Declaração de Nova York sobre Consciência Animal e a senciência dos invertebrados

Aos 19 de abril próximo passado, foi publicada a Declaração de Nova York sobre Consciência Animal. 

Trata-se de um sucinto documento preparado pelos especialistas mundiais Kristin Andrews, Cátedra de Pesquisa de York em Mentes Animais e Professora de Filosofia na Universidade de York; Jonathan Birch, Professor de Filosofia da Escola de Economia e Ciência Política de Londres; Jeff Sebo, Professor Associado de Estudos Ambientais e Diretor do Programa de Mente, Ética e Política da Universidade de Nova York e Toni Sims, também Pesquisadora em Mente, Ética e Política da Universidade de Nova York que, atualmente já conta com quase 500 eminentes signatários com distintos campos de estudo, envolvendo questões legais e políticas, científicas, morais e filosóficas, dentre outras áreas.   

Nada obstante se cuidar de condensado texto posto que exibe somente 4 parágrafos, apresenta-se como trabalho de inestimável peso a lançar uma nova perspectiva da consciência animal, sobretudo para abarcar aqueles notadamente alijados das pesquisas sobre bem-estar animal, isto é, muitos invertebrados (incluindo, no mínimo, moluscos cefalópodes, crustáceos decápodes e insetos), culminando com o chamamento para que em havendo “possibilidade realista de experiência consciente”, nossas tomadas de posição precisam reflexionar tal hipótese.   

De fato, há muitas provas científicas sobre a complexidade das capacidades cognitivas e sensitivas de inúmeros animais não humanos, sendo, indubitavelmente um dos marcos mais relevantes a Declaração de Cambrigde sobre a Consciência, datada de 07 de julho de 2012[1]. Nesse dia, um proeminente grupo internacional de neurocientistas cognitivos, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais, com Stephen Hawking como convidado de honra, reuniu-se na Universidade de Cambridge para reavaliar os substratos neurobiológicos da consciência e experiência e comportamentos relacionados em animais humanos e não humanos. 

A assinatura marcou a primeira formalização do consenso científico sobre a consciência de vários não mamíferos, incluindo pássaros e polvos. Os polvos são um acréscimo notável a essa lista, não apenas porque são os únicos invertebrados incluídos, mas também porque o modo como sua evolução cerebral progrediu é tão diferente dos humanos. A dessemelhança mais notável é a falta do neocórtex, que durante muito tempo se acreditava ser a base biológica da experiência consciente humana.

Destarte, se a Declaração de Cambrigde sobre a Consciência restou por afirmar que a ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo vivencie estados afetivos, sendo possível que animais não humanos, como todos os mamíferos e aves, assim como muitos outros, incluindo os polvos, também apresentem substratos neurológicos geradores da consciência, atualmente, descobertas sobre a ciência da cognição e comportamento animal promovem, mais uma vez, a indispensabilidade da consideração do bem-estar de um maior espectro de animais não humanos.    

Com efeito, há inúmeros estudos na última década a exemplificar experiências subjetivas ou consciência ou ainda, senciência que suplantam os mamíferos, abrangendo todos os vertebrados (incluindo pássaros, répteis, anfíbios e peixes), como também alcançando muitos invertebrados, ou seja, além dos polvos, crustáceos decápodes e insetos.  

Não se pode olvidar, entretanto, que mesmo decorrido longo percurso da Declaração de Cambrigde, algumas de suas ilações ainda são ignoradas.  

Seguramente, muitos desconhecem que os peixes são capazes de respostas comportamentais, fisiológicas e hormonais a estressores, incluindo estímulos nocivos, que podem ser prejudiciais ao seu bem-estar, aspecto que deveria ser muito mais explorado haja vista os milhões de peixes – peixe dourado, peixe-zebra, trutas etc. – submetidos a cruéis experimentos científicos todo ano[2]. Aliás, estudos revelam muito mais sobre estas criaturas sensíveis e inteligentes, algumas delas podendo passar no “teste da marca do espelho”, indicativo não apenas de consciência, mas de auto-reconhecimento ou autoconsciência. 

O peixe Bodião Limpador transpõe o teste do auto-reconhecimento.  A autoconsciência em animais tem sido investigada há muito tempo por meio desse teste – em que pese haver críticas em face de sua inadequação para diferentes espécies com diferentes sentidos principais – que avalia se um animal tentará remover uma marca em seu próprio corpo ao se ver em um espelho. 

