Da proibição de animais nas locações residenciais
A locação de um imóvel pode ser um desafio para famílias que têm, entre seus membros, animais não humanos, uma vez que alguns proprietários proíbem a permanência deles em seus imóveis.
Essa proibição encontra respaldo legal?
A questão é bastante controversa e de grande importância, pois a lei em vigor para locações de imóveis urbanos (Lei n°. 8.245/91), também chamada de Lei do Inquilinato, não especifica em seu texto se o contrato deve ou não incluir restrições. Assim, prevalece o estipulado no contrato de aluguel, fundamentado na liberdade contratual garantida pelo Código Civil.
Não raro, demandas envolvendo locador e locatário, tendo como ponto de conflito a permanência de animais no imóvel, chegam às portas do Judiciário.
Ao analisarmos as decisões dos nossos tribunais, observamos que o entendimento majoritário é de que essa restrição é válida, desde que exista uma cláusula contratual explícita que proíba a permanência de animais no imóvel alugado. Vejamos algumas decisões:
Apelação cível – Ação de despejo por infração contratual c/c cobrança – Contrato de locação residencial – Sentença de procedência – Insurgência da autora – Existência de cláusula contratual expressa que veda a permanência de animais no imóvel locado – Violação – Circunstância que autoriza a rescisão do contrato, nos termos do art. 9º, II, da Lei º 8.245/91 – Multa contratual correspondente a três meses de aluguel prevista no contrato – Cabimento – Pedido de dilação do prazo para desocupação do imóvel em 90 dias – Inexistência de justificativa plausível – Sentença mantida – Recurso desprovido. (TJ-SP - AC: 10047264120228260224 Bauru, Relator: João Antunes, Data de Julgamento: 02/08/2023, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/08/2023)
Recurso inominado. Locação residencial. Rescisão antecipada. Culpa exclusiva do locador que privou os locatários de terem consigo dois cães, sem respaldo contratual para isso. Prova dos autos reapreciada. Cerceamento de defesa inocorrente. Dever do locador arcar com multa de três alugueres pelo inadimplemento contratual. Despesas de consumo de água e energia elétrica que devem corresponder apenas ao período em que os locatários permaneceram no imóvel, de forma proporcional. Laudo de vistoria do imóvel e laudo de saída. Dever do locatário reparar os danos. Ausência dos autores no dia da vistoria implicaria aceitação dos fatos narrados e responsabilidade quanto aos danos encontrados no imóvel. Sentença reformada em parte. Recurso parcialmente provido". (TJ-SP - RI: 10127154620208260361 SP 1012715-46.2020.8.26.0361, Relator: Gioia Perini, Data de Julgamento: 29/04/2021, 2ª Turma Recursal Cível e Criminal, Data de Publicação: 04/05/2021)
JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. DIREITO CIVIL. LOCAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL. PROIBIÇÃO DE ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. NÃO INFORMADA. ERRO SUBSTANCIAL. ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO. RETORNO AO ESTADO ANTERIOR. DESPESAS DO LOCATÁRIO. DESOCUPAÇÃO. RESSARCIMENTO. NÃO DEMONSTRADO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. (...)2. Deve prevalecer as regras livremente pactuadas entre as partes, inclusive aquela que estabelece o foro para resolução de eventual conflito entre locador e locatário, sendo lícito as partes estabelecerem no contrato locatício a cláusula de eleição de foro, conforme estabelece o Art. 58, inc. II da Lei 8.245/1991. (...) 5. Quanto ao contrato de locação objeto da controvérsia, e que foi anexado ao ID 20894947, este não prevê qualquer vedação à permanência de animais de estimação no interior do bem imóvel. (...) 6. Contudo, não houve o descumprimento de cláusulas no decorrer do contrato de locação, mas falha na fase pré-contratual, que incutiu falsa percepção na recorrente, qual seja, de que poderia trazer consigo o seu animal de estimação. Aliás, restou evidenciado, por meio de prova oral colhida pelo Juízo de origem, que o preposto da pessoa jurídica recorrida não comunicou à recorrente sobre a vedação da permanência de animais no imóvel objeto do contrato de locação. Segundo o magistério de Flávio Tartuce, o dever de informação, imposto pela boa-fé objetiva também na fase pré-contratual, realça a repressão ao dolo omissivo. 7. O artigo 147 do Código Civil prevê que, nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado (...). (TJ-DF 07109792620198070007 DF 0710979-26.2019.8.07.0007, Relator: ANTONIO FERNANDES DA LUZ, Data de Julgamento: 30/07/2021, Primeira Turma Recursal, Data de Publicação: Publicado no DJE: 20/08/2021 . Pág.: Sem Página Cadastrada.) grifos nossos
Assim, a menos que haja uma cláusula especificando a proibição, o proprietário não tem o direito de proibir a presença de animais de estimação no imóvel alugado.
