Teoria do Link (Elo): Maus -Tratos aos Animais e Violência Contra Pessoas – Prevenção Primária aos Crimes de Violência Doméstica

Se aqui fosse os Estados Unidos e a polícia recebesse um alerta de crimes seriais (estupros, homicídios, por exemplo) ocorridos em uma determinada localidade, sem qualquer dado ou informação sobre um possível autor, o início da investigação seria realizado a partir da pesquisa de criminosos autuados por maus-tratos aos animais [1] que fossem moradores próximos dessa área.

Sim, esse é um procedimento - padrão adotado pelo Federal Bureau Investigation - FBI, desde os anos de 1970 e que foi aperfeiçoado recentemente com a unificação das bases criminais inseridas no novo Sistema Nacional de Relatórios Baseados em Incidentes – NIBRS, onde há coleta específica de dados e informações sobre maus-tratos a animais [2]

A atenção do FBI para os casos de maus-tratos aos animais não está relacionada diretamente à proteção animal e sim nas ciências policiais, ou seja, em pesquisas científicas criminológicas que indicam características especiais no perfil dos criminosos que praticam maus-tratos aos animais e que têm propensão de cometerem outros crimes, especialmente os violentos.

Os traços nesse perfil são fruto de ampla avaliação de homicidas e outros criminosos violentos, inclusive crianças [3], submetidos a entrevistas e pesquisas desde a década de 60 do século passado, as quais foram incorporadas na chamada Teoria do Link ou do Elo, cunhada por Phil Arkow e Frank Ascione em 1999 [4].

Alguns aspectos relevantes do perfil observado em criminosos que praticam ou praticaram maus-tratos aos animais com maior frequência são: histórico de uma família desagregada e violenta, uso de álcool e drogas e maus-tratos aos animais, ter sido vítima de violência doméstica, ter nível de agressividade maior do que os demais criminosos que não praticam maus-tratos aos animais, ser insensível aos direitos das demais pessoas, praticar maus-tratos aos animais na infância e adolescência, ter maior probabilidade de praticar outros crimes em relação às pessoas que não praticam maus-tratos aos animais.

Por isso essas características têm especial atenção do FBI para serem investigadas em crimes seriais e, obviamente, um maior número de resolução desses crimes têm ocorrido a partir dessa metodologia. 

Ou seja, há indicações científicas de que os criminosos que praticam maus-tratos aos animais apresentam maior probabilidade de cometer outros crimes, especialmente os violentos, o que enseja interesse nesses criminosos para o início de uma investigação criminal visando apuração da autoria e materialidade de crimes seriais.

Por outro lado, aqui no Brasil, não há uma base criminal unificada e acessível online às forças de segurança relacionada aos crimes em geral, muito menos para o crime de maus-tratos aos animais, nem a compreensão das instituições, responsáveis pela persecução criminal, da relação entre os maus-tratos aos animais e a violência contra as pessoas, pese as pesquisas científicas nacionais realizadas sobre o tema, desde 2011, também indicarem essa relação.

Em geral, a compilação dos dados de ocorrências de crimes, inclusive de maus-tratos aos animais, dá-se pelo lançamento de um código no sistema informatizado utilizado pelas forças de segurança. Como no Brasil, conforme o art. 144 da Constituição Federal, há diversos órgãos integrantes da segurança pública nos 3 entes políticos, incluídas as Guardas Municipais, tais sistemas e codificação são criados e geridos por cada uma delas para atender suas demandas específicas, não se comunicando com os sistemas utilizados pelos demais órgãos. 

E a não unificação das bases de dados e demais informações relacionadas aos crimes certamente contribui para o baixíssimo índice nacional de apuração de crimes, especialmente homicídios [5] e não permite um olhar mais apurado para geração de políticas públicas relacionadas às ações de prevenção primária para evitar crimes futuros.

Como visto, pessoas que praticam maus-tratos aos animais, diante da própria família, propagam violência familiar ensinando às crianças e adolescentes que crescem internalizando a normalidade dessa conduta, transferindo-a mais tarde também na forma de violência doméstica e atos de maus-tratos aos animais. É um ciclo contínuo de violência familiar que se transmite e que precisa ser identificado, e no dizer dos pesquisadores da Teoria do Link, “quebrado”. 

O Brasil vem batendo recordes anuais de estupros, com 74.930 ocorrências em 2022, sendo que destes, 56.820 foram de crianças com idade entre 0 e 13 anos e 64,4% dos autores são da própria família das vítimas [ 6 ], por isso, formas de identificar, evitar e combater esses crimes tornam-se cada vez mais urgentes, pois os estupros e todas as outras formas de violência doméstica tendem a ser permanentes e perdurarão até que os autores sejam identificados e o elo, quebrado.   