Em uma série de extraordinários estudos realizados entre 2019 e 2023, pesquisadores demonstraram que o Bodião Limpador pode lidar bem com as quatro etapas do teste. Primeiro, ao deparar-se com um espelho, o peixe reage de forma agressiva, como se estivesse vendo um rival. Em seguida, essa agressão diminui e o peixe começa a exibir comportamentos inusitados na frente do espelho, como nadar de cabeça para baixo. Na terceira fase, o peixe parece se observar no espelho. Finalmente, após os pesquisadores colocarem uma marca colorida no peixe, ele tenta removê-la ao vê-la refletida, esfregando-se contra uma superfície disponível[3].

No que concerne aos polvos, aparentemente há um consenso quanto à sua inteligência, que lhes permite abrir potes com tampa de rosca e garrafas à prova de crianças, usar ferramentas e até se entediarem. Tal quadra todavia, não nos impede de maltratá-los com inominável crueldade. Exemplifique-se com o prato chamado "sannakji", no qual a cabeça de um polvo é aberta, seu cérebro é removido e o corpo é servido em um prato enquanto os braços ainda estão se contorcendo. Aqui, importa observar que dois terços de seu "cérebro" estão em seus braços, não em suas cabeças...[4].

Outros moluscos cefalópodes igualmente surpreendem. Os chocos, por exemplo, têm a capacidade de lembrar pormenores de eventos passados, incluindo como os vivenciaram. Muitos animais conseguem recordar o que aconteceu, onde e quando, mas um estudo realizado em 2020 revelou que as sépias ou sibas vão além, sendo capazes de lembrar como vivenciaram um item —se o viram ou cheiraram — uma habilidade conhecida como "memória de origem". Durante a pesquisa, os chocos foram expostos à visão ou ao odor de caranguejos, peixes ou camarões. Eles foram treinados para indicar se tinham enxergado ou cheirado cada presa após um intervalo de três horas. Depois desse treinamento, as sépias conseguiram realizar a mesma tarefa com novas presas, como mexilhões ou caracóis[5].

Dentre os crustáceos decápodes, destacam-se as investigações em lagostins.   Demonstram eles comportamentos "semelhantes à ansiedade", que podem ser afetados por medicamentos ansiolíticos. Entre 2014 e 2017, estudos analisaram como esses crustáceos reagem ao estresse, apontando-os como um modelo útil para o estudo da ansiedade. Os pesquisadores colocaram os lagostins em um labirinto com áreas iluminadas e escuras. Embora tenham uma tendência natural a explorar novos ambientes, eles preferem as zonas escuras. Quando o estresse foi intensificado por meio de choques elétricos – exemplo solar da antieticidade dos experimentos científicos em animais não humanos – os lagostins mostraram uma aversão significativa às áreas claras do labirinto. Benzodiazepínicos, utilizados em humanos para tratar a ansiedade, foram administrados aos lagostins que, após o tratamento, voltaram a explorar as partes iluminadas do labirinto[6].

Já para as abelhas, os ensaios científicos tentaram desviar-se das óbvias experiências de dor, buscando vivências positivas. Em estudo realizado no ano de 2022, foi observado que os zangões rolavam bolas de madeira de forma consistente com cinco características de brincadeira. Primeiro, empurravam as bolas por acharem essa atividade inerentemente gratificante, e não como um meio para um fim. Em segundo lugar, esse comportamento não detinha qualquer função aparente. Depois, as abelhas não estavam ensaiando ações que utilizam para outros propósitos, como forrageamento ou acasalamento. Quarto, rolavam as bolas repetidamente, mas de maneiras ligeiramente diferentes a cada vez. Por fim, esse comportamento aumentava quando as abelhas estavam relaxadas, sugerindo que se tratava de uma experiência prazerosa e não incitada por estresse[7].

Finalizando estes exemplares de relevantes pesquisas, sobrevém as moscas-das-frutas. As moscas-das-frutas exibem um sono ativo e tranquilo, porém se constatou que, o isolamento social afeta seus padrões de sono. A Drosophila é conhecida há muito por sua forma de sono. E, uma novel investigação encontrou formas de induzir os distintos tipos de sono: aquele "tranquilo", envolvendo atividade cerebral significativamente reduzida, e aqueloutro "ativo", no qual a atividade cerebral continua mesmo sem comportamentos externos visíveis. Assim como o sono de ondas lentas e o sono REM cumprem funções diversas nos animais humanos, os pesquisadores sugerem que o sono tranquilo e o sono ativo têm funções diferentes nas moscas-das-frutas. O sono tranquilo parece desacelerar o metabolismo e regular o estresse, enquanto o sono ativo parece apoiar a função cognitiva. E, noutro estudo de 2021, revelou-se que o sono das moscas-das-frutas é afetado pelo isolamento social, ou seja, elas dormem melhor quando estão acompanhadas de outras moscas[8].

