Panorama legislativo do transporte aéreo de animais na cabine de aeronave

Com o avanço do transporte aéreo e a concretização do novo modelo familiar denominado de família multiespécie, a necessidade do transporte passou a transcender o conceito antropológico de transportar o consumidor com seus bens de um local a outro e passou a reconhecer a necessidade de incluir neste transporte os animais como membros da família que merecem um serviço seguro à sua vida, integridade física e psíquica.

Ocorre que, a sociedade evoluiu e os animais não são mais objetos a serem despachados antes do voo, como se fossem bagagem, e essa evolução exige garantir a segurança e bem-estar dos animais, membros da família e detentores de direitos, dentre eles, que sejam transportados em segurança, como resposta à garantia à vida digna e livre de crueldade que a Constituição Federal trouxe. 

Com isso, a antiga Portaria 676 GC de 13 de novembro de 2.000, que permitia o embarque de “animais doméstico”, mas limitava aos cães e gatos, excluindo outras espécies como os coelhos, aves, peixes, dentre outras espécies de animais, se mostrava totalmente ineficaz. 

Igualmente, se dava com a Resolução 400 da ANAC, que remetia às companhias aéreas as “regras próprias” para o transporte aéreo.

Em meio ao hiato regulamentar e após provocação da ANAC em duas demandas coletivas perante a Justiça Federal do Paraná, a ANAC editou a Portaria 12.307 que busca solucionar o problema, ao trazer uma definição mais ampla do que chamou de “animais de estimação”, mas a portaria insiste no mesmo equívoco de entregar às companhias a opção, especista, de eleger quais animais irão transportar.

No entanto, a “regulamentação” realizada pela ANAC não foi o bastante para solucionar os problemas do transporte aéreo, visto que se percebe uma incoerência no transporte aéreo dos animais, muitas vezes enviados no bagageiro, seja pelo tamanho, seja pela espécie.

Isto porque, mesmo reconhecendo e permitindo o embarque de “animais de estimação” e “assistência emocional”, a portaria manteve a “possibilidade” de as companhias embarcarem os animais, espécies, peso que desejarem, mantendo-se, portanto, a exclusão e o mesmo panorama já havido antes da Portaria.

Assim, diante da regra desproporcional e irrazoável, se fez necessária a intervenção do Poder Judiciário a fim de reconhecer, por exemplo, o direito de embarque de animal de outras espécies, tais como coelhos, hamsters, porquinhos da índia, chinchilas, twisters, calopsitas, dentre outras diversas espécies já judicializadas a fim de garantir um embarque não especista, sem que isso signifique sacrificar o direito dos demais passageiros.

Por outro lado, o transporte inadequado no bagageiro gera danos à saúde e vida dos animais, como, por exemplo, os lamentáveis fatos ocorridos em 2021, com o falecimento de dois cachorros em trânsito no bagageiro de uma companhia aérea, tal como amplamente divulgados pela mídia, além do caso Pandora, onde o animal desapareceu durante a conexão no maior aeroporto da América Latina, em Guarulhos e, agora, em 2024, o triste “caso Joca”, com o falecimento deste durante o transporte.

Ou seja, se a cabine é o meio mais seguro de transporte aéreo, sendo este viável, a despeito dos cães e gatos já autorizados, inclusive os “cães guias”, cujo tamanho e raça é ignorado, então conclui-se que todo e qualquer outra modalidade de transporte aéreo é, por si, defeituosa por não respeitar a modalidade mais segura.

No entanto, na prática, a situação é complexa, visto que as companhias aéreas alegam que a presença de algumas espécies atenta contra a segurança e o sossego do transporte aéreo, mas que, na verdade, são importantes temas levantados para assombrar o Poder Judiciário e tentar justificar a manutenção de um especismo e uma restrição ao transporte digno dos animais.

Isto porque, observando outras espécies de animais, tais como coelhos, hamsters, porquinhos da índia, etc., por seu porte e pelo transporte em caixa apropriada, não parece atentar contra à segurança de uma aeronave.

Neste sentido, já se presenciou, lamentavelmente, companhias alegarem em processos judiciais, em defesa dessa “segurança do voo”, que a urina de um coelho poderia corroer a fuselagem de um avião ou, então, que “um porquinho da índia poderia voar pela aeronave”, demonstrando a fragilidade das defesas fáticas e da comprovação deste suposto risco à segurança.

Para enterrar esta alegação, a ANAC, ao editar a Portaria 12.307, fulminou essa manobra de criar pânico no Poder Judiciário, como se um coelho fosse derrubar uma aeronave, ao descrever e permitir o embarque de “animais de estimação”, cujo conceito abrange as espécies que são esquecidas há décadas.

