Breve análise sobre o direito de os animais comunitários viverem em condomínios – Parte 2

Em continuidade ao artigo anterior, para finalizar essa breve análise, apresentaremos algumas demandas envolvendo conflitos entre condomínios e animais comunitários, a fim de examinar as interpretações de alguns tribunais brasileiros sobre a possibilidade de estender o direito dos animais comunitários também às áreas de propriedade comum do condomínio.

FRAJOLA, MARISCO, PIRRITA, FANTASMA, MALUQUINHA E PRETINHA (GATOS COMUNITÁRIOS) X CONDOMÍNIO PARQUE DAS ACÁCIAS – JULGADO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA

Não há uma legislação estadual que reconheça os direitos dos animais comunitários no estado da Bahia. No entanto, alguns municípios baianos criaram leis próprias para regulamentar e reconhecer a política de manejo comunitário de animais domésticos. O caso em questão ocorreu na cidade de Feira de Santana, onde também não há uma legislação local sobre animais comunitários. Esta é uma ação ordinária com pedido de tutela antecipada de urgência e obrigação de fazer proposta em 2019 por uma moradora do condomínio Parque das Acácias.

A moradora, uma bióloga proprietária de uma unidade autônoma no Condomínio Parque das Acácias, cuidava de 06 gatos comunitários (Frajola, Marisco, Pirrita, Fantasma, Maluquinha e Pretinha) que viviam nas dependências do condomínio há cerca de 08 anos. Ela era responsável por fornecer alimentação adequada, cuidados médicos veterinários, vacinas, castração e limpeza do local, até que foi notificada sobre a proibição da manutenção dos animais nas áreas comuns do condomínio, bem como, a proibição de alimentar os felinos.

A ação foi ajuizada para, resumidamente, determinar a permanência da colônia de gatos nas áreas comuns do condomínio e permitir a disposição dos utensílios para comida, água e caixa de areia em local de fácil acesso para os animais, pedidos, inclusive, solicitados em tutela de urgência.

Mesmo sem o amparo de legislação estadual ou municipal, a autora da ação fundamentou seu pedido na garantia constitucional da proteção jurídica dos animais, nos princípios gerais do direito ambiental, no princípio da dignidade animal, entre outros, além de leis de outros estados e municípios brasileiros.

O juiz de primeiro grau, como medida liminar, concedeu a tutela antecipada para determinar que o condomínio não retirasse os felinos e que permitisse a disposição de utensílios para comida e água em local de fácil acesso para os animais, sob pena de multa por ato atentatório à dignidade da justiça, sem prejuízos de perdas e danos.

O condomínio apresentou contestação fundamentada, em síntese, na convenção coletiva do condomínio que só admitia animal de pequeno porte nas unidades autônomas, e nos artigos 1277 e 1336, inciso IV, do Código Civil Brasileiro. 

 Foi mencionado também o descontentamento geral dos condôminos diante da criação dos felinos nas áreas comuns do condomínio, que constantemente reclamavam do odor de fezes e urinas dos animais, barulhos à noite e de madrugada, arranhões na chaparia dos veículos, furto de alimentos nas residências, e problemas respiratórios agravados pela existência de pelos nas áreas comuns.

A sentença de primeiro grau determinou a permanência dos animais no condomínio, nomeou a autora como guardiã dos oito felinos e determinou que ela zelasse pela manutenção da saúde e higiene dos gatos e dos outros moradores e frequentadores do local.

No presente caso, é interessante notar que o magistrado, apesar de não haver leis específicas, reconheceu os animais como comunitários, assim como o direito de coexistirem no condomínio, com base na proteção jurídica constitucional, e considerou que o direito à vida do animal se sobrepõe ao direito à propriedade. Vejamos:

A conduta da autora não é irregular e, aliás, é possível, inclusive, que cães e gatos “de rua” cuidados com frequência por determinada comunidade ou pessoa sejam caracterizados como “animais comunitários”, ou seja, animais que não possuem um tutor ou lar específicos, mas que permanecem sob os cuidados de uma ou mais pessoas. (...). Deve-se observar a Constituição Federal, onde estão tutelados juridicamente a vida e o bem-estar, bem como, a obrigação do Poder Público e de toda coletividade o dever de defender e preservar os animais, conforme dispõe o Art. 225, o qual também veda quaisquer práticas que submetam os animais a crueldade. (...) caso estes fossem retirados do seu até então local de convívio e moradia, caracterizando- se abandono caso a propositura do condomínio fosse concretizada. Ainda, quanto a proibir os demais moradores a alimentá-los, no mínimo, caracteriza-se maus tratos, de acordo com a Lei 9605/98. (BAHIA. Tribunal de Justiça. 2ª Vara de Feitos de Relação de Consumo, Cível e Comerciais de Feira de Santana. Processo n°. 8008108-54.2019.8.05.0080. Sentença proferida em 17 de dezembro de 2021, p. 89).

FRAJOLA (GATO COMUNITÁRIO) X CONDOMÍNIO PARQUE RESIDENCIAL MANGARATIBA – JULGADO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO DO SUL


O estado de Mato Grosso do Sul não possui uma legislação estadual referente a animais comunitários. Sua capital, a cidade de Campo Grande, por lei municipal implementou um programa para regularizar a existência de cães e gatos de vida livre que mantenham uma relação de afeto e dependência com tutores voluntários membros de comunidades — Lei Complementar 395, de 1.º de setembro de 2020.

O caso em questão ocorreu no município de Campo Grande, e ganhou grande destaque na imprensa. Trata-se da ação de obrigação de fazer com pedido liminar, movida no ano de 2021 por dois moradores contra o Condomínio Parque Residencial Mangaratiba, com o objetivo de assegurar a permanência do gato comunitário conhecido como "Frajola".

Os moradores alegaram que o felino “Frajola” vivia no condomínio há cerca de 04 anos, lá apareceu ainda filhote e foi cuidado por alguns moradores, estabelecendo, dessa forma, uma relação afetiva e de dependência. “Frajola” era castrado, vacinado, microchipado e estava cadastrado na Prefeitura da cidade como animal comunitário. No entanto, o síndico e outros condôminos não toleravam a presença do gato e o queriam fora do condomínio.

Os autores fundamentaram a ação na Lei Municipal Complementar 395/2020; na Declaração Universal dos Direitos dos Animais; e, no artigo 225, §1º, inc. VII, da Constituição Federal Brasileira. O pedido liminar foi deferido determinando que o Condomínio Parque Residencial Mangaratiba assegurasse a permanência do “Frajola” como animal comunitário do local, sob pena de multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) em caso de descumprimento, sem prejuízo de majoração da multa em caso de recalcitrância.

Em sua contestação, o condomínio alegou que não era parte legítima da ação, uma vez que não é responsável pelo ato praticado pelo síndico ou por qualquer outro morador. Afirmou, ainda, que não havia nenhuma resistência por parte do síndico em manter o "Frajola" no condomínio. A principal queixa dos condôminos era em relação à limpeza dos dejetos do felino, que não era providenciada pelos tutores, que o gatinho fazia suas necessidades em qualquer lugar, afetando, dessa maneira, o bem-estar dos moradores, sendo que alguns optaram por mudarem do condomínio por causa do “Frajola”.

Na sentença A tese de ilegitimidade passiva do condomínio foi rejeitada, e, no mérito, foi reconhecido o direito de o animal comunitário viver nas áreas comuns de um condomínio, determinando-se ao Condomínio a obrigação de não fazer, ou seja, não retirar o gato “Frajola” do local, sob pena de multa no valor de R$20.000,00 (vinte mil reais), sem prejuízo de majoração da multa ou da imposição de medidas mais drásticas em caso de resistência. É interessante notar que a decisão indica que o condomínio se enquadra no conceito de comunidade. Segue trecho da decisão:

Desta maneira, latu sensu, pode-se concluir que condomínio é um tipo de comunidade ou dentro desta está inserido, de maneira que o felino estaria amparado sim pela legislação municipal que garante a proteção ao animal na situação narrada (Art. 3º, da Lei Complementar Municipal nº 395 de01/09/2020). (...) No presente caso, restou incontroverso (...) que o gato Frajola foi criado solto e não consegue ou teria muita dificuldade de ser mantido restrito a locais fechados, tais como os apartamentos daqueles que dele cuidam. (...) Ainda quanto a adoção, existem dois laudos de veterinários que atestam que o bem-estar do animal pode ser prejudicado caso seja removido do local (...). Também foi descrito que o “gato é um animal que tem dificuldade maior de adaptação em determinados ambientes, logo, se retirado do seu habitat e do convívio das pessoas, cheiros, objetos do local”, pode haver prejuízos ao comportamento e saúde física do mesmo, como por exemplo deixar se se alimentar por mais de 72h, o que pode levar a uma patologia chamada Lipidose Hepática, levando-o a óbito. (...) O abaixo assinado acostado às p. 265/66, o qual supostamente atestaria que o animal traz prejuízos ao condomínio (...) entendo que o documento não se encontra revestido de idoneidade suficiente para confirmação do que nele é declarado, pois tais assinaturas não possuem firma reconhecida, (...) mesmo que o referido documento se encontrasse revestido das regularidades formais mencionadas, entendo que a vontade ocasional de um grupo, mesmo que eventualmente majoritário, não suplanta, no presente caso, direitos fundamentais de índole constitucional. (MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça. Processo n°. 0814876- 43.2021.8.12.0110. Sentença proferida em 11 de janeiro de 2022, p. 307-323).

No presente caso, a decisão judicial reconheceu a possibilidade de um animal comunitário viver nas áreas comuns de um condomínio, ponderou, ainda que num entendimento de viés antropocêntrico, que o direito de propriedade não se sobrepunha aos direitos fundamentais dos moradores no que se refere a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana.

MORADOR X CONDOMÍNIO COSTA MARINA E “ORION PINELLI” (FELINO COMUNITÁRIO) – JULGADO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


O estado de São Paulo foi pioneiro em reconhecer a figura do animal comunitário por meio da Lei 12.916, de 16 de abril de 2008. Examinaremos esse interessante caso que ocorreu na cidade de Diadema, no ano de 2020, em que um morador incomodado com a presença do gato comunitário denominado “Orion Pinelli”, que vivia nas áreas comuns do condomínio, acionou o condomínio judicialmente para para que o animal fosse retirado do local.

O morador ajuizou ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de tutela de urgência, alegando que a síndica e o corpo diretivo do Condomínio, mantinham um gato nas áreas comuns do local, colocando vasilhas de água e ração, o que atraía roedores e baratas (vetores de doenças), e, como o felino passava a maior parte do tempo no “playground”, representava grande risco às crianças do condomínio. Basicamente, destacou que o Regulamento Interno do Condomínio proibia a circulação de animais de estimação nas áreas comuns, salvo se estivessem devidamente presos ou nos braços de seu cuidador, requerendo, por fim, que o condomínio fosse condenado a proceder à retirada do felino das suas dependências.

Antes de examinar o pedido de tutela de urgência, magistrada designou uma audiência de justificação prévia, na qual ficou estabelecido que, dentro de 48 horas, o condomínio deveria indicar um interessado em retirar o felino das áreas comuns e mantê-lo consigo, até que o tema da circulação do animal fosse debatido em uma assembleia geral ordinária do condomínio.

O condomínio apresentou laudo médico veterinário que não autorizava a retirada do animal por considerar que tal medida configurava maus-tratos, tendo em vista que se tratava de animal de vida livre que não poderia ser adotado devido à idade avançada, e pela natureza de sua espécie seria impossível a readaptação. Além disso, devido à natureza de sua espécie, sua retirada do ambiente poderia causar a síndrome metabólica, que é uma patologia de felinos, o que o levaria a óbito.

O juízo acolheu parcialmente o pedido de tutela antecipada do morador, alegando que o felino “Orion” não era considerando um animal comunitário, uma vez que não havia assinatura de termo de compromisso de cuidador principal, como determina a Lei Estadual 12.916/2008. O Centro de Controle de Zoonoses foi notificado para retirar e recolhê-lo, onde deveria permanecer até o julgamento final da ação.

O condomínio apresentou contestação, alegando, em suma, que o felino “Orion Pinelli”, que tinha entre 8 e 10 anos, entrou no Condomínio ainda muito jovem, e ali estabeleceu uma relação de afeto e dependência com os moradores do local. Alguns até tentaram adotá-lo, mas “Orion” nunca aceitou viver em uma das unidades, e acabou sendo cuidado por moradores nas áreas comuns, local onde ele havia escolhido morar. Ele era castrado, vacinado, saudável e muito dócil, sendo que nunca houve nenhum episódio de agressão por parte do felino que gozava de enorme prestígio da grande maioria dos moradores. O fundamento jurídico baseou-se na Lei Estadual 12.916/2008, e no artigo 225, §1º, inc. VII, da Constituição Federal Brasileira.

De outro lado, o Centro de Controle de Zoonoses interpôs recurso contra a decisão da Magistrada, sustentando, em síntese,  que o felino “Orion Pinelli” era sim, um animal comunitário, já que era castrado, vacinado e tinha cuidadores. Dado que “Orion” era um animal saudável acostumado a viver ao ar livre, de idade avançada, destiná-lo, nos poucos anos de vida que lhe restava, para viver numa pequena jaula do Centro de Controle de Zoonoses, cercado por outros animais com todos os tipos de doenças e/ou extremamente agressivos, seria como condená-lo à morte, já que sabidamente o processo judicial poderia levar anos. O Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao recurso do órgão municipal e revogou a decisão do juízo de primeiro grau, permitindo, dessa forma, que o felino continuasse vivendo nas áreas comuns do condomínio.

O juízo de primeiro grau julgou a ação do morador improcedente. A sentença considerou que o interesse do animal e sua proteção ao bem-estar e a uma vida de qualidade, constituía bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico nacional, sendo, ainda, sendo, ainda, objeto de preocupação do constituinte, de acordo com o artigo. 225, § 1.º, inciso VII, nestas palavras:

É incontroverso que o felino faz do referido condomínio sua morada e que é ofertado a ele, comida e água, a fim de preservar sua existência. (...) trata-se de entendimento assentado pelo C. Superior Tribunal de Justiça, que o zelo com os interesses do animal, visando sua proteção, qualidade de vida e bem-estar, constitui bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico nacional. (...) visto que o felino presente nesta lide não possui único dono ou dono identificado não deve ser afastada a garantia jurídica com seu bem-estar e sua proteção, questão inclusive objeto de preocupação do constituinte, conforme artigo. 225, § 1º, inciso VII. (...) Incabível, portanto, o cerceamento de seu curso natural, salvo se o felino apresentasse real risco aos condôminos, às pessoas que circulam pelo local ou aos demais animais que partilham da mesma morada, o que não ocorre no presente caso (...). Conclui-se, assim, que a retirada do animal do ambiente que hoje vive, representaria risco à sua vida, principalmente, por se tratar de animal de idade avançada, habituado com a vida livre. Assim, qualquer outra alternativa que não seja garantir que o animal siga seu curso e continue vivendo no local que escolheu ser sua morada, enquadrar-se-ia em crueldade animal, nos termos do artigo constitucional supra citado. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Processo eletrônico n°. 1007579-86.2020.8.26.0161. Sentença proferida em 27 de março de 2021, p. 302/307)

 

Nesse embate em que o felino “Orion Pinelli” teve o apoio do condomínio e do órgão municipal, a sentença reconheceu a supremacia do direito à vida do animal não humano, em face de um mero aborrecimento do proprietário de uma unidade autônoma do condomínio.

Conclusão

Apesar de não existir no Brasil uma legislação federal que regulamente os direitos dos animais comunitário, e ainda que algumas leis em âmbito estadual ou municipal não disponha de forma expressa sobre o exercício desse direito em condomínio edilícios, o que se extrai da análise do ordenamento constitucional e infraconstitucional federal, é a garantia da dignidade animal e a função social e ambiental da propriedade, para além do direito individual humano. Logo, os animais comunitários têm o direito de coabitarem as aéreas comuns de condomínio edilícios, assim como, os condôminos, sensíveis ao sofrimento desses animais, têm o direito de garantir o bem-estar desses seres sencientes. 


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Referência bibliográfica:

FRARE, Agda R.F. Animais comunitários em condomínios na visão do judiciário brasileiro. In: Revista Jurídica Luso-brasileira. Lisboa — Portugal. Ano 9, n. 3, 2023. p. 854.

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Advogada. Pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Público. Presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP. Presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP – Subseção de Amparo. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais – OAB/SP. Vice-Presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis – SOSAFRA.

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