Dessa forma, segundo a jurisprudência, se o locador proibiu sem constar explicitamente no contrato, o inquilino tem o direito de rescindir o contrato e exigir a multa prevista em caso de descumprimento contratual. Do mesmo modo, se o inquilino não observa a cláusula de proibição, pode ter seu contrato rescindido antecipadamente e ser multado.
O mesmo não se aplica à proibição partindo do condomínio. O tema já foi discutido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu que as convenções de condomínios residenciais não têm o poder de proibir os residentes de terem animais domésticos, a não ser que o animal represente, de forma comprovada, um perigo para a segurança, higiene, saúde e o descanso dos demais condôminos. In verbis:
RECURSO ESPECIAL. CONDOMÍNIO. ANIMAIS. CONVENÇÃO. REGIMENTO INTERNO. PROIBIÇÃO. FLEXIBILIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a convenção condominial pode impedir a criação de animais de qualquer espécie em unidades autônomas do condomínio. 3. Se a convenção não regular a matéria, o condômino pode criar animais em sua unidade autônoma, desde que não viole os deveres previstos nos arts. 1.336, IV, do CC/2002 e 19 da Lei nº 4.591/1964. 4. Se a convenção veda apenas a permanência de animais causadores de incômodos aos demais moradores, a norma condominial não apresenta, de plano, nenhuma ilegalidade. 5. Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio. 6. Na hipótese, a restrição imposta ao condômino não se mostra legítima, visto que condomínio não demonstrou nenhum fato concreto apto a comprovar que o animal (gato) provoque prejuízos à segurança, à higiene, à saúde e ao sossego dos demais moradores. 7. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1783076 DF 2018/0229935-9, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 14/05/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: REPDJe 19/08/2019 DJe 24/05/2019)
Da decisão do STJ se extrai que é ilegítima a restrição genérica contida em convenção condominial que proíbe a criação e guarda de animais de quaisquer espécies em unidades autônomas, uma vez que isso viola o direito de propriedade, assegurado na Constituição Federal em seu artigo 5º, XXII, bem como o art. 19 da Lei n. 4.591/1964, que assegura aos condôminos o direito de usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, condicionados às normas de boa vizinhança, e também de usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das mesmas partes por todos.
Assim sendo, uma possível proibição de animais por parte do condomínio só poderá ser determinada se o animal oferecer risco à segurança, à higiene, à saúde e ao sossego dos demais moradores e visitantes ocasionais. E essa proibição deve ser requerida judicialmente e somente após exauridas todas as medidas administrativas possíveis para sanar o problema, comprovando o risco oferecido pelo animal e o descumprimento das medidas pelo tutor.
Embora sejam seres sencientes, os animais não humanos, segundo o atual Código Civil, ainda são considerados coisas, mais precisamente bens semoventes. Por esse motivo, é admissível aos proprietários restringir a presença de animais em imóveis alugados, desde que a proibição conste expressamente no contrato de locação.
Todavia, ao considerarmos os animais como membros de uma família, não parece que essa proibição tenha respaldo legal. A chamada família multiespécie, expressão utilizada para denominar famílias compostas por membros humanos e não humanos, que tem como fundamento jurídico o princípio da afetividade e do pluralismo de entidades familiares, tem encontrado reconhecimento e respaldo na doutrina e jurisprudência.
Essa nova entidade familiar está se tornando uma realidade no Brasil e já é vista como uma tendência mundial, de acordo com um estudo conduzido pelo IBGE em parceria com o Instituto Pet Brasil em 2020. A pesquisa apontou que, no Brasil, há cerca de 160 milhões de animais, a maioria cachorros (62 milhões) e gatos (30 milhões), sendo a terceira maior população de animais de estimação do mundo, ultrapassada apenas pela China e pelos Estados Unidos, de acordo com o instituto.[1]
Dada a realidade fática e jurídica das famílias multiespécies, incompatíveis com o tratamento “coisificante” de seus membros não humanos, cada vez mais demandas chegam ao Judiciário e o conceito de animal como bem móvel não vem encontrando sustentação na atualidade. [2] E, diante da falta de legislação, o judiciário brasileiro tem recorrido à aplicação de normas por analogia, permitindo, por exemplo, a regulamentação da custódia de um animal após a dissolução da sociedade conjugal, o direito de visita e a divisão ou o reembolso de despesas incorridas com o animal.
Sob essa perspectiva, parece razoável estabelecer uma analogia com a proibição de crianças nas locações residenciais, que é rechaçada pelo ordenamento jurídico brasileiro devido à violação dos artigos 3°, IV e 227 da Constituição Federal.
O artigo 3° da Constituição Federal estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, sendo que um deles, expresso no inciso IV, diz respeito à “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação” (princípio constitucional da não-discriminação).
Com base no princípio da não-discriminação, não parece absurdo afirmar que a proibição de animais nas locações residências poderia ser vista como um ato discriminatório, uma forma de especismo. Tal como o racismo e outros tipos de preconceito, trata-se de discriminação contra indivíduos que não fazem parte de uma espécie específica. [3]
Se deve haver igualdade entre os seres humanos, não há justificativas para se proibir a aplicação desse princípio aos animais não humanos, apenas por serem de espécie distinta.
O artigo 227 da Constituição Federal, por sua vez, assegura os direitos das crianças e adolescentes com absoluta prioridade, determinando, dentre outros direitos, a proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Parece lógico fazer a conexão com o artigo 225, inciso VII, da Constituição Federal, que veda a crueldade contra animais. Esse dispositivo é a base normativa do princípio da dignidade animal, que reconhece, mesmo que de forma implícita, que os animais possuem consciência e capacidade de sentir e sofrer (senciência). Por essas características inerentes, eles são valiosos por si sós e merecem uma proteção específica.[4]
O princípio constitucional da dignidade animal não se limita apenas à proibição de atos cruéis, mas também regula outras questões relacionadas a essa dignidade, que não estão necessariamente ligadas a práticas cruéis. Em resumo, o princípio da dignidade animal representa a norma jurídica que impulsiona a expansão normativa do Direito Animal, expandindo sua esfera jurídica e estabelecendo seus limites de aplicação.[5]
Portanto, é o princípio da dignidade animal, e não a norma da proibição da crueldade, que fornece respostas para questões como o direito à convivência familiar (incluindo a guarda compartilhada e a regulamentação do direito de visitas), à pensão alimentícia para animais de estimação [6] e, por que não, o direito à habitação, ou seja, o direito dos animais de viverem com suas respectivas famílias.
E do ponto de vista do direito de propriedade, a Constituição Federal, em seu artigo 5°, incisos XXII e XXIII, apesar de considerar o direito de propriedade como um direito fundamental, subordinou o seu uso para atender ao fim social. Logo, o direito de propriedade não é absoluto, tanto que o Código Civil Brasileiro determina em seu artigo 1228, parágrafo 1°, que o direito de propriedade deve ser exercido preservando a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e evitando a poluição do ar e das águas, regulamentando, desse modo, a sua função ambiental.[7]
É claro que o direito de propriedade assegura ao cidadão o monopólio da exploração de seu bem, bem como o direito de defender e reavê-lo daquele que o detenha ilegalmente. No entanto, quando a Constituição Federal condiciona esse direito ao atendimento de um fim social e o Código Civil reconhece a função ambiental da propriedade, parece claro que o objetivo da propriedade não é apenas beneficiar o proprietário, mas também todos da comunidade, incluindo os animais não humanos.
Ao considerar essas premissas, pode-se concluir que uma proibição genérica de animais em locações residenciais viola a função social da propriedade e fere os princípios constitucionais da não-discriminação, da dignidade animal e da dignidade humana.
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Referencias bibliográficas
[1] LIMA, Monique. Brasil é o terceiro país com mais pets; setor fatura R$ 52 bilhões. Forbes, 2022. Disponível em: //forbes.com.br/forbes-money/2022/10/brasil-e-o-terceiro-pais-com-mais-pets-setor-fatura-r-52-bilhoes/https://forbes.com.br/forbes-money/2022/10/brasil-e-o-terceiro-pais-com-mais-pets-setor-fatura-r-52-bilhoes/#:~:text=Com%20149%2C6%20milh%C3%B5es%20de,ou%20conhece%20algu%C3%A9m%20que%20tenha. Acesso em: 24 novembro 2024.
[2] É certo que o anteprojeto de reforma do Código Civil, além de fazer menção à família multiespécies, propõe, em seu artigo 91-A, um pequeno progresso no status jurídico dos animais, categorizando-os como “sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.” Disponível em: https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf. Acesso em: 25 novembro 2024.
[3] FOLTER, Regiane. O que é especismo? E o movimento antiespecista? Politize, 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/especismo-e-antiespecismo/#:~:text=Similar%20ao%20racismo%2C%20o%20sexismo,de%20uma%20esp%C3%A9cie%20sobre%20outra. Acesso em: 26 novembro 2024.
[4] [5] [6] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. O princípio da dignidade animal. Jus Animalis, 2024. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/direito-brasil/vicente-ataide-dignidade-animal . Acesso em: 26 novembro 2024.
[7] FRARE, Agda R.F. Animais comunitários em condomínios na visão do judiciário brasileiro. In: Revista Jurídica Luso-brasileira. Lisboa — Portugal. Ano 9, n. 3, 2023. p. 854.