Perceba que se está diante de modelos nos quais se perscrutam inusuais animais e suas experiências sensoriais (experiência de um toque, visão ou cheiro específico etc.) ou suas experiências emocionais (de prazer, dor, esperança ou medo). Noutros termos, animais vivenciando experiências subjetivas; animais que têm consciência dos fenômenos ao seu redor, animais sencientes afinal.  

A Declaração de Nova York sobre Consciência Animal enfoca esta acepção para consciência – que não se imiscui com mera reação a estímulos ou com a “sofisticada” capacidade linguística –  enfatizando uma experiência sentida e imediata, que pode muito certamente ser compartilhada entre animais humanos e muitos outros animais[9]. 

Neste ínterim, renova-se indagação perene na proteção animal: quais animais podem ter experiências subjetivas? Ou, noutras palavras: quais animais são conscientes neste sentido?

E, primordialmente, sopesando-se tantas evidências que remetem à atribuição de consciência não unicamente aos vertebrados (mamíferos e répteis, anfíbios, peixes) mas a muitos invertebrados (moluscos cefalópodes, como polvos e chocos, crustáceos decápodes, como caranguejos eremitas e lagostins, e insetos, como abelhas e moscas-das-frutas), exsurge minimamente uma “possibilidade realista de consciência”. Tal sinal é severo o bastante para fazer-se respeitar o bem-estar destes animais[10]. 

Destarte, segundo a Declaração de Nova York sobre Consciência Animal, a certeza sobre a consciência não perfaz pré-requisito para avaliar os riscos ao bem-estar animal. Em havendo uma possibilidade realista de que qualquer animal tenha consciência, tal possibilidade impinge ser contabilizada nas decisões que os afetam Imprescindível a adoção de medidas cautelosas e ponderadas para mitigação de riscos ao bem-estar de todos os vertebrados e muitos invertebrados, inobstante o aprofundamento da compreensão sobre eles.  



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Referências bibliográficas

[1] Low, P. The Cambridge Declaration on Consciousness. Proceedings of the Francis Crick Memorial Conference, Churchill College, Cambridge University, July 7 2012, pp 1-2.

[2] People for the Ethical Treatment of Animals (PETA). Fish in Laboratories. Disponível em: https://www.peta.org/issues/animals-used-for-experimentation/fish-laboratories/?v2=1 Acesso em: 07 ago. 2024.

[3] Andrews, K., Birch, J., Sebo, J., and Sims, T. (2024) Background to the New York Declaration on Animal Consciousness

[4] People for the Ethical Treatment of Animals (PETA). Disponível em: https://www.peta.org/features/5-times-octopuses-made-headlines/ Acesso em: 07 ago. 2024.

[5] Andrews et al. Ob.cit. 

[6] Andrews et al. Ob.cit. 

[7] Andrews et al. Ob.cit. 

[8] Andrews et al. Ob.cit. 

[9] Andrews et al. Ob.cit. 

[10] Andrews et al. Ob.cit.


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DECLARAÇÃO DE NOVA YORK SOBRE CONSCIÊNCIA ANIMAL. 19 de abril de 2024/Universidade de Nova York 

Quais animais têm a capacidade de experiência consciente? Embora ainda haja muita incerteza, alguns pontos de amplo acordo surgiram.

Primeiro, há forte suporte científico para atribuições de experiência consciente a outros mamíferos e pássaros.

Segundo, a evidência empírica indica pelo menos uma possibilidade realista de experiência consciente em todos os vertebrados (incluindo répteis, anfíbios e peixes) e muitos invertebrados (incluindo, no mínimo, moluscos cefalópodes, crustáceos decápodes e insetos).

Terceiro, quando há uma possibilidade realista de experiência consciente em um animal, é irresponsável ignorar essa possibilidade em decisões que afetam esse animal. Devemos considerar os riscos de bem-estar e usar a evidência para informar nossas respostas a esses riscos. (trad.livre)

Disponível em: The New York Declaration on Animal Consciousness (google.com) Acesso em: 09 ago. 2024.

IVANIRA PANCHERI

Pós-graduada em Direito dos Animais pela Universidade de Lisboa (2022). Mestre em Derecho Animal y Sociedad pela Universitat Autònoma de Barcelona (2019). Pós-Doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2018). Doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2013). Mestrado em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (2000). Pós-Graduação lato sensu em Direito Ambiental pela Faculdades Metropolitanas Unidas (2009). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (1993). Atualmente é advogada - Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Professora colaboradora junto ao Docente Roberto Augusto de Carvalho Campos (USP) na área de Direito Animal, Medicina Legal e Biodireito.

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