Breve análise sobre o direito de os animais comunitários viverem em condomínios: Parte 1

Em geral, os animais comunitários são animais de vida livre, muitos oriundos de abandono, que habitam uma comunidade específica e tiveram a sorte de conquistar a simpatia das pessoas que ali vivem, o que lhes permitiu receber cuidados diários, como alimento, proteção e carinho. Dessa maneira, o animal comunitário conquistou um “lar” em um espaço coletivo, mas não tem um tutor ou uma família única e definida. 

A prática de uma comunidade proteger e cuidar de um animal em situação de rua tornou-se cada vez mais costumeira e vem adquirindo importância no âmbito público, diante da crescente preocupação com o bem-estar dos animais e a ausência de políticas públicas.

Embora o Brasil não disponha de uma legislação federal específica para regulamentar os direitos dos animais comunitários, estados e municípios brasileiros, utilizando-se da competência legislativa concorrente em relação à proteção da fauna, cada vez mais estão editando as próprias leis, com base no artigo art. 225, §1º, VII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que estabelece a regra da proibição da crueldade animal. Do texto constitucional, é possível extrair o reconhecimento da senciência animal, o que contribui para a compreensão do animal como um ser que tem direitos fundamentais à existência digna, e que devem ser assegurados pelo poder público e pela sociedade como um todo.

Ao conceituar "animal comunitário", as leis estaduais e municipais compartilham do mesmo entendimento, considerando comunitário aquele animal que estabelece relações de dependência e manutenção com a comunidade onde vive, apesar de não ter um responsável único e definido. Igualmente estabelecem a esterilização cirúrgica como método de controle populacional ético, além da necessidade de registro do animal e de, pelo menos, um tutor responsável.

A relação entre a comunidade e os animais comunitários, embora geralmente seja solidária e respeitosa, pode ser afetada por conflitos com aqueles que veem os animais como "invasores" do meio ambiente urbano, o que para eles representa um problema e um risco, seja por meio da transmissão de doenças ou pela preocupação com acidentes e ataques.

Quando os animais comunitários são cuidados em locais públicos, embora possam gerar conflitos, não há tanta resistência, talvez devido à compreensão de que se trata de um espaço que pertence à comunidade. No entanto, quando o animal comunitário habita um espaço privado, a questão do direito de propriedade individual é um tema recorrente nos desentendimentos. No caso de condomínios edilícios, não é raro que os síndicos determinem a retirada dos animais ou mesmo proíbam que eles sejam alimentados nas áreas comuns do condomínio, além de estipularem multas para aqueles que desobedecem, o que, fatalmente, leva a discussão ao âmbito judicial.


Direito Animal Comunitário x Direito de propriedade

A questão central é determinar se os condomínios se enquadram no conceito de comunidade, uma vez que o animal comunitário é aquele que estabelece laços de dependência e proteção com a “comunidade” em que vive. Bem, uma comunidade pode ser definida como o conjunto de indivíduos que habitam a mesma área geográfica e estão ligados entre si por costumes comuns e sentimentos semelhantes.

O condomínio edilício é um instituto jurídico previsto no Código Civil Brasileiro, nos artigos 1331 a 1358, como uma edificação (vertical e horizontal) composta por partes exclusivas (unidades privativas e autônomas como apartamentos ou casas, por exemplo) e de partes que são de propriedade comum, compartilhadas entre todos (como áreas verdes, pátios, playground, alamedas). A doutrina mais recente tende a considerar o condomínio edilício como uma comunidade de direito, uma vez que há diversos titulares e interesses relacionados ao mesmo objeto.

Dessa forma, conclui-se que o conceito de "comunidade", conforme descrito nas leis que regulamentam a figura do animal comunitário, também abrangeria o condomínio edilício.

É certo que algumas leis possuem disposições específicas sobre animais comunitários em condomínios, como é o caso da Lei municipal n°. 6.904/2021, do município de Pelotas - RS, todavia, ainda que a Lei não preveja de forma expressa a proteção de animais comunitários em áreas condominiais, ou mesmo, que não se partilhe do entendimento de condomínio edilício como “comunidade”, é plausível sustentar a permanência dos animais comunitários em áreas comuns de condomínios, alicerçado no dever/direito constitucional da coletividade de zelar pelo meio ambiente, o que, obrigatoriamente, inclui todos os animais que dele fazem parte, bem como na determinação de proteção aos animais, com base no princípio da dignidade animal, que veda as práticas que submetam os animais à crueldade.

