O crime contra a onça-parda e a violação ao princípio da proibição de insuficiência de proteção

Um vídeo que recentemente circulou nas redes sociais mostra uma mulher atirando em uma onça-parda que estava sobre uma árvore. Ao ser atingido, o animal cai no chão e é imediatamente atacado por quatro cães que acompanhavam a atiradora. Apesar de tentar se defender, a onça não resiste aos ferimentos. As imagens ainda registram a mulher comemorando a morte cruel do animal, tratando-a como um feito heroico.

O crime cometido em 16 de dezembro de 2024, em Alto Longá, no Piauí, gerou ampla comoção social e levantou discussões sobre a responsabilidade penal e a possibilidade de prisão dos envolvidos. 

Conforme a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), os responsáveis pela morte da onça-parda podem ser enquadrados em crimes contra a fauna silvestre e estão sujeitos às seguintes penalidades: pela caça do animal (artigo 29), pena de detenção de seis meses a um ano, aumentada de metade, por se tratar de crime praticado contra espécie ameaçada de extinção; pelo crime de maus-tratos (artigo 32), pena de detenção de três meses a um ano; pelos maus-tratos contra os cães (§ 1°-A, art. 32), pena de reclusão de 02 a 05 anos; além de sanção administrativa, com multa de R$ 5 mil, conforme estabelecido no artigo 24 do Decreto nº 6.514/2008. Ademais, pode haver responsabilização pelo crime de porte ilegal de arma, conforme previsto na legislação específica.

Em nota, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão responsável pela aplicação de sanções e medidas administrativas, informou que a mulher recebeu uma multa de R$ 5 mil por matar um animal silvestre ameaçado de extinção, além de uma multa adicional de R$ 3 mil por maus-tratos ao mesmo animal. Também foi aplicada uma penalidade de R$ 12 mil devido aos maus-tratos infligidos aos quatro animais domésticos utilizados na captura da onça-parda. Segundo veículos de imprensa, a irmã e o pai da infratora, que também participaram do crime, igualmente foram multados.

As penalidades aplicadas pela morte da onça-parda geraram indignação e, com razão, trouxeram à tona a necessidade de revisar a legislação federal sobre o tema. Esse debate evidencia a importância de ajustar a tipificação do crime para que reflita a gravidade da conduta, assegurando uma resposta proporcional e efetiva na proteção da fauna silvestre.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) consolidou, em seu artigo 225, a proteção ao meio ambiente, atribuindo ao Poder Público e à coletividade a obrigação de defendê-lo e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações. Dentre as disposições desse artigo, destaca-se o § 1º, inciso VII, que estabelece a vedação de práticas que impliquem crueldade contra os animais.

A Carta Magna ainda aduz, no § 3º, do art.225, que as condutas e atividades consideradas lesivas que resultem em danos ao meio ambiente sujeitam os infratores, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, à aplicação de sanções penais e administrativas, sem prejuízo da obrigação de reparar os danos causados. 

Dessa forma, a proteção estabelecida pela Constituição Federal não se limita à mera proibição de condutas degradantes, mas também inclui a responsabilização e a devida punição dos infratores. Essa abordagem confere à norma um caráter dissuasório, atuando como um mecanismo de prevenção contra futuras agressões ao meio ambiente.

O meio ambiente, ao ser incluído na terceira dimensão de direitos fundamentais na ordem jurídico-constitucional pátria - evidenciando não só sua relevância para a manutenção do equilíbrio ecológico numa dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana, mas também, sob um prisma biocêntrico - conferiu reconhecimento da dignidade aos animais não humanos e aos seres vivos em geral.

Com a finalidade de assegurar a efetividade do preceito constitucional, foi promulgada a Lei de Crimes Ambientais, cuja função é regulamentar as sanções cabíveis às condutas lesivas ao meio ambiente.

Os tipos penais relacionados aos crimes contra a fauna silvestre que têm sido objeto de maior análise pelo Poder Judiciário ao longo da vigência da Lei de Crimes Ambientais concentram-se nas seguintes condutas:

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:

Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. 

[...] Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

[...] Art. 33. Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas cumulativamente. 

[...] Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

Diante desse contexto, ao analisar a tipificação dos delitos contra a fauna silvestre, que além de vitimarem diretamente os animais, afetam também toda a sociedade, questiona-se se as penas atualmente previstas para esses crimes são adequadas tanto para punir de forma efetiva quanto para prevenir futuras violações. Afinal, conforme a concepção de Zaffaroni, a pena consiste na coerção penal aplicada com o propósito de retribuir e evitar a ocorrência de novos delitos, sendo a única consequência da responsabilidade penal (BIANCHINI; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2022, p. 146).

Todavia, as sanções estabelecidas parecem não atender plenamente ao mandamento constitucional que elevou a proteção ambiental à categoria de direito fundamental. Da mesma forma, há indícios de que não foram elaboradas em consonância com o princípio da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade é amplamente reconhecido como um dos mais relevantes do ordenamento jurídico, sobretudo no âmbito do direito penal. No direito ambiental, assume papel essencial na análise da adequação das normas incriminadoras, permitindo avaliar se o legislador atuou de maneira proporcional na definição das condutas puníveis. 

Esse princípio apresenta uma dupla vertente: de um lado, veda o excesso estatal (princípio da proibição do excesso), impedindo que o poder público interfira desnecessariamente na esfera dos direitos fundamentais; de outro, proíbe a atuação estatal deficiente (princípio da proibição de insuficiência de proteção), impondo ao Estado o dever de proteção e promoção desses direitos. Assim, a omissão ou a atuação insuficiente do Estado na tutela do meio ambiente pode configurar uma violação à ordem jurídico-constitucional em ambas as hipóteses (SARLET; FENSTERSEIFER, 2017, p. 292-293).

