Eleições: se os animais pudessem votar...

Se fossem capazes de votar, os animais não humanos encontrariam candidatos dispostos a defender o direito de não serem exterminados, submetidos à dor ou explorados em benefício dos seres humanos?

Há poucos dias das eleições municipais no Brasil, o cenário político para os animais é desolador. De um lado, os candidatos que defendem a agroindústria como uma das bases do desenvolvimento econômico do país, a despeito dos problemas ambientais. De outro lado, os que tomam para si a bandeira da “causa animal” e se apresentam como grandes “heróis” que resgatam, especialmente cães e gatos. E, ao que parece, são os que despertam maior interesse do eleitor.

Atentos a isso, os candidatos “resgatistas” se dedicam a realizar resgates cinematográficos, explorando a dor e o sofrimento dos animais submetidos a maus-tratos, para veicular nas redes sociais o grande feito do "herói", que pede votos para “salvar” centenas de outros. Em geral, não é apresentado o final da história do animal resgatado. A maioria fatalmente acaba indo viver em alguma ONG, ou com protetores em dificuldades, em locais com superlotação de animais à espera por dias melhores que talvez nunca venham.

O candidato "herói" compreendeu que a maioria dos eleitores afetos à causa animal se contenta com o resgate, pois acreditam que o problema foi resolvido e a vida do animal foi “salva”. A partir daí, passa-se para o próximo caso e a dinâmica é a mesma: o eleitor se comove, compartilha os posts do "resgate" do animal vitimado, agradece ao candidato resgatista por ter libertado aquele animal do sofrimento, sem perceber que está reforçando o estereótipo de herói de que o candidato tanto necessita para obter votos.

Uma vez eleito o “resgatista”, não fará parte da sua agenda política a defesa das outras espécies de animais que, diuturnamente, sofrem abusos e exploração. Alguns só se envolvem em demandas que são consenso para a maioria da população, enquanto outros permanecem inertes até que se aproxime o próximo pleito e os resgates cinematográficos sejam retomados.

Se pudessem votar, os animais não encontrariam políticos comprometidos com o fim da exploração animal, uma vez que a sociedade ainda não se comprometeu com esse objetivo, pois isso implicaria reconhecer que a nossa maneira de viver viola de forma absoluta os direitos desses seres sencientes.

A verdade é que o ser humano incorporou a exploração animal em sua rotina diária, seja para fins de alimentação, trabalho, vestuário, medicamentos, testes, entretenimento, esportes, rituais e celebrações religiosas, entre outras. Bilhões de animais são explorados e mortos para fins humanos, e garantir direitos aos animais não humanos exige um reexame profundo da forma como nos relacionamos com eles, que deve considerar a proibição legal da maioria desses usos tão naturalizados em nosso cotidiano.

Mas, ao que parece, a sociedade não está disposta a debater essa questão e, consequentemente, os políticos também não estão dispostos a isso.

A indústria agropecuária considera os animais como meros instrumentos de lucro, uma vez que há um grande mercado consumidor de proteína animal, que, apesar de amar cães e gatos, não pretende parar de comer porcos, galinhas, carneiros, bois e peixes. E a discussão sobre o direito desses animais, tanto na sociedade quanto na esfera política, se concentra em assegurar um maior bem-estar a eles, o que, inicialmente, pode até parecer correto, mas está muito distante de um debate ético relevante, que reconheça todos os animais como seres sencientes e os assegure direitos basilares, como o direito fundamental à vida.

Enquanto isso, centenas de milhares de animais da pecuária vivem uma vida miserável de confinamento. Muitos sofrerão uma morte cruel em instalações de abate em massa, parcamente fiscalizadas, que sequer respeitam os procedimentos técnicos e científicos necessários para garantir, minimamente, o bem-estar dos animais desde o embarque na propriedade rural até a operação de sangria no matadouro-frigorífico. Cavalos explorados até a morte em veículos de tração animal, rodeios, vaquejadas e cavalgadas.

No que diz respeito aos animais silvestres, não podemos negligenciar o fato de que eles são diariamente caçados e traficados sob condições de tortura e morte. Já os animais utilizados em laboratório, nascidos e criados em Biotério para serem manipulados em experiências científicas, não raro, são empregados em pesquisas banais e cheias de crueldade, tratados como meros objetos destinados a viver uma vida de sofrimento e abusos.

Em relação aos animais de estimação, aos quais o ser humano atribui o papel de companheiros, embora muitas pessoas sintam um grande afeto por eles e os tratem como membros da família, há quem leve seus animais ao veterinário para serem sacrificados por questões financeiras, mudanças nas circunstâncias pessoais, tempo escasso para os cuidados do animal, ou falta de vontade de cuidar dele, a chamada “eutanásia de conveniência” [1]. Há quem os deixe passar fome e sede, quem os acorrentem e os confinem, não permitindo a eles expressar o comportamento natural de sua espécie. Há quem os criem para fins de reprodução para comercialização, explorando seus corpos até a morte.

Considerando isso, é imperativo que o movimento pelos direitos dos animais avance significativamente para além de um apelo à compaixão e à misericórdia, mas para que possamos ter um debate ético transformador que questione a nossa coexistência e nos convide a visualizar um mundo alternativo, que altere drasticamente nosso dia-a-dia, eliminando qualquer forma de exploração animal.

É tão utópico assim? Não é o que parece. Como é possível notar, atualmente há uma grande variedade de opções veganas para praticamente todos os produtos de origem animal. A produção de carne, ovos, leite e couro em laboratório, utilizando material não animal produzido através de técnicas de bioengenharia, é uma realidade e, dada a evolução tecnológica, provavelmente será em larga escala. [2] Essa mudança torna possível que os animais tenham uma existência digna, além de trazer benefícios significativos para o nosso meio ambiente, uma vez que a pecuária consome grande quantidade de recursos naturais e polui o nosso planeta.

Da mesma forma, a proibição do uso de animais em experimentos científicos é uma possibilidade real, uma vez que técnicas alternativas estão sendo constantemente desenvolvidas e diversas já foram estabelecidas. Podemos citar como exemplo, os modelos computacionais avançados que permitem aos cientistas prever como os medicamentos reagirão em humanos sem serem testados em animais; o uso de tecidos humanos; sistemas microfisiológicos; método alternativo in vitro; cultura de células; dentre outros métodos acessíveis e com grande potencial de melhorar os resultados alcançados. [3]

Sendo assim, se faz necessário considerar que defender o direito dos animais implica em protegê-los de serem explorados em benefício dos humanos. Demanda deixar de os ver apenas como objetos ou destinatários de piedade, para reconhecer, efetivamente, o seu direito a uma existência digna. O direito de serem tratados como sujeitos, como um fim em si mesmo.

O trabalho é complexo e requer que o candidato que se propõe a atuar nessa área tenha uma visão ampla e não restrita a algumas espécies de animais. Não se trata de resgatar cães e gatos, nem de discutir questões de bem-estar para os animais de criação, com o objetivo de minimizar o sofrimento para continuar a explorá-los. O candidato que se propõe a defender os direitos dos animais deve apresentar propostas de alterações estruturais e duradouras.

A verdadeira essência de uma política para os animais está na coragem de perseguir um progresso ético que reconheça o direito de os animais viverem livres no seu habitat natural, crescendo e se reproduzindo de acordo com a longevidade natural de sua espécie. É implementar medidas éticas para a coexistência entre animais humanos e não humanos. É incentivar um debate para um novo contrato social, com base na ética animal e na justiça social, em que o ser humano, finalmente, compreenda o estabelecido na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que, enquanto espécie animal, não tem o direito de exterminar os outros animais ou explorá-los, mas sim, de colocar sua consciência a serviço das outras espécies, para curá-los e protegê-los [4]

É urgente que candidatos e eleitores estejam compromissados com esse progresso moral. A humanidade já foi instada a rever outros padrões morais. No passado, era improvável imaginar um futuro sem escravidão humana ou com sufrágio universal.

Projetar um mundo em que os animais tenham seus direitos reconhecidos não é uma tarefa tão difícil. O conhecimento, as tecnologias e os instrumentos estão à nossa disposição; é necessário apenas ter vontade política e determinação para aplicá-los.

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 Notas e Referências:

[1] BASTOS, P. A. de S. ; COHEN, C. Bioethics and convenience euthanasia f dogs and cats. Research, Society and Development[S. l.], v. 13, n. 3, p. e11913345373, 2024. DOI: 10.33448/rsd-v13i3.45373. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/45373. Acesso em: 27 set. 2024.

[2] ‘Agricultores do futuro' criam substituto de ovo e leite a partir do ar. Uol, 2024. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/noticias/afp/2024/05/23/agricultores-do-futuro-criam-proteina-comestivel-a-partir-do-ar.htm. Acesso em: 27 set. 2024.

[3] Quais são as alternativas para empresas que não fazem testes em animais. TALK SCIENCE, 2023. Disponível em: https://www.talkscience.com.br/industria-cosmetica/quais-sao-as-alternativas-para-empresas-que-nao-fazem-testes-em-animais. Acesso em: 27 set. 2024.

[4] UNESCO.  Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Bélgica, 1978. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/direitosdosanimais/files/2018/10/DeclaracaoUniversaldosDireitosdosAnimaisBruxelas1978.pdf. Acesso em: 27 set. 2024.

 

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Advogada. Pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Público. Presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP. Presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP – Subseção de Amparo. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais – OAB/SP. Vice-Presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis – SOSAFRA.

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