O princípio da substituição e a zootecnia celular

O princípio da substituição também deriva do princípio da dignidade animal (Constituição, art. 225, § 1º, VII), mas se consolida no plano infraconstitucional, por meio de duas leis federais: 

a) Lei 9.605/1998, a qual, em seu art. 32, § 1º, tipifica, como crime contra a dignidade animal, a realização de “experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos” (grifo nosso); e 

b) Lei 11.794/2008 (Lei Arouca), segundo a qual compete ao Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) “monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa” (art. 5º, III).

Esses dispositivos legais deixam claro que a utilização de animais em experimentos científicos, especialmente naqueles dolorosos e cruéis, somente é admissível quando não existirem métodos, técnicas ou recursos alternativos.

O estado de coisas a ser promovido pelo princípio da substituição é a adoção compulsória dos métodos alternativos disponíveis, que substituam a utilização de animais para fins humanos, como na experimentação científica.

A generalização dessa normatividade, a partir dessas duas leis federais, como imperativo de proteção da dignidade animal, conduz ao princípio da substituição: em qualquer área na qual animais sejam instrumentalizados (não apenas nas pesquisas científicas), havendo método substitutivo ou alternativo para se obter o mesmo resultado, em condições similares, sem a utilização de animais, esse método se torna obrigatório.

Legalmente, esse princípio aparece, pela primeira vez, no art. 2º, V, da Lei 3.917, de 20 de dezembro de 2021, do Município de São José dos Pinhais/PR, segundo o qual “sempre devem prevalecer os métodos alternativos disponíveis que substituam a utilização de animais para fins humanos”. 

No âmbito estadual, também passou a constar, expressamente, da Lei 15.226/2014, do Estado de Pernambuco, alterada pela Lei 18.031/2022, que acrescentou o art. 1º-A, para dizer que a proteção dos animais observará o “princípio da substituição ou da alternatividade”, segundo o qual “sempre que possível devem prevalecer, nesta ordem, os métodos disponíveis substitutivos ou alternativos ao uso de animais para fins humanos” (art. 1º-A, V).

Nota-se, portanto, que o princípio da substituição tem aderência ao ordenamento jurídico brasileiro: sendo possível a substituição, o animal não deve ser utilizado.

Incluímos esse princípio do Direito Animal na doutrina animalista[1], a partir das interlocuções com a Prof.ª Dr.ª Carla Forte Maiolino Molento, do Laboratório de Bem-Estar Animal (LABEA)[2], da Universidade Federal do Paraná.

A Prof.ª Carla Molento é uma das cientistas brasileiras que lideram as pesquisas com a carne cultivada em laboratório ou zootecnia celular, por meio da qual se substitui “a produção e a entrega de produtos feitos tradicionalmente pela criação de animais por meio de novas formas que requerem nenhum envolvimento animal, ou um envolvimento significativamente reduzido”[3].

A propósito, nos dias 8 a 11 de julho de 2024, acontecerá, em Curitiba/PR (Anfiteatro do Bloco Didático do Setor de Ciências Agrárias da UFPR), a I Conferência Internacional Cell Ag Brazil e I Encontro NAPI Proteínas Alternativas, com várias palestras e painéis sobre os diversos aspectos envolvidos na tecnologia da carne cultivada em laboratório, sem a morte de animais.[4]

Fica a pergunta: uma vez consolidada a tecnologia de carne cultivada em laboratório, o princípio da substituição não tornaria obrigatória a adoção dessa técnica, transformando a pecuária tradicional em pecuária celular?

Mais uma: a zootecnia celular não vem para realizar as promessas do abolicionismo animal?

Não é possível esconder que as novas tecnologias para a produção da proteína de origem animal constituem a melhor forma de realização do princípio da substituição, especialmente na pecuária e na pesca, onde se encontram os animais hipervulneráveis, com capacidade jurídica reduzida e sujeitos à cotidiana sonegação de seus direitos fundamentais.



__________

Referências bibliográficas


[1] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 103-104.

[2] Sobre o LABEA, consultar informações em: http://www.labea.ufpr.br/. Acesso em: 6 jun. 2024.

[3] CRUZ, Francisca Giselle da. Introdução à zootecnia celular: um relato de experiência. Disponível em: https://ciagro.institutoidv.org/ciagro2022/uploads/384.pdf. Acesso em: 6 jun. 2024. 

[4] Informações em: https://www.even3.com.br/confcellagbrazilnapi/. Acesso em: 6 jun. 2024.

VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR

Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFPR e da UFPB (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

Anterior
Anterior

Da proporcionalidade nos crimes de maus-tratos contra animais não humanos e humanos

Próximo
Próximo

Teoria do Link (Elo): Maus -Tratos aos Animais e Violência Contra Pessoas – Prevenção Primária aos Crimes de Violência Doméstica