O que é antiespecismo (e o que não é)?

Profundamente enraizado em nossa sociedade, o especismo é definido pelo filósofo Oscar Horta como a “consideração ou tratamento desfavorável injustificado daqueles que não são classificados como pertencentes a uma certa espécie.” Essa lógica arbitrária estabelece uma barreira moral com base na espécie que separa, dentre outras coisas, aqueles que merecem consideração moral e proteção jurídica daqueles que podem ser explorados para trabalho e entretenimento, torturados em experimentos científicos, e assassinados para alimentação e em nome da preservação ambiental.

Embora amplamente aceita e institucionalizada, essa forma de discriminação é moralmente comparável ao racismo e ao sexismo - discriminações que, ao longo da história, relegaram direitos fundamentais e hierarquizaram pessoas com base na cor da pele ou gênero, características tão arbitrárias para determinarmos a quem devemos estender nossa consideração moral quanto a espécie a que um ser senciente pertence.

O especismo se manifesta de diversas formas, mas sua expressão mais prevalecente é o especismo antropocêntrico, uma posição que consiste em desfavorecer indivíduos que não pertencem à espécie humana. Em sua essência, o especismo antropocêntrico não se limita a ignorar os danos ou benefícios que afetam seres não humanos. Ele se expressa sempre que os interesses de um animal não humano são avaliados como de menor importância em relação aos interesses de seres humanos, mesmo quando esses interesses são semelhantes.

O especismo também se manifesta quando os interesses de certos animais são negligenciados, não em comparação a seres humanos, mas em comparação a outros animais. Essa discriminação interespécies é evidente em várias situações. Por exemplo, muitas pessoas rejeitam o consumo de cães e gatos, mas aceitam o de porcos e frangos. Animais de espécies ameaçadas de extinção recebem cuidados especiais, enquanto o sofrimento da maioria dos animais selvagens é ignorado. Embora não antropocêntrica, pois não estabelece uma hierarquia entre humanos e não humanos, essa discriminação é especista, porque utiliza divisões arbitrárias baseadas na espécie para determinar quem merece consideração moral e proteção.

Neste ponto, surge uma diferença entre uma posição não especista e uma posição antiespecista. Enquanto uma pessoa não especista se preocupa igualmente com os interesses e o bem-estar de seres humanos e animais não humanos, buscando não os prejudicar e ajudá-los em igual medida, uma pessoa antiespecista vai além, engajando-se em ativismo para reduzir o especismo no mundo.

Superando o especismo

O principal desafio do movimento antiespecista está no enfrentamento de uma realidade desconfortável: a maioria da população adota práticas especistas, muitas vezes sem sequer se dar conta disso. Essa condição decorre de um processo de socialização fortemente estabelecido que, desde a infância, faz com que sejamos imersos em narrativas que reforçam a ideia de que os animais não humanos são inerentemente inferiores.

Essa visão antropocêntrica molda nossas atitudes em relação aos animais, justificando e perpetuando sua exploração em larga escala, além de desconsiderar seus interesses mais básicos, como o direito à vida e à integridade física. Culturalmente condicionados a tratá-los de forma instrumental, como recursos para atender nossas necessidades e desejos, institucionalizamos um status raramente questionado. Afinal, como desafiar um sistema que nos favorece amplamente e cujos benefícios estão profundamente enraizados em nossas rotinas e estruturas econômicas?

A resistência ao questionamento do especismo não é apenas prática, mas também ideológica. Por estar demasiadamente enraizado e estruturado em nossa sociedade, o especismo é percebido como algo natural e inevitável, mascarando as injustiças que lhe são inerentes. Ele nos condiciona a aceitar a exploração animal como normal, categorizá-la como necessária e relegar os interesses dos animais a uma posição de subordinação ou irrelevância moral. Essa aceitação passiva é precisamente o que o movimento antiespecista busca combater.

Nesse contexto, a educação desempenha um papel essencial. Não se trata apenas de disseminar informações, mas de transformar mentalidades e desafiar paradigmas estabelecidos. É indispensável introduzir o conceito de especismo no debate público, tornando visíveis as suas implicações e promovendo reflexões sobre sua legitimidade, ao mesmo tempo em que se aborda o conceito de antiespecismo de forma clara e acessível, combatendo equívocos e estereótipos que frequentemente distorcem sua essência.

Essas distorções não surgem apenas de mal-entendidos individuais, mas também de estratégias deliberadas de grupos organizados que lucram com a exploração animal. Além disso, movimentos sociais que buscam coaptar ativistas da causa animal para defenderem pautas humanas também contribuem para obscurecer a pauta que mobiliza o antiespecismo. 

É, portanto, uma tarefa educativa, moral e política, assegurar que o debate sobre os direitos animais e o antiespecismo permaneça focado em sua proposta central: combater e superar todas as formas de consideração ou tratamento desfavorável injustificado conferido aos animais não humanos.