Ou seja, se o transporte aéreo na cabine de um coelho, hamster, ou outras espécies, fossem trazer, efetivamente, um risco à aviação, certamente nunca seriam liberadas pela ANAC, demonstrando, assim, que não há um perigo à segurança do voo, mas sim a falta de intenção das companhias de se atualizarem e se preparem para transportar os animais na cabine, visto que todas essas adaptações e treinamentos em tripulação, se traduzir em despesas que não parecem estar adeptas a encarar.

Igualmente, não se pode alegar uma falta de segurança quanto às doenças transmitidas pelos animais, na medida em que, ao contrário dos animais humanos, os animais seguem rigoroso protocolo de controle sanitário, com a emissão de guias de trânsito animal, às espécies que não são cães e gatos, além de certificado veterinário internacional, à todas espécies, no caso de voos internacionais.

Nestes certificados, tais como nos cães e gatos, é exigida a apresentação de carteira de vacinação, além de atestado veterinário atualizado e, a depender da espécie, exames complementares, como em aves, por exemplo.

Ou seja, ao sentar ao lado de um animal em uma aeronave, podemos afirmar que este animal foi devidamente vacinado, vermifugado e encontra-se livre de endo e ectoparasitas, e que há poucos dias foi avaliado por um veterinário enquanto que, aos animais humanos, assistiu-se toda a polêmica sobre poder, ou não, exigir comprovante de vacina contra a COVID, além de diversos relatos de pessoas que viajam gripadas, com sintomas de coriza ou tosse, comprometendo, muito mais, a segurança dos demais passageiros, porém, neste caso, a situação parece não incomodar as companhias aéreas.

Por fim, o risco de agressões, tais como mordidas, se mostram ainda mais frágeis, na medida em que os cachorros, já são permitidos pelas companhias aéreas, pelo qual não é crível ignorar esse risco a um cachorro abaixo de 7 quilos, mas usar como restrição o risco de uma mordida quanto aos coelhos.

Neste sentido, o caminho trilhado, até então, tem sido buscar no Poder Judiciário a correção da distorção criada pelas companhias - e mantida pela ANAC - com o reconhecimento da crueldade do meio inadequado de transporte aéreo e com a eliminação do especismo, trazendo a viabilidade de embarque das diversas espécies.

Estas provocações individuais, têm resolvido, em geral, as situações de diversas famílias, embora haja, por óbvio, decisões contrárias que insistem em reforçar a pseudo liberdade das companhias aéreas de eleger as espécies, e peso, para o transporte na cabine. Diga-se pseudo, pois em outras searas, como na vedação a discriminações de raça, religião e gênero o Estado já restringe a liberdade das companhias, porém, quanto ao especismo, parece ignorar a mesma discriminação, validando a postura de levar uma espécie e vedar outra.

Igualmente, não pode o Poder Público, assim como as empresas que prestam serviços à coletividade, se blindar contra a revolução cultural que a sociedade atravessa com o fortalecimento da família multiespécie, cujo caminho é irretroativo no avanço da inclusão dos animais no dia a dia da sociedade e, com isso, nos transportes aéreos, vista a existência de uma inegável dignidade animal e proteção Constitucional contra a crueldade.

Assim, espera-se que, tal como uma alergia que pode se originar de um perfume de outro animal humano, cuja situação é resolvida por diversos meios pela companhia aérea, que eventual alergia à pelagem de um animal tenha igual tratamento e não que sirva como um conivente “escudo” para se escusar da prestação do serviço, até porque não se cogita às companhias a liberalidade de anunciar “não levamos passageiros com perfume”, correto?

Então, nesta linha, percebe-se que as entraves ao transporte aéreo, mais do que fáticas ou jurídicas, são, em verdade, culturais, que vêm alimentando um especismo, cuja sociedade parece aceitar, com maior facilidade, um transporte de um cachorro e um gato, mas cuja covardia das companhias, vem alimentando um especismo, deixando de fora, à míngua e sob risco de morte, outras espécies, cujas famílias precisam viajar.

Com isso, não é possível concordar com a tímida portaria 12.307, cuja vigência permitiu o transporte inadequado do Joca, que lhe custou a vida, e precisamos partir de uma efetiva evolução onde os animais sejam tratados como o objetivo do transporte aéreo e não como um acessório, que é adaptado para o pouco espaço que sobrar na aeronave, pois, só assim, teremos um transporte digno e merecido aos animais. 



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Referências bibliográficas

ATAÍDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 13, n. 03, 2018.

RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2 ed. (ano 2008), 4ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2012. p. 188-189.

BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, Ação Civil Pública nº. 5000389-28.2022.4.04.7000.

BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, Ação Civil Pública nº. 5045589-92.2021.4.04.7000.

LEANDRO FURNO PETRAGLIA

Advogado. Doutorando em direito público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Derecho del trabajo e relaciones internacionales pela Universidad Tres de Febrero – UNTREF. Pós-graduado em Direito do trabalho individual e coletivo, material e processual pela Escola Paulista de Direito. Pós-graduado em Direito constitucional pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Especialista em Direito Animal pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Especialista em Direito Animal pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU.

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