento dos animais quando propõe que eles emitem sons e somente os humanos possuem voz. Não seria possível pensar em uma voz não humana que cria diálogos interespécies? A vocalização é acompanhada da expressão corporal. Na última cena, o salto da baleia para acima das águas não pode representar a sua alegria por ter sobrevivido?
Pouco se falou sobre a outra animação premiada no Oscar. Foi o curta-metragem, In the shadow of the Cypress (2023). Trata-se de uma animação iraniana, dirigida e escrita por Hossein Molayemi e Shirin Sohani.
Nesta obra premiada a baleia encalha na areia e, em torno dela, pai e filha lutam para salvá-la. Em meio às tentativas de salvamento, surgem as lembranças do passado e as dificuldades pelas quais estão atravessando. É um filme que fala da guerra, da morte, mas também da luta pela vida e da sobrevivência, resiliência e empatia.
Nos dois filmes premiados as baleias podem representar a sabedoria, a força, a intuição e as conexões com o mundo sensível. A sua cauda gigante batendo na água pode nos comunicar sobre o perigo ou nos alertar sobre o imprevisível. Nas duas animações a empatia, a solidariedade e a força são os motores da sobrevivência. Diante da fragilidade da vida, da finitude de nossa existência e da crescente ameaça das catástrofes ambientais, a empatia e a solidariedade podem nos realocar em um mundo colapsado e nos instigar a mudar nossa atitude diante das outras formas de vida. O capitalismo foi assentado sobre a ideia de competição e egocentrismo, levou-nos para a destruição e morte em escala industrial. É chegada a hora de entendermos que a colaboração e a solidariedade serão atitudes necessárias para reconstruirmos a nossa relação com a Terra e todas as espécies que aqui habitam.
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Referências bibliográficas
[1] LESSA, Patrícia. Gatos, entre o repúdio e a adoração. Jus Animalis. 15 jan. 2024. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/etica-animal/patricia-lessa-gatos-repudio-adoracao. Acesso em: 07 jan. 2025.
[2] SILVEIRA, Nise. Gatos, a emoção de lidar. Fotos: Sebastião Barbosa. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1998.
[3] LESSA, Patrícia. A arte animalista pode sensibilizar o ser humano? Jus Animalis. 17 dez. 2024. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/etica-animal/patricia-lessa-arte-animalista. Acesso em: 07 jan. 2025.
[4] Ver em: ONG SRD. Disponível em: https://www.instagram.com/p/DG7Iqebu0N1/. Acesso em: 07 jan. 2025.