Responsabilidade penal decorrente do transporte de seres vivos

Há muito, causa preocupação a aparente insensibilidade das empresas de transporte com a forma como os seres sencientes não humanos são por elas tratados, regra geral, transportados como carga, em condições inadequadas para a preservação do bem-estar mínimo e de suas integridades, expostos a riscos extremos, até mesmo, de morte. 

Desde o texto de minha autoria, publicado em 2015, na Revista do Conselho de Estudos Judiciário (CEJ), intitulado O atraso brasileiro no reconhecimento da condição de sujeito aos animais, alerto para o fato de que é inaceitável o transporte como carga de seres capazes de experimentar sentimentos, como o medo e a dor.

Isso decorre da total incompatibilidade de referido tratamento para com a compreensão atual, da condição de vida das espécies animais não humanas, importante para o próprio desenvolvimento do planeta, dentro da ótica ambiental, desconsiderando, também, o avanço   científico, o qual aponta a capacidade desses seres de ter dor, medo, enfim, de sentir, estabelecendo um novo patamar ético na relação dos seres humanos com eles.  

Mais recentemente, a opinião pública foi sensibilizada por essa questão, ao tomar conhecimento da morte do cãozinho Joca dentro de uma aeronave da companhia aérea Gol.

A verdade é que, os métodos de transporte dos seres sencientes não humanos, pelas companhias áreas, é absolutamