A arte animalista pode sensibilizar o ser humano?

O século XX viu nascer uma revolução animalista sem precedentes. A evolução dos direitos dos animais avança pari passu com o crescimento do veganismo. Um dos marcos das mudanças com relação ao tratamento dado aos animais foi a promulgação da Declaração Universal de Direitos dos Animais pela Unesco publicada em quinze de outubro de 1978, em Paris. Desde então muitas ações e práticas sociais estão pensando as relações entre os humanos e os não humanos. Nas artes não seria diferente. No dia quatro de abril de 2001, em Roma, foi escrito e assinado o Manifesto Degli Animalisti Artistas [1]. O manifesto significou uma referência para artistas animalistas declararem-se parte integrante da história da arte. Na justificativa inicial as (os) artistas expõem a razão histórica na qual a vida animal é retratada em seu ambiente natural e pressupõem um reconhecimento de sua importância e interesse contínuo ao longo do tempo. 

A literatura animalista, ou seja, aquela que leva em consideração as relações entre animais humanos e não humanos, é vasta e apresenta muitos estudos acadêmicos em curso. Uma das autoras que aborda as relações interespécies na literatura brasileira é Clarice Lispector. Ela vem sendo estudada por escrever livros infantis sobre os animais, tais como: A Mulher que Matou os Peixes, publicado em 1968 e O Mistério do Coelho Pensante, em 1967. Além destas duas obras, o livro A Paixão Segundo G.H., publicado em 1964, foi paradigmático ao abordar a questão na famosa cena entre a protagonista G.H. e uma barata. A personagem central do romance faz uma limpeza na casa, que pode ser interpretada como uma viagem interior, um diálogo intersubjetivo que culmina no seu encontro com uma barata, diz a autora: “Sem um grito olhei a barata” (LISPECTOR, 2014, p. 70). O livro foi traduzido para vários idiomas e ganhou conotação internacional. Um importante marco na literatura animalista foi a premiação de um dos livros de J. M. Coetzee.

No ano de 2003, J. M. Coetzee foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura por sua obra intitulada A vida dos animais. O livro de Coetzee é composto duas palestras. O autor é professor de literatura na Cidade do Cabo, apresentou na Universidade de Princeton as seguintes discussões: Os filósofos e os animais e Os poetas e os animais. Duas conferências que viraram tema da citada obra. As conferências são acrescidas de uma introdução e de quatro reflexões acadêmicas realizadas por especialistas de diferentes áreas que comentam os textos do escritor. Ele utiliza um recurso criativo para além do personalismo, recusando-se a se colocar diretamente no papel de conferencista e assim, negando a própria autoridade para decidir a questão. Ele cria uma personagem que é uma conferencista, feminista e professora de literatura aposentada, Elizabeth Costello.

O livro aborda as relações entre humanos e não humanos do ponto de vista filosófico, moral e poético, além disso, articula as conferências com comentários de especialista na área, são eles: Marjorie Garber, Peter Singer, Wendy Doniger e Barbara Smuts. A última atua nas áreas de psicologia e antropologia, pesquisadora primatóloga que cunhou o termo “pessoas não humanas”, diz ela: “e assim concluo convidando todo mundo que tenha interesse nos direitos dos animais a abrir o coração para os animais à sua volta e descobrir por si mesmos como é fazer amizade com uma pessoa não humana” [2]. O livro nos convida a pensar as múltiplas formas de relação entre humanidade e animalidade ou as chamadas relações interespécies. O reconhecimento internacional desta obra nos permite pensar que a arte animalista chegou para ocupar uma lacuna nas relações humanidade-animalidade.

A escritora polonesa Olga Tokarczuk ganhou notoriedade quando a sua obra intitulada Sobre os ossos dos mortos foi vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, em 2019. Ela já havia sido contemplada pelo prêmio Man Booker Internacional Prize, em 2018. Seus livros estão sendo traduzidos em várias línguas e, alguns deles, foram publicados no Brasil. O livro Sobre os ossos dos mortos, abordou a caça predatória de forma bastante inovadora.