Há inúmeros casos registrados de vítimas que permanecem sofrendo violência de todas as formas, em silêncio, seja pelo receio de sair de casa e ver outros membros da família, inclusive seus animais de estimação, também serem vítimas dos mesmos crimes ou simplesmente por não terem coragem de sair. Assim, uma das formas de detectar esses crimes é por meio do atendimento das denúncias de maus-tratos aos animais que geralmente ocorrem de forma simultânea nessa família. Animais maltratados, como diria Fernando Tapia, em 1971 [3], são uma “bandeira vermelha” para ocorrências de violência doméstica. 

E se você ainda não tinha percepção dessa realidade, basta ler o pioneiro trabalho da psicóloga Maria Padilha [7] que identificou, em 2011, em 543 mulheres vítimas de violência doméstica, que 50% delas tiveram seus animais de estimação mortos, ameaçados ou feridos pelos mesmos autores da violência doméstica que eram seus cônjuges ou ex-cônjuges. 

Eu mesmo apurei em 2013, em minha pesquisa sobre os autores dos crimes de maus-tratos aos animais [8], que 1/3 dos 643 autuados pela Polícia Ambiental paulista, no período de 2010 a 2012, tinham diversos registros de crimes violentos, sendo ao menos 50% de lesões corporais, indicando a clara relação das pessoas que praticam maus-tratos aos animais e outros crimes violentos. 

Da mesma forma, em 2021, Laiza Bolena Gomes [9], no primeiro doutorado nacional sobre a Teoria do Link, concluiu que as mulheres vítimas de violência doméstica na região metropolitana de Belo Horizonte foram mais frequentemente vítimas por seus cônjuges ou ex-cônjuges com a violência do tipo psicológica, moral e física sendo as mais praticadas e ainda, que em parte dos lares onde havia animais de estimação, estes sofriam algum tipo de maus-tratos, sendo o espancamento e agressão psicológica as formas mais frequentes. 

Ela também constatou que as crianças e adolescentes, filhos das mulheres vítimas, frequentemente sofriam violência pelos mesmos agressores e estes estavam em risco quando havia consumo de álcool no ambiente familiar.   

Desta forma, urge um olhar mais amplo ao necessário atendimento de ocorrências de maus-tratos aos animais, pois naquele ambiente familiar outras vítimas, humanas ou não humanas, podem estar sofrendo as mesmas violências perpetradas aos animais de estimação, ou seja, os maus-tratos aos animais em um ambiente familiar precisam ser apurados como ocorrência de violência doméstica, verificando-se a existência de outras vítimas nessa mesma família para que o “link seja quebrado”.


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Referências bibliográficas

[1] Utilizamos aqui maus-tratos aos animais como gênero para todas as ações de maus-tratos previstas no art. 32 da Lei federal nº 9.605, de 1998. 

[2] https://www.fbi.gov/how-we-can-help-you/more-fbi-services-and-information/ucr/nibrs

[3] TAPIA, Fernando. Children Who Are Cruelty to Animals. In: LOCKWOOD, Randall; ASCIONE, Frank R. (Ed.). Cruelty to Animals and Interpersonal Violence: Reading in Research and Application. Indiana: Purdue University Press, 1997. p. 132-139.

[4] O link (elo) é um adulto que abusa de uma criança ou animal como resultado dele ter sido testemunha de um abuso ou ter sido abusado, ele mesmo. Violência doméstica, abuso infantil e crueldade animal estão intimamente conectados uns aos outros e o círculo continuará até que seja quebrado.  ASCIONE, Frank R.; ARKOW, Phil (Ed.). Child Abuse, Domestic Violence and Animal Abuse: Linking the Circles of Compassion for Prevention and Intervention. Indiana: Purdue University Press, 1999. 

[5] https://soudapaz.org/noticias/brasil-esclareceu-apenas-1-em-cada-3-homicidios-nos-ultimos-7-anos-veja-serie-historica-do-estudo/

[6] https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/a6c693ef-2396-4504-bd76-9e3062c82704/content

[7] PADILHA, Maria José Sales. Crueldade com Animais X Violência Doméstica Contra Mulheres: Uma Conexão Real. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2011.

[8] NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Maus-Tratos aos Animais e Violência Contra Pessoas: A Aplicação da Teoria do Link nas Ocorrências da Polícia Militar Paulista. São Paulo: Edição do Autor, 2013.

[9] GOMES, Laiza B. A conexão entre as violências: um diagnóstico da relação entre os maus-tratos aos animais e a violência interpessoal. 2021. 158 f. Tese (Doutorado em Ciência Animal) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021. 

ROBIS NASSARO

Advogado e Consultor Ambiental, Mestre e Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, Especialista em Direito Penal Ambiental, Ex- Conselheiro do Conselho Estadual de Meio Ambiente - CONSEMA do Estado de São Paulo e Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA. Coronel da Reserva da Polícia Millitar paulista, com atuação, por 25 anos, na Polícia Militar Ambiental. Conselheiro Consultivo da Ampara Animal. Pesquisador e Palestrante sobre a Teoria do Link no Brasil.  Instagram: @robisnassaro Email: mrobis@uol.com.br      

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