De acordo com o princípio da proibição de proteção deficiente, tanto a legislação quanto o Estado devem assegurar uma tutela adequada e eficaz aos direitos fundamentais, não podendo se mostrar insuficientes nesse dever. Esse princípio estabelece uma obrigação positiva para o Estado, impedindo-o de abdicar dos mecanismos necessários à garantia efetiva desses direitos. A sua violação ocorre quando o Estado deixa de cumprir esse dever de proteção ou o faz de maneira inadequada e ineficaz, configurando, assim, uma atuação inconstitucional.

Caso as penas previstas para os tipos penais não observem o princípio da proporcionalidade, mostrando-se irrisórias ou insuficientes diante da gravidade dos resultados e das consequências dos delitos, ocorrerá uma efetiva desproteção ou uma tutela deficiente do bem jurídico que se pretende resguardar por meio da norma penal.

A morte de um animal, além de extinguir sua existência enquanto sujeito de direito como um fim em si mesmo, impacta a dinâmica de seu grupo e de sua espécie, comprometendo a estabilidade da comunidade à qual pertence. E para mais, essa perda acarreta consequências irreversíveis para a biodiversidade, afetando o equilíbrio ecológico e os processos naturais dos ecossistemas.

A onça-parda, um animal em risco de extinção, foi cruelmente morta, fato que pode desencadear impactos significativos em todo o ecossistema. Seu desaparecimento pode resultar em efeitos imprevisíveis e potencialmente irreversíveis, incluindo a perda de biodiversidade, alterações na composição do solo, proliferação de espécies exóticas e até a liberação de patógenos, o que pode representar riscos à saúde humana. Diante desse cenário, questiona-se se o Estado confere uma proteção efetiva a essa espécie. A pena prevista de detenção de seis meses a um ano, acompanhada de multa, constitui uma medida realmente eficaz para punir e prevenir a caça ilegal?

No que tange à proteção da fauna, observa-se um significativo descompasso em relação ao mandamento constitucional, que determina a salvaguarda dos animais contra práticas que comprometam sua função ecológica, contribuam para a extinção de espécies ou os submetam a situações de crueldade.

As penas reduzidas previstas para os crimes contra a fauna na Lei de Crimes Ambientais demonstram-se desproporcionais e insuficientes diante da gravidade dos danos infligidos aos animais não humanos, bem como das consequências irreversíveis decorrentes desse impacto ambiental.

É inegável que diversos projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal com o propósito de estabelecer sanções mais proporcionais e adequadas para os crimes contra a fauna. No entanto, persiste a ausência de um efetivo interesse político na correção dessa significativa lacuna legislativa, o que configura uma violação ao princípio da proibição de proteção deficiente. Essa omissão evidencia a falta de compromisso com a seriedade que a proteção à dignidade dos animais não humanos e a preservação da fauna e do patrimônio natural brasileiros exigem.

Isso ocorre porque, embora a objetificação da vida dos animais não humanos seja vedada pelo disposto no inciso VII, do § 1º, do artigo 225, da Constituição Federal, ainda prevalece uma visão instrumental dos animais, tratados como meros meios para a satisfação das necessidades humanas. Apesar de alguns animais receberem maior consideração moral do que outros, é evidente que a estrutura normativa atualmente disponível para promover a tutela dos animais não humanos está longe de ser suficiente para romper com a concepção antropocêntrica do direito, em prol de uma abordagem biocêntrica.

O Direito, enquanto produto da realidade social, constrói sua normativa com ênfase na proteção humana. Embora os avanços na construção de um direito animal autônomo sejam motivo de otimismo, os animais só alcançarão a mesma consideração moral conferida aos seres humanos quando a humanidade compreender, parafraseando Sarlet e Fensterseifer, que somos apenas mais um elemento na cadeia da vida, uma parte integrante da natureza.

Um planeta sem a presença humana já existiu, mas é difícil conceber um planeta sem animais. A extinção de espécies que desempenham papéis essenciais na polinização e dispersão de sementes tem provocado a redução de outras espécies e a diminuição das árvores, o que, por sua vez, reduz a captura de CO2 da atmosfera, intensificando os efeitos das mudanças climáticas. Neste contexto, os seres humanos, por si só, não possuem capacidade suficiente para reverter a crise ambiental e climática que somos responsáveis por desencadear.

A legislação brasileira revela-se profundamente deficiente no que tange à proteção da dignidade animal, da mesma forma que apresenta uma insuficiência notável na salvaguarda da dignidade humana, especialmente quando considerada em sua dimensão ecológica.

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Referência bibliográficas

BIANCHINI, Marcos Paulo Andrade; ARAÚJO, Giselle Marques de; OLIVEIRA, Ademir Kleber Morbeck de. A lei de crimes ambientais e o princípio da vedação à proteção deficiente: uma análise dos crimes ambientais no contexto do rompimento da barragem em brumadinho/MG. Revista Meritum, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 146, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.46560/meritum.v17i1.9022. Acesso em 30.01.2025.

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SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do Direito Ambiental. Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. - 2ª ed.  - São Paulo: Saraiva, 2017.

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Advogada. Pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Público. Presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP. Presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP – Subseção de Amparo. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais – OAB/SP. Vice-Presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis – SOSAFRA.

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