O crime de crueldade experimental e a controvérsia acerca do termo “recursos alternativos”

A Lei 9.605/98 tipificou a conduta da crueldade contra animais, seja na sua forma comum (art. 32, caput), seja na sua forma especial (art. 32, §1°), chamada por Cleopas Isaias Santos de “crueldade experimental”, relacionada aos maus-tratos a animais utilizados em pesquisas e testes de laboratório. 

Com o advento da Lei de Crimes Ambientais, a vivissecção passou a ser uma conduta típica, salvo quando demonstrado que, para os objetivos daquela pesquisa, não existirem recursos alternativos (o que comprovadamente sabe-se haver). Nesses casos, a ausência de recursos alternativos constitui causa de exclusão da antijuridicidade. 

O crime de crueldade experimental, descrito no art. 32, §1°, da Lei n. 9.605/98[1], consiste, na verdade, em um tipo anormal, pois além do núcleo e dos elementos descritivos, ele contém um elemento normativo, “para cuja compreensão se faz necessário socorrer a uma valoração ética ou jurídica”[2], que é a existência da expressão “recursos alternativos”, ou seja, basta existir uma alternativa ao uso de animais para que a conduta seja criminosa.

Parece-nos bastante claro que o referido tipo penal revela que o legislador reconheceu explicitamente que, existindo recursos alternativos, a utilização de animais em procedimentos científicos não deve ser realizada, a menos que o cientista comprove que o uso de animais é “inteiramente indispensável”, e mesmo quando isso ocorrer, ele está juridicamente obrigado a utilizar o menor número possível de animais e todos os meios disponíveis a provocar a menor quantidade de dor e sofrimento a estes. 

Neste atual modelo adotado para pesquisa com animais, os sujeitos da experimentação são prejudicados sem que se pretenda qualquer benefício para eles; em vez disso, a intenção é obter informações que proporcionem benefício a outras espécies.

Fato é que, ao interpretar o artigo 2º do Decreto n. 6.899, de 2009, o qual dispõe sobre a composição do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal - CONCEA e estabelece as normas para o seu funcionamento, dá-se a entender que a expressão “recursos alternativos”, contida no artigo 32, §1º da Lei de Crimes Ambientais, seria uma norma penal em branco - ou seja, aquela que apresenta complemento situado fora do tipo.

Este posicionamento é equivocado, uma vez que considera como métodos alternativos tanto os que usem animais (doutrina dos 3 R’s) como aqueles que não usem animais. Segundo o artigo 2º deste decreto, que também regulamenta a Lei n. 11.794/08 (Lei Arouca): 

Art.2º – Além das definições previstas na Lei no. 11.794 de 2008, considera-se para efeitos deste decreto: II – métodos alternativos: procedimentos validados e internacionalmente aceitos que garantam resultados semelhantes e com reprodutibilidade para atingir, sempre que possível, a mesma meta dos procedimentos substituídos por metodologias que: a) não utilizem animais; b) usem espécies de ordens inferiores; c) empreguem menor número de animais; d) utilizem sistemas orgânicos ex vivos; e) diminuam ou eliminem o desconforto.

Imprescindível destacar que Constituição Federal brasileira, em seu artigo 225, §1º, VII, veda práticas cruéis contra animais. Qualquer dispositivo que viole este preceito será inconstitucional, já que a crueldade não pode ser permitida, como ocorre com o artigo 2º do Decreto n. 6899/09. Este traz uma definição distorcida do que seria método alternativo, com o objetivo de permitir a experimentação animal do modo como é feita atualmente, já que, em seu inciso “c”, considera também como método alternativo o uso “reduzido” de animais, ou seja, introduz uma não desejada subjetividade, e dá margem para que os mesmos experimentos continuem a ser feitos.

A única interpretação plausível, portanto, é considerar o termo “recursos alternativos” como elemento normativo do tipo. Do contrário, nenhuma eficácia teria a norma penal proibitiva do art. 32, §1º da Lei n. 9.605/98, uma vez que haveria um amplo espectro de práticas que, mesmo sendo desnecessárias, estariam admitidas. Sendo assim, compreender tal expressão como normal penal em branco, como previsto no art. 2º, II do Decreto n. 6.899/09 feriria o princípio da proporcionalidade, o qual proíbe não apenas o excesso, mas também a proteção deficiente.[3]

Interessante destacar que o antigo art. 337 do Código Penal da Espanha, reformado para o art. 340 bis em 2023[4], também deixava brechas à crueldade animal. Segundo este dispositivo espanhol, eram punidos com pena de prisão, de três meses a um ano, aqueles que maltratassem “injustificadamente” animais domésticos. Isso quer dizer que quando houvesse algum “motivo relevante” (para benefício humano, certamente), a conduta cruel seria permitida, a exemplo da vivissecção. 

Apesar dos grandes avanços observados no ordenamento jurídico brasileiro com relação à tutela dos animais, em especial com o advento da Constituição Federal, bem como da publicação da Lei de Crimes Ambientais de 1998, o que ainda se observa são decisões judiciais deficitárias com relação à proteção dos não humanos, dificuldades estas que são provenientes de uma legislação repleta de falhas técnicas e jurídicas, que dão brechas para práticas cruéis aos animais e não são exaustivas quanto às condutas danosas que podem ser praticadas contra estes. Soma-se a isso a grande força política das indústrias farmacêutica e alimentícia, que obstam avanços jurídicos abolicionistas.

Sendo assim, é necessário que haja uma mudança na legislação atual, na forma como o assunto é tratado nas universidades de Direito (destacando-se a importância de inserção da disciplina de “Direito Animal” na grade curricular), bem como na postura dos magistrados e membros do Ministério Público, de modo a dar a devida importância ao tema.

Deste modo, considera-se de suma importância que seja reconhecido o status de sujeitos de direitos aos animais, e que os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, atuem conjuntamente em prol da defesa dos não humanos, utilizando-se da hermenêutica jurídica para fazer valer os preceitos constitucionais e auxiliar no processo de superação do paradigma antropocêntrico, um conceito há muito defasado.



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Referências bibliográficas

[1] BRASIL, Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1.998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 25ago24. Art. 32: Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. 

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: parte geral. 7. Ed. São Paulo: RT, 2007, p. 447.

[3] SANTOS, Cleopas Isaías. Experimentação animal e Direito Penal: o crime de crueldade e maus-tratos à luz da Teoria do Bem Jurídico. Curitiba: Juruá, 2015, p. 133.

[4] Art. 337: “Los que maltrataren con ensañamiento e injustificadamente a animales domésticos causándoles la muerte o provocándoles lesiones que produzcan un grave menoscabo físico serán castigados com la pena de prisión de três meses a un año e inhabilitación especial de uno a tres años para el ejercicio de profesión, oficio o comercio que tenga relación con lós animales”. ESPANHA, Código Penal. Disponível em: http://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/legislacion/l_20121008_02.pdf. Acesso em: 25ago24. Atual redação disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/1995/BOE-A-1995-25444-consolidado.pdf. Artigo 340 bis e ss.

MARIA IZABEL VASCO DE TOLEDO

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Mestre em Direito Público - Relações Sociais e Novos Direitos - Núcleo de Bioética e Direitos dos Animais - pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Público. Servidora pública.

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