A protagonista, Janina Dusheiko é uma mulher idosa que vive em uma região fria da Polônia, próxima a República Tcheca, hoje rebatizada de Tchéquia. Dusheiko é uma professora aposentada que vive sozinha, estuda astrologia e é uma grande admiradora das obras do poeta William Blake. O local onde ela mora fica praticamente inacessível ao longo do inverno e a caça é comum entre os homens do vilarejo. Ela, porém, trata de desarmar as armadilhas preparadas para capturar animais silvestres. 

O livro aborda o mistério em torno dos assassinatos de alguns destes caçadores. Quando a notícia da primeira morte chegou aos ouvidos da protagonista, ela observou: “[...] senti um grande alívio. Às vezes, pensando de uma maneira mais abrangente, ignorando algumas limitações das mentes, e considerando ações pessoais, é possível conscientizar-se de que a vida de alguém não é necessariamente boa para os outros” [3]. O homem veio a óbito após ter se engasgado com o osso de um cervo caçado ilegalmente. Fato que fez a sra. Dusheiko refletir sobre a inutilidade da vida dos homens que caçam animais silvestres. A história captura a atenção e desdobra-se em uma trama de vida e morte que se revela inusitada ao final da obra.

No ano de 2024 o Prêmio Nobel de Literatura foi para o livro A Vegetariana, romance escrito pela sul-coreana Han Kang. O livro já havia sido contemplado pelo prêmio Man Booker Internacional Prize, em 2016. A protagonista de nome Yeonghye é aterrorizada por pesadelos que envolvem sangue, carne crua e uma caminhada por um bosque escuro. Depois dos pesadelos ela resolve parar de comer carne e quaisquer produtos de origem animal.

A obra é dividida em três partes narradas por distintas vozes. A primeira parte é relatada pelo marido, a segunda pelo cunhado e, por último, aparece a voz da irmã de Yeonghye. Logo que a protagonista decide parar de comer carne ela joga fora toda a comida da geladeira e passa a rejeitar o marido para fugir do cheiro de carne que, segundo ela, era exalado pelos poros [4]. 

Em uma entrevista ao The Guardian, Han Kang afirmou que a protagonista é uma pessoa que deixou de comer carne em uma tentativa de rejeição à brutalidade humana. À medida que Yeonghye torna-se mais livre fica mais vulnerável, por outro lado, aos constrangimentos violentos em suas relações. O livro é impactante e mostra a face brutal dos costumes humanos.

No cinema, no teatro, nas artes visuais, na música, na dança e na literatura acompanhamos um crescente interesse pelas relações interespécies e pelas questões ecológicas. Muitas inovações estão chegando e embaralhando um jogo de cartas dominado pelo humanismo que havia se desconectado da vida planetária e, em consequência, das outras formas de existência. Fica o questionamento: a arte animalista pode sensibilizar o ser humano? Sem dúvida, este movimento chegou para ficar e está fazendo diferença e levando a humanidade a refletir sobre a sua pegada na Terra. Os livros apresentados são leituras instigantes e podem ser um ótimo presente de Natal. 


__________

Referências bibliográficas

[1] Para acessar o manifesto animalista nas artes ver em: https://digilander.libero.it/animalart/MANIFESTO.htm

[2] SMUTS, Barbara. Reflexões. COETZEE, J. M. A vida dos animais. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 145.

[3] TOKARCZUK, Olga. Sobre os ossos dos mortos. São Paulo: Todavia, 2019, p. 29.

[4] KANG, Han. A vegetariana. São Paulo: Todavia, 2021.

PATRICIA LESSA

Escritora, educadora e atuante na promoção cultural. Alguns de seus livros autorais que abordam a questão dos animais não humanos são:  Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura, publicado pela editora Entremares (2020), Literatura infantil: Nise da Silveira (2023) e Maria Lacerda de Moura (2023), ambos fazem parte da coleção Lute como uma garota e foram publicados pela Appris; O Resgate do Touro Vermelho, pela editora Luas (2021); e os livros que organizou: Relações multiespécies em rede: feminismos, animalismos e veganismo pela editora Eduem (2017) e Relações interseccionais em rede: feminismos, animalismos e veganismos, pela editora Devires (2019). Demais dados podem ser encontrados em seu site: https://patricialessa.com.br/. Créditos da foto: Isa Angioletto.

Anterior
Anterior

Barbatanas de tubarões e um oceano de tribulações – Parte 1

Próximo
Próximo

Seriam os tubarões os vilões dos sete mares?