Nise da Silveira (1905-1999) e os laços afetivos interespécies
Nise da Silveira nasceu em Maceió, Alagoas, em 1905, ingressou na Faculdade de Medicina em 1921 em Salvador, Bahia, onde foi a única mulher de sua turma, assim como uma das primeiras médicas do Brasil. Em 1933, mudou para o Rio de Janeiro, cidade onde passou em um concurso público para o “Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental” no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, lugar onde iniciou seus trabalhos que a tornaria um exemplo de mudança na forma invasiva e autoritária de tratamento psiquiátrico.
A médica e psiquiatra Nise da Silveira se destacou em seus estudos sobre o comportamento humano e o tratamento de patologias psicológicas influenciados pelas ideias de Carl Gustav Jung sobre o inconsciente e, as ideias de Gaston Bachelard sobre a imaginação criadora. Assim ela revolucionou a maneira de tratar os doentes mentais, utilizando técnicas artísticas, tais como pintura e desenho como terapia. Foi pioneira nas práticas de adotar as relações emocionais entre pacientes e animais não humanos como parte de seus tratamentos, e, além disso, defendia o fim de tratamentos tradicionais, como o eletrochoque, o uso de drogas e o confinamento clínico.
Ela viveu em uma época de acirramento da política totalitária no Brasil e, por isso, foi presa e encarcerada por mais de um ano, denunciada por manter em sua biblioteca livros considerados subversivos. No presídio, conviveu com o escritor Graciliano Ramos, que narrou essa amizade em seu livro Memórias do Cárcere.
Por discordar dos métodos adotados nas enfermarias e se recusando a aplicar eletrochoques em pacientes, ela foi transferida para o trabalho com a chamada “terapia ocupacional”. A atividade era menosprezada pelos médicos.
Em seu livro “Gatos, a emoção de lidar”, ela fala como foi romper com esse pesado termo: “enquanto manipulava seu gato de veludo, com surpreendente habilidade, Luiz Carlos parecia feliz e disse: ‘Como é macio! Sinto grande emoção de lidar com ele entre minhas mãos’” [1]. Desta forma ela relatou a mudança que fez de sua obra um novo modo de perceber o diálogo entre espécies. Para ela, a expressão emoção de lidar foi o ponto de partida para substituir o pesado título de terapêutica ocupacional.
A obra de Nise da Silveira foi marcada pelo debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais, por ela nomeados “animais não-humanos”. Sua experiência com o autoritarismo e crueldade dos homens das ciências médicas foi relatada por ela em ocasião de uma aula prática quando ainda era uma jovem estudante de medicina e que ela considerou seu primeiro encontro com “o mal”.
O encontro aconteceu durante uma aula de parasitologia no primeiro ano de medicina. O então famoso professor Pirajá da Silva, ao entrar na sala de aula lotada, lançou a ideia de se criar um serpentário na faculdade e pediu a colaboração de toda a turma, momento em que entrou na sala um assistente do professor com um vidro contendo uma serpente. O famoso professor retirou a serpente e pediu para a jovem Nise da Silveira segurá-la, garantindo que não era uma cobra venenosa. Nise, que era uma jovem estudante de quinze anos, uma raridade em meio a um universo totalitariamente masculino, foi colocada à prova e não poderia recuar. Esticou os braços e segurou a serpente: “Nesse instante, olhou bem nos olhos do mestre e viu, pela primeira vez, de frente, o que considerou a representação do mal” [2]. Ao segurar a serpente e encarar o autoritário professor, ela cria um novo elo entre sua capacidade de aprendizagem e as limitações das ciências médicas tradicionalistas e misóginas.
Nas décadas de 1950 e 1960, Nise da Silveira investiu nas relações afetivas entre os animais não humanos e os/as pacientes internos para criar um elo de comunicação que havia sido rompido graças aos modelos tradicionais. Ela percebeu a facilidade com que pacientes esquizofrênicos se vinculavam aos cães. Em seu trabalho, ela desenvolveu o conceito de “afeto catalisado”. Ela parte da ideia de que é importante que o paciente conte com a presença não invasiva de um coterapeuta. Após ilustrar exemplos de coterapeutas, Silveira afirma que animais são “excelentes catalisadores”. Segundo ela, eles “reúnem qualidades que os fazem muito aptos a tornar-se ponto de referência estável no mundo externo” [3].
A aproximação dos internos com os animais não humanos do Centro Psiquiátrico Pedro II começou por acaso quando foi encontrada uma cadelinha abandonada e faminta no terreno do hospital. Silveira tomou-a nas mãos e, percebendo a atenção de um dos internos, perguntou-lhe se gostaria de tomar conta do bichinho “com muito cuidado”. Diante da resposta afirmativa, ela deu o nome à cachorrinha de Caralâmpia, inspirada em uma personagem do livro A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos.
Os resultados terapêuticos da incumbência assumida pelo paciente foram excelentes, e assim, ao longo de sua obra ela faz referência a outros casos em que ocorrem relações afetivas entre pacientes e animais não humanos, por exemplo, o caso de Abelardo, um paciente temido por sua irritabilidade e força física, que assumia uma postura tranquila quando tomava conta de alguns cães e gatos, mostrando-se apto a cuidar deles e trocar afetos, bem como o exemplo de Djanira, que teve sua capacidade criativa como pianista retomada por meio da relação com bichos.
Um trabalho de Nise da Silveira pouco conhecido foi seu ativismo e denúncia da farra do boi em Santa Catarina. No livro A farra do boi: do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense, por ela organizado, são analisados os aspectos do sadismo e do prazer doentio pela humilhação e subjugação de alguém que não possui condições de se defender. Os aspectos patológicos não minimizam os aspectos legais, muito pelo contrário, ambos confluem para a necessidade de legislação rigorosa para combater os maus-tratos aos animais. Em 2023, inspiradas na luta de Nise da Silveira, elaboramos um livro para crianças onde as suas ideias sobre as relações interespécies podem abrir as portas de uma nova visão na infância [5].
A partir das críticas de Nise da Silveira podemos perceber que o tratamento dado aos animais não humanos define muito quem somos, a consciência e o respeito a eles refletirão nas nossas relações, com familiares ou em nossas amizades. Esse respeito pode ser um início de uma transformação na vida planetária, para podermos avançar em direção aos modos de existência mais afetivos e criativos. Os animais não humanos podem, a partir das leituras de Nise, nos trazerem muitas alegrias, nos curar e nos tornar melhores, redesenhando nossa existência e nossas formas de relacionamento se estiverem vivos e saudáveis ao nosso lado, em nossos lares e espaços públicos construídos com base no respeito ao direito à vida.
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Referências bibliográficas
[1] SILVEIRA, Nise. Gatos, a emoção de lidar. Fotos: Sebastião Barbosa. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1998, p. 30.
[2] BEZERRA, Elvia. A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Nise da Silveira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 137.
[3] SILVEIRA, Nise. O animal como coterapeuta. Disponível em: https://junguiana.sbpa.org.br/revista/article/view/98. Acesso em: jan. 2025.
[4] SILVEIRA, Nise; Mello Luiz Carlos. O sacrifício e suas transformações: subidas e descidas de níveis de consciência vistas através de rituais e festas reveladoras da relação homem-animal. SILVEIRA, Nise (org). A farra do boi: do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense. Rio de Janeiro: Numen, 1989. p. 62-77.
[5] LESSA, Patrícia. Nise da Silveira. Curitiba: Appris, 2023.