A Emenda Constitucional 96/2017 e o efeito backlash
No dia 18 de outubro, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.008/24 regulamentando o rodeio crioulo como parte da cultura popular. Mais uma sequela da Emenda Constitucional nº 96/2017.
A título de contextualização, tudo teve início com ADI 4983/CE, ação em que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da lei cearense nº 15.299/13, ao considerar a vaquejada como uma prática cruel que fere princípios constitucionais de proteção da fauna e preservação do meio ambiente, o que se sobrepõe ao direito a manifestações culturais.
Laudos técnicos demonstraram na referida ação que a vaquejada provoca diversas consequências nocivas à saúde dos bovinos, tais como fraturas nas patas, ruptura dos ligamentos e dos vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo e até seu arrancamento, das quais pode resultar o comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental.
Oportuno destacar as palavras da Ministra Rosa Weber: “o atual estágio evolutivo da humanidade impõe o reconhecimento de que há dignidade para além da pessoa humana, de modo que se faz presente a tarefa de acolhimento e introjeção da dimensão ecológica ao Estado de Direito”.
Segue abaixo a ementa do referido acórdão:
VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada (STF. ADI n° 4983 – CE. Relator Min. Marco Aurélio Mello. Julgamento em 06 de outubro de 2016).
Como retaliação à supracitada decisão, foi aprovada a Emenda Constitucional 96/2017, que acrescentou o §7º ao art. 225 [1], ao estabelecer que não se consideram cruéis modalidades desportivas com animais quando forem manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro. Desta forma, acabou por liberar práticas como rodeio e vaquejada em todo o território brasileiro, uma vez que estas haviam sido assim reconhecidas alguns meses antes, pela Lei 13.364/16.
Claramente inconstitucional, o §7º foi aprovado com o objetivo de languescer o cerne do art. 225,§1º, VII, que veda(va) práticas cruéis contra todo e qualquer animal não humano, em quaisquer situações.
Não bastasse isso, foi publicada em 2018 a Lei nº 13.655, responsável por incluir no Decreto-Lei nº 4.657/1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Uma indubitável reação retrógrada à força normativa dos princípios constitucionais, com a imposição de limitadores ao Poder Judiciário e seu protagonismo na concretização dos direitos fundamentais.
E foi novamente atropelando a decisão do STF que que a recém-publicada 15.008/24 estabeleceu o rodeio crioulo como patrimônio cultural e definiu responsabilidades mínimas para os organizadores do rodeio crioulo, dentre elas, garantir atendimento médico e veterinário, ofertar infraestrutura adequada para os animais e contratar seguro pessoal de vida e invalidez permanente para os peões. Isto é, a própria lei tratou de confirmar o óbvio, que tanto os animais como os humanos participantes são gravemente feridos nessa prática. Mas claro, resta essa aberração plenamente justificada em nome da “tradição”.
Aliás, “aqui no Brasil diferentemente do que dito por muitos, a prática do rodeio nada tem de cultural, tratando-se de uma cópia do modelo norte-americano, já que os primeiros bovinos criados por aqui eram da raça caracu, que são animais pesados e com enormes ‘guampas’, sendo impossível sua utilização para fins de rodeios” [2]
Vê-se que desde a decisão do STF e a publicação da EC 96/2017, desencadeou-se o chamado efeito backlash, que consiste em um verdadeiro contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial. [3] Efeitos que, revoltantemente, vem ocorrendo até os dias atuais, como a recém-publicada Lei 15.008/24.
Desta forma, o efeito backlash originou-se da decisão polêmica da Corte Constitucional em favor dos animais, a qual fez surgir uma reação da camada conservadora da sociedade, com maioria no Poder Legislativo, culminando na edição de normas com o intuito de reverter o posicionamento do Judiciário. Estas, por sua vez, representaram um retrocesso na aplicação do art. 225, §1º, VII, mediante a EC 96/2017, além da publicação de leis posteriores contrárias à decisão do STF.
Criou-se, deste modo, um foco de tensões constantes entre o sistema jurídico e o sistema político. De um lado há a decisão do STF entendendo pela crueldade intrínseca à prática da vaquejada, bem como a proibição da prática do rodeio em algumas cidades do país, muitas anteriores à 2017. De outro, há leis como a 13.364/16 e 15.008/24 publicadas numa tentativa de reafirmar a vaquejada e o rodeio como “patrimônio cultural brasileiro”, que restam blindados pela EC 96/2017 e com o auxílio do art. 20 da LINDB, inserido pela Lei nº 13.655/18.
O intuito do Legislador, com a edição dessas normas contrárias à decisão do STF foi, indiretamente, tolher o “ativismo judicial” em matérias envolvendo implementação de direitos, colocando obstáculos à tomada de decisões proferidas com fundamento em princípios constitucionais, ou seja, com base em “valores jurídicos abstratos”. [4]
Entretanto, destaca-se a importância do papel proativo do Poder Judiciário, ao preservar a eficácia mínima de direitos fundamentais assegurados pelo legislador constituinte, e assim defender o ordenamento jurídico. Espera-se, assim, que o STF julgue procedente o pedido de inconstitucionalidade apresentado nas ADIs 5728 e 5772, ambas em andamento, a fim de que seja retirado de nossa Carta Magna o §7º do art. 225, mantendo-se o entendimento de que a exploração dos animais em práticas ditas “desportivas” e “culturais” é intrinsecamente cruel e, portanto, contrária ao disposto no próprio artigo 225, em seu §1º, VII.
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Referências bibliográficas
[1] Art. 225, §1º, VII, CF: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…) VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28out24.
[2] MARTINS, Renata de Freitas. Parecer: utilização de animais em rodeios. In: Revista Brasileira de Direito Animal (RBDA), Ano 4, Número 5, jan-dez 2009. Salvador-BA. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/10638/7685. Acesso em: 28out24.
[3] MARMELSTEIN, George. Efeito “backlash” da Jurisdição Constitucional: reações políticas ao ativismo judicial. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/caju/Efeito.”backlash”.Jurisdicao.Constitucional_1.pdf . Acesso em: 28out24.
[4] SILVA, José Rubens M. P . O ativismo judicial e as consequências do efeito backlash no direito brasileiro. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/o-ativismo-judicial-e-as-consequencias-do-efeito-backlash-no-direito-brasileiro/#:~:text=2.4%20%E2%80%93%20As%20Consequ%C3%AAncias%20do%20Efeito%20Backlash&text=Isso%20significa%20que%20ao%20exercer,adotada%20n%C3%A3o%20%C3%A9%20bem%20recebida. Acesso em: 28out24.