Antiespecismo não é sobre gostar de animais

Muitas pessoas acreditam que a luta antiespecista é movida por uma afeição pessoal aos animais não humanos. Contudo, gostar ou não de animais não é um requisito para defender seus direitos e bem-estar, assim como a defesa dos direitos humanos não está condicionada a simpatizarmos com todos os humanos ao nosso redor. É fundamental compreender que o movimento antiespecista não é um apelo sentimental para que todos se apeguem a animais, mas sim um chamado por justiça para todos os seres sencientes. A ideia de que respeitar os animais depende de amá-los é, em si mesma, uma manifestação do especismo, pois pressupõe que o valor de um ser depende de uma conexão emocional com os humanos. Com base em critérios de imparcialidade e justiça, o antiespecismo desafia essa lógica, afirmando que todos os seres sencientes merecem igual consideração independentemente de nossa afinidade pessoal por eles.

Antiespecismo não é dieta

Outra confusão comum é reduzir o antiespecismo a uma questão dietética. Embora o combate à exploração de animais usados para alimentação seja uma parte importante do movimento, essa é apenas uma de suas metas, pois seu objetivo final é eliminar todas as formas de exploração ou qualquer outra forma de injustiça para com os animais. Além disso, o antiespecismo não se limita aos animais domesticados ou criados para consumo. Ele busca expandir nossa esfera de preocupação moral para incluir também os animais selvagens, cujos interesses muitas vezes são negligenciados ou ignorados. Trata-se de um movimento que questiona o sistema que permite não apenas a instrumentalização, mas também o sofrimento de seres sencientes, independentemente de como ou onde vivem.

Antiespecismo não é uma escolha pessoal ou estilo de vida

Também é comum que algumas pessoas vejam o respeito pelos animais como uma escolha pessoal ou um estilo de vida, equiparando-o a preferências individuais. Sob essa perspectiva, respeitar os animais seria uma decisão moralmente opcional, algo que cada indivíduo pode adotar, mas que ninguém está moralmente obrigado a seguir. Entretanto, essa visão contrasta com a forma como entendemos o respeito pelos seres humanos, que normalmente é visto como uma obrigação moral, e não uma simples opção. Respeitar os direitos humanos não é tratado como algo opcional porque nossas ações podem causar danos significativos a outros seres humanos, comprometendo sua qualidade de vida ou até mesmo sua sobrevivência. De maneira semelhante, nossas decisões que afetam os animais não-humanos podem prejudicá-los gravemente, causar sofrimento intenso e, em muitos casos, resultar em suas mortes. E isso faz com que as ações que afetam os animais sejam completamente diferentes de decisões que são moralmente opcionais.

Antiespecismo não é ambientalismo

Também é comum que antiespecismo e ambientalismo sejam confundidos ou vistos como complementares, embora possuam fundamentos distintos e almejem resultados muitas vezes conflitantes. O antiespecismo se baseia no respeito pelos animais enquanto indivíduos sencientes. O meio ambiente, nesse caso, é considerado um recurso que pode beneficiar os animais (humanos e não-humanos). Em contraste, o ambientalismo atribui valor intrínseco a entidades não sencientes, como ecossistemas, espécies ou seres vivos não sencientes. Essa divergência se manifesta em práticas ambientais que frequentemente prejudicam os animais, como a defesa da matança para controle populacional e da caça para preservação de ecossistemas.

Embora não sejam os únicos, esses são os equívocos mais comuns associados ao antiespecismo. Ainda assim, há razões para otimismo: à medida que o conceito avança no debate público, cresce a chance de desfazer confusões e promover uma transformação social e moral que reconheça o especismo como uma forma de discriminação tão injusta quanto outras já amplamente desafiadas.


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Referências bibliográficas


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GUSTAVO HENRIQUE DE FREITAS COELHO

Graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade de Franca (2015), e Graduado (licenciatura e bacharelado) em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (2019), onde também obteve o título de Mestre em Filosofia (2023) como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com pesquisa sobre as implicações morais da técnica de xenotransplantação. Possui especializações em Ciências da Religião pela Faculdade Famart (2020) e em Direito Animal pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (2022). Atualmente, é graduando em História (UFU); e doutorando em Filosofia pela mesma instituição, como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com pesquisa sobre a moralidade da guerra no século XXI. Fundador e coordenador do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Ética Animal da Universidade Federal de Uberlândia UFU/CNPq (2019-2024), um projeto que ofereceu dezenas de cursos gratuitos nas áreas de Ética, Direito e Medicina Veterinária, impactando mais de 12 mil alunos em todo o Brasil. Também é membro fundador do Núcleo de Estudos Animalistas: Direito Animal, Ética e Sustentabilidade da Faculdade de Direito da UFU, iniciativa que amplia o debate sobre os direitos animais em contextos acadêmicos e jurídicos. Diretor-fundador do Instituto de Educação Antiespecista, organização dedicada a combater o especismo em todas as suas manifestações, com o objetivo de criar um espaço de transformação social por meio da educação. É organizador de dezenas de eventos acadêmicos, autor de artigos, capítulos de livros, e colunista no portal Jus Animalis. http://lattes.cnpq.br/5265638620788673

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