Além da proteção constitucional, a Lei de Crimes Ambientais prevê pena de 2 a 5 anos para quem maltratar cães e gatos, aumentada de um sexto a um terço se a prática resultar em morte. Sendo assim, proibir a alimentação dos animais comunitários, ou exigir sua retirada do local onde estão sendo assistidos e protegidos, é condená-los ao sofrimento e até a morte, pois ficariam sem água, alimentação e abrigo, o que feriria sua dignidade e, consequentemente, configuraria um crime ambiental.

Razoável, igualmente, defender a permanência dos animais comunitários em condomínios com base no princípio da igual consideração de interesses, uma vez que os animais também têm o direito de coabitar essas comunidades edilícias. Se deve haver igualdade entre os seres humanos, sem distinção de etnia, sexo ou capacidade intelectual, não há justificativas para se proibir a aplicação desse princípio aos animais não humanos, apenas por serem de espécie distinta.

Ao analisar a questão sob um prisma antropocêntrico, é possível também defender a permanência dos animais comunitários nas áreas comuns do condomínio, com base no princípio de maior importância da Constituição Federal Brasileira e das outras normas infraconstitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, que, numa perspectiva ecológica, projeta o princípio da solidariedade interespécie, uma vez em que os condôminos devem ter assegurado o pleno exercício do direito de proteger e garantir o bem-estar dos animais não humanos.

Em grande parte dos casos de conflito envolvendo animais comunitários em condomínios edilícios, os condôminos contrários à manutenção do animal sustentam que, além do direito de propriedade sobre a unidade autônoma, também têm o direito de usufruir das partes em propriedade comum do condomínio, sem prejuízo do sossego, salubridade e segurança, nos termos dos artigos 1336 e 1348, Código Civil Brasileiro.

Observamos que a Constituição Federal, apesar de considerar o direito de propriedade como um direito fundamental, subordinou o seu uso para atender ao fim social. Logo, o direito de propriedade não é absoluto, tanto que o Código Civil Brasileiro determina em seu artigo 1228, parágrafo 1°, que o direito de propriedade deve ser exercido preservando a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e evitando a poluição do ar e das águas, regulamentando, desse modo, a sua função ambiental.

É claro que o direito de propriedade assegura ao cidadão o monopólio da exploração de seu bem, bem como o direito de defender e reavê-lo daquele que o detenha ilegalmente. No entanto, quando a Constituição Federal condiciona esse direito ao atendimento de um fim social e o Código Civil reconhece a função ambiental da propriedade, parece claro que o objetivo da propriedade não é apenas beneficiar o proprietário, mas também todos da comunidade, incluindo os animais não humanos.

De acordo com essa perspectiva, o direito de os animais comunitários habitarem as áreas comuns de um condomínio, assim como o direito de os moradores garantirem o bem-estar desses animais, só podem ser questionados se o local oferecer perigo à integridade física do animal, ou se houver perturbações ao sossego, insalubridade ou perigo para a segurança, conforme determinação do artigo 1.336, inciso IV, do Código Civil, e, desde que a gravidade seja tamanha a ponto de justificar o sobrepujamento de direitos fundamentais. É certo que a retirada do animal deve ser feita somente após esgotadas todas as tentativas de sanar os problemas, e com o encaminhamento do animal para um lar adotivo ou para instituições de acolhimento que irão destiná-lo à adoção responsável.

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Referência bibliográfica:

FRARE, Agda R.F. Animais comunitários em condomínios na visão do judiciário brasileiro. In: Revista Jurídica Luso-brasileira. Lisboa — Portugal. Ano 9, n. 3, 2023. p. 854.

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Advogada. Pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Público. Presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP. Presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP – Subseção de Amparo. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais – OAB/SP. Vice-Presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis – SOSAFRA.

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