Da proporcionalidade nos crimes de maus-tratos contra animais não humanos e humanos

Em setembro de 2020 foi publicada a Lei n. 14.064, vulgarmente conhecida como Lei “Sansão”, nome alusivo ao caso de um cão da raça pitbull que foi cruelmente agredido, amordaçado com arame farpado e teve suas patas traseiras decepadas, gerando grande revolta e comoção social. A referida Lei acrescentou ao art. 32 da Lei n. 9.605/98 (referente a maus-tratos contra animais) o §1º-A, trazendo a modalidade qualificada de maus-tratos, de modo a elevar a pena do crime em caso da infração contra cães e gatos: “Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda".

A alteração permitiu a retirada do crime de maus-tratos contra cães e gatos da esfera dos Juizados Especiais Criminais, em que os autores facilmente eram agraciados com a conversão da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Desta forma, a conduta, ao deixar o terreno dos crimes de menor potencial ofensivo, deixou de permitir a suspensão condicional do processo, composição civil dos danos e a transação penal.

Entende-se também pela não aplicabilidade ao tipo qualificado de maus-tratos o Acordo de Não Persecução Penal, previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal para os crimes com pena mínima de até quatro anos e cometido sem violência ou grave ameaça. Neste caso, apesar de a pena mínima do crime de maus-tratos contra cães e gatos se enquadrar no limite estabelecido pelo referido instrumento jurídico, compreende-se que o termo “violência ou grave ameaça” no art. 28-A do CPP não vem delimitado apenas a seres humanos.

Fato é que o objetivo da Lei “Sansão” foi o de coibir os maus-tratos contra as espécies mais ameaçadas pelo crime, e que convivem com o ser humano na condição de animais de estimação e família multiespécie. Adentrando ao princípio da proporcionalidade, pode-se dizer, entretanto, que a Lei “Sansão” privilegiou determinadas espécies de animais em detrimento de outras, configurando o que se chama de “especismo eletivo”, o qual, segundo Sônia T. Felipe:

(...) discrimina todos os animais excluídos de cada uma das leis especiais, em função de não representarem a espécie que desperta em nós compaixão moral e consideração política. Esta forma de especismo tem um componente eletivo pois está diretamente fundada sobre nossas predileções particulares, nossos afetos, emoções ou interesses econômicos.[1]

Desta forma, não parece razoável privilegiar determinadas espécies em detrimento de outras igualmente sencientes, não sendo válido o simples argumento de cães e gatos sejam os animais que mais sofrem com os maus-tratos em nossa sociedade. Neste sentido, portanto, há flagrante violação ao princípio da proporcionalidade, uma vez que o legislador prevê penas diferentes para atos crueis cometidos contra seres (sujeitos passivos e sujeitos de direitos) igualmente sencientes, tutelando-se o mesmo bem jurídico (dignidade animal).

Passando-se à comparação da pena cominada pela Lei “Sansão” ao crime qualificado de maus-tratos a cães e gatos com a pena cominada para os crimes – passíveis de analogia - de maus-tratos e lesão corporal, dispostos no Código Penal, primeiramente é necessário um estudo dos tipos penais, para que seja delimitado objetivamente o alcance da comparação a ser feita.

Desta maneira, devem ser analisados os casos concretos subjacentes, uma vez que grande parte das condutas descritas como maus-tratos a animais seriam mais precisamente correlatas ao crime de lesão corporal (art. 129, CP), e não de maus-tratos (art. 136, CP). A título de exemplo, considerar-se-á a conduta de maus-tratos a um cão ou gato, com perda ou inutilização do membro, sentido ou função.

Com relação este crime, a pena restritiva de liberdade cominada é de reclusão, de 2 a 5 anos. Trata-se o sujeito passivo (animal) de um ser senciente; extremamente vulnerável, cuja sobrevivência dependente do ser humano; que não possui a habilidade da fala articulada; não expressa sentimentos e sensações de dor, fome, frio exatamente como os seres humanos, e diferentemente destes, pode facilmente ser descartado por seu tamanho e falta de exigência legal de registro. Além disso, destaca-se que os animais sempre possuíram tratamento jurídico aquém do dispensado aos seres humanos, tendo pouca relevância para o Poder Judiciário.

Quanto ao crime de maus-tratos contra ser humano que resulte em lesão corporal de natureza grave (art. 136, §1º, CP), destaca-se, primeiramente, que se trata de um crime classificado como crime de perigo, deste modo, para sua configuração, basta a ameaça de lesão ao bem jurídico; e próprio, ou seja, apenas o comete quem possui com o sujeito passivo relação jurídica de autoridade, guarda ou vigilância, para fins de educação, tratamento ou custódia. 

A título de uma hipotética comparação deste com o crime de maus-tratos contra cão ou gato, deve-se considerar o crime contra o ser humano em sua agravante do §3º (crime praticado contra pessoa menor de 14 anos), tendo em vista a característica compartilhada da vulnerabilidade. Neste caso, a pena privativa de liberdade cominada é de 4 a 12 anos de reclusão, aumentada de um terço.

Já com relação ao crime de lesão corporal de natureza gravíssima (art. 129, §2º, III, CP), a pena cominada é de reclusão, de 2 a 8 anos, considerando-se também o dispositivo que prevê como causa de aumento pessoa em situação de vulnerabilidade (art. 129, §11, CP). Desarrazoado seria, portanto, comparar, na condição de sujeito passivo, um animal indefeso e um ser humano adulto sem deficiência.

Assim sendo, com base em uma adequada comparação, as penas restritivas de liberdade cominadas aos referidos crimes (maus-tratos ou lesão corporal com perda ou inutilização do membro, sentido ou função) são as seguintes: a) maus-tratos contra cão e gato: 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão; b) maus-tratos contra as demais espécies de animais sencientes: 3 (três) meses a 1 (um) ano de detenção; c) maus-tratos contra ser humano vulnerável: 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão; d) lesão corporal de natureza gravíssima contra ser humano vulnerável: 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão.

Consubstancia-se, portanto, o entendimento pela não violação da regra da proporcionalidade ao se comparar o crime de maus-tratos contra cães e gatos, especificamente, e os crimes correlatos aos seres humanos (vulneráveis). Soma-se a essa análise a importância de se levar em conta o fato de que as penas para os crimes contra os animais não são e nunca foram aplicadas pelo Poder Judiciário com o mesmo rigor daquelas cominadas aos seres humanos, principalmente os vulneráveis. Daí a imprescindibilidade de se considerar a regra da proporcionalidade aliada ao princípio da equidade, para que se chegue a um modelo de  dispositivo penal justo e adequado.

Por outro lado, pode-se dizer que há violação da regra pela Lei “Sansão” na diferenciação de tratamento jurídico-penal dado ao crime de maus-tratos contra cães e gatos e o crime de maus-tratos contra todas as demais espécies sencientes, ainda considerado crime de menor potencial ofensivo. 




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Referências bibliográficas


[1] FELIPE, Sônia T. Dos direitos morais aos direitos constitucionais para além do especismo elitista e eletivo. Revista Brasileira De Direito Animal, vol. 2, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.9771/rbda.v2i2.10300. Acesso em: 22jun2024.

[2] TOLEDO, Maria I V. Repensando o postulado da proporcionalidade à luz do Direito Penal Animal no Estado Democrático de Direito. Em: Direito Penal dos Animais não humanos: reflexões hispano-brasileiras. Org. TOLEDO, Maria I V; FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha. 1ª Edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.

MARIA IZABEL VASCO DE TOLEDO

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Mestre em Direito Público - Relações Sociais e Novos Direitos - Núcleo de Bioética e Direitos dos Animais - pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Público. Servidora pública.

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