A resistência não violenta como forma legítima de se atingir mudanças sociais
Nas últimas décadas, os movimentos não violentos não só levaram a reformas sociais e políticas significativas, avançando a causa dos direitos humanos, mas também chegaram a derrubar regimes repressivos e forçar líderes a mudar a sua própria visão de governo. Como consequência, a resistência não violenta tem evoluído como estratégia com fim específico, associada a princípios religiosos ou éticos, para um método de luta reflexivo e mesmo institucionalizado.[1]
“Ação direta” é uma forma de ativismo que utiliza métodos diretos para produzir mudanças desejáveis ou impedir práticas indesejáveis na sociedade, ao invés de fazê-lo por meio de representantes políticos ou recursos ao sistema judicial. Greves, protestos, bloqueio de estradas, invasões de terra, boicotes, e mesmo a desobediência civil, são alguns exemplos de ação direta.
Em 1963, Martin Luther King Jr. descreveu o objetivo da ADNV (ação direta não violenta) na sua "Carta da Prisão de Birmingham: "A ação não violenta procura criar uma crise e alimentar uma tal tensão que a comunidade, que constantemente se recusava a negociar, é forçada a encarar o facto. Procura-se, por conseguinte, dramatizar os acontecimentos, de molde a que não possam continuar a ser ignorados.”[2]
Quanto à ação não violenta (ativa), pode-se citar milhares de movimentos sociais em todo o mundo. Em 1988, um plebiscito resultou na vitória dos grupos de oposição a Pinochet, pondo fim à sua ditadura. Em 1989, movimentos democráticos não violentos resultaram no fim ao controle comunista no leste europeu.[3]
Em 1930, por exemplo, houve campanha de desobediência civil pela independência da Índia do Império Britânico, com a ajuda de Mohandas Gandhi, que foi o primeiro grande artífice da ação não violenta no século XX, e também um grande estrategista de conflitos por meio da satyagraha (que significa algo como “manter-se firmemente na verdade”). A chave do satyagraha era identificar uma lei injusta (como a obrigação de registrar-se), recusar-se a acatá-la e aceitar as consequências – uma multa, uma detenção, uma surra ou algo pior. Isto, acreditava Gandhi, chegaria às consciências e mudaria as mentes dos opressores, tornando possível a reparação da injustiça. Obtendo grande apoio da população contra as ordens do governo britânico foi que o movimento conseguiu êxito, resultando na independência da Índia.[4]
Com relação aos animais, em 1984, cem ativistas, incluindo Tom Regan, ocuparam o prédio do Instituto Nacional de Saúde visando impedir o financiamento de um novo laboratório na Universidade da Pensylvania. Também se inclui nesta categoria a invasão de laboratórios de pesquisa (causando o mínimo de dano possível) para obter informações e libertar os animais.
No Brasil, pode-se citar o caso Instituto Royal em 2013, em que dezenas de ativistas adentraram sem autorização no laboratório Instituto Royal, devido a denúncias de maus-tratos aos animais utilizados como cobaias em testes de toxicologia. Foi caracterizada, deste modo, uma “ação de resistência não violenta”, uma vez que o objetivo dos ativistas não era invadir ou danificar o laboratório por si só, mas sim resgatar os animais que sofriam constantes maus-tratos.
O resgate de animais do Instituto Royal no Brasil não foi a primeira manifestação com esta finalidade. Outro exemplo no País foi a retirada de cães da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, onde o departamento de odontologia realizava testes com animais sem o uso de anestesia, ou com anestesia vencida, o que resultou em uma Ação Civil Pública contra a universidade.
Um resgate parecido com o do Instituto Royal ocorreu na Itália, em abril de 2012, em que mais de mil pessoas participaram de uma enorme manifestação contra a empresa “Green Hill”, um criadouro multinacional que criava e fornecia animais para testes em laboratórios ao redor do mundo. A multidão, após se manifestar nas ruas, adentrou no laboratório, dando início a um resgate de quarenta cães da raça beagle. Um mês depois, o Tribunal de Brescia ordenou o fechamento temporário das instalações e a apreensão de todos os 3.000 (três mil) animais, que ficaram sob a custódia de voluntários por toda Itália.
Importante mencionar que “o direito de resistência, inclusive em sua faceta desobediência civil, é mecanismo de autodefesa da sociedade democrática, insurgindo contra leis e governos injustos. Possibilita o pleno exercício dos direitos civis, sociais e políticos, porquanto a sociedade e o Direito são dinâmicos”.[5] Diz-se “direito de resistência” aquele:
[...] direito reconhecido aos cidadãos, em certas condições, de recusa à obediência e de oposição às normas injustas, à opressão e à revolução. Tal direito concretiza-se pela repulsa a preceitos constitucionais discordantes da noção popular de justiça; à violação do governante da ideia de direito de que procede o poder cujas prerrogativas exerce; e pela vontade de estabelecer uma nova ordem jurídica, ante a falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica dos membros da coletividade. A resistência é legítima desde que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, divorciada do conceito ou ideia de direito imperante na comunidade. O direito de resistência não é um ataque à autoridade, mas sim uma proteção à ordem jurídica que se fundamenta na ideia de um bem a realizar. Se o poder desprezar a ideia do direito, será legítima a resistência, porém é preciso que a opressão seja manifesta, intolerável e irremediável.[6]
Além disso, “a desobediência civil na perspectiva constitucional brasileira decorre da cláusula constitucional aberta, que admite outros direitos e garantias, e dos princípios do regime adotado (art. 5°, §2°, CF) e liga-se especialmente aos princípios da proporcionalidade e da solidariedade, que permitem protestos contra atos que violem esses princípios da ordem política”.[7] Nesse sentido, há uma abertura constitucional para o direito de resistência em que seriam abarcados também outros direitos.
Nas universidades, cada vez mais estudantes recorrem à objeção de consciência, uma forma de desobediência civil que consiste na recusa em obedecer a ordem superior, geralmente com relação à obrigatoriedade de disciplinas que envolvam experimentação animal, violando, desta forma, sua integridade moral, espiritual, cultural, política, etc.
Segundo entendimento de Laerte Levai:
Trata-se de um legítimo direito do estudante, que, de modo pacífico, o invoca não apenas para resguardar as suas convicções íntimas garantidas pela Carta Política, mas, sobretudo, para salvar a vida e poupar os animais de sofrimentos. Neste ponto há uma interessante hibridez na atitude estudantil objetora, em que a conduta ética ultrapassa a barreira das espécies para constituir em instrumento político para uma mudança de paradigma.[8]
O fundamento jurídico para invocar a resistência passiva baseia-se na liberdade de consciência:
A liberdade de consciência ou de pensamento tem que ver com a faculdade de o indivíduo formular juízos e ideias sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda. O Estado não pode interferir nessa esfera íntima do indivíduo, não lhe cabendo impor concepções filosóficas aos cidadãos. Deve, por outro lado – eis um aspecto positivo dessa liberdade -, propiciar meios efetivos de formação autônoma da consciência das pessoas. (...) Se o Estado reconhece a inviolabilidade da liberdade de consciência deve admitir, igualmente, que o indivíduo aja de acordo com as suas convicções.[9]
Além disso, a escusa de consciência encontra respaldo principalmente no capítulo dos direitos e garantias individuais da Constituição Federal – artigo 5º, inciso VIII -, conjugado com incisos II – princípio da legalidade - e VI (parte inicial) e no artigo 225, par. 1º, inciso VII (parte final), podendo ser exercido mediante o exercício do direito de petição no âmbito administrativo (art. 5º, inciso XXXIV), sem prejuízo de o interessado – se necessário – ingressar em juízo com mandado de segurança (artigo 5º, LXIX, da CF). Por isso, nenhuma lei ordinária está acima da Constituição Federal, em que a norma da escusa de consciência foi estabelecida como princípio consagrado junto aos direitos e garantias individuais, consistindo, portanto, em cláusula pétrea.[10]
Apesar de o artigo 207 da Constituição assegurar às universidades autonomia didático-científica, tal autonomia é limitada. Da mesma maneira, a Lei de Diretrizes e Bases (Lei n. 9.384/96), ao garantir às instituições de ensino a elaboração dos componentes curriculares (art. 47, § 1º), bem como a fixação dos currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes (art. 53, II), não pode afastar-se do comando ético constitucional, que veda a submissão de animais à crueldade.
Levai preceitua que “se existe um conflito aparente de normas entre os artigos 207 e 225 da Carta Política brasileira, evidente que deve prevalecer o segundo mandamento, por contemplar um valor mais elevado (a vida)”.[11]
Os elementos fundamentais que indicam a presença do direito de resistência na Constituição referem-se necessariamente aos valores da dignidade humana e ao regime democrático. O fato de não constar no texto constitucional não significa que um elemento esteja excluído da realidade jurídica. Essas garantias constitucionais visam sanar e corrigir inconstitucionalidades ou ilegalidades e abusos de poder.[12]
Indispensável se faz mencionar, neste caso, que o resgate de animais em laboratórios pode ser considerado como uma ação direta não violenta (ADNV), ou seja, um ato que se vale de métodos imediatos para produzir mudanças desejáveis ou impedir práticas indesejáveis na sociedade, estando amparado pelo direito de resistência. Sua principal causa é a indignação de minorias diante de uma injustiça, encontrando neste instrumento como único meio efetivo para garantir mudanças sociais.
Na definição de Sônia T. Felipe:
A Ação Direta é uma espécie de boicote ativo que visa à abolição de uma prática, sem achar que ela será abolida imediatamente, pois só é alvo de tais ações a prática verdadeiramente institucionalizada, quer dizer, a que tem raízes espalhadas por toda a cultura de consumo daquela sociedade. (...) é um ato de intervenção civil em uma determinada prática, resultando na impossibilidade de ela continuar a existir no momento seguinte no local onde a intervenção aconteceu. E, eis o nó da questão! Ela é uma ação sempre pontual, sem poder para levar à interrupção daquela prática em todos os locais similares, justamente porque essa prática ainda está instituída na sociedade, nas leis e nas convicções da sociedade. E isso é o que precisa ser desconstruído.[13]
Sendo assim, os principais objetivos da ação são, além de resgatar os animais maltratados no laboratório (ação pontual), defender a abolição da experimentação em não humanos de um modo geral, por se tratar de uma prática imoral, ainda que enraizada na comunidade científica.
Tratando-se de uma ação não violenta, que reconhece a observância da ordem jurídica, esta é mais do que reivindicação de direitos; é um agir concreto por esses direitos. Basicamente, a ação direta não violenta decorre de diversas tentativas fracassadas de solução de conflitos institucionalizada.
Como consequência, o resultado imediato da ação direta não violenta pelos animais explorados é o “o salvamento daquele grupo de animais, a repercussão na mídia, o debate sobre o assunto sendo finalmente levantado, o ato sendo criticado, ou aprovado, os argumentos sendo arrebanhados para sustentar a prática, ou para sustentar sua abolição”.[14]
A própria ação é uma mensagem para a população, com o intuito de divulgar a necessidade de mudanças que possam adequar a ordem normativa à realidade sociopolítica da sociedade.
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Referências bibliográficas
[1] ZUNES, Stephen. O poder da ação não violenta. Disponível em: http://www.embaixada-americana.org.br/HTML/ijse0309p/zunes.htm. Acesso em: 20dez24.
[2] KING JR., Martin Luther. Stride Toward Freedom: the Montgomery Story. New York: Harper & Row. 1958.
[3] [4] MOGUL, Jonathan. Uma força mais poderosa: guia de estudos. Trad. Elisabete Santana. Nova York: Barbara de Joinville, 2000. Disponível em: http://www.palasathena.org.br/eticaeculturadepaz2012/Outras%20Refer%C3%AAncias/Uma%20for%C3%A7a%20mais%20poderosa%20-%20Guia%20de%20estudos%20-%20portugu%C3%AAs.pdf. Acesso em: 20dez24.
[4] GARNER, Robert. Animals, politics and morality. Manchester University Press. 1993, p.216.
[5] TEIXEIRA, Denilson Victor Machado. Direito de resistência e desobediência civil: análise e aplicação no Brasil. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/22230/direito-de-resistencia-e-desobediencia-civil-analise-e-aplicacao-no-brasil#ixzz3Am4DYlrd. Acesso em: 20dez24
[6] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 181-182.
[7] BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/index. Acesso em: 20dez24.
[8] LEVAI. Laerte F. O direito a escusa de consciência na experimentação animal. Disponível em:http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CCMQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.ip.usp.br%2Fportal%2Fimages%2Fstories%2Fcepa%2FO%2520DIREITO%2520%25C0%2520ESCUSA%2520DE%2520CONSCI%25CANCIA%2520NA%2520EXPERIMENTA%25C7%25C3O%2520ANIMAL.doc&ei=c5-1VN-KBsGLgwTPlYL4Dw&usg=AFQjCNH9c-_dxHGensfPEG6skBIjzwJ1_w&bvm=bv.83640239,d.eXY. Acesso em: 20dez24.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. atul. – São Paulo: Saraiva, 2011, p. 352-353.
[10] [11] LEVAI. Laerte F. O direito a escusa de consciência na experimentação animal. Disponível em:http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CCMQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.ip.usp.br%2Fportal%2Fimages%2Fstories%2Fcepa%2FO%2520DIREITO%2520%25C0%2520ESCUSA%2520DE%2520CONSCI%25CANCIA%2520NA%2520EXPERIMENTA%25C7%25C3O%2520ANIMAL.doc&ei=c5-1VN-KBsGLgwTPlYL4Dw&usg=AFQjCNH9c-_dxHGensfPEG6skBIjzwJ1_w&bvm=bv.83640239,d.eXY. Acesso em: 20dez24.
[12] BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/index. Acesso em: 20dez24.
[13] [14] FELIPE, Sônia T. Objeção de Consciência, Desobediência Civil e Ação Direta. Pensata Animal – Revista de Direitos dos Animais. Disponível em: http://www.pensataanimal.net/pensadores/152-sonia-t-felipe/397-objecao-de-consciencia-desobediencia-civil-e-acao-direta. Acesso em: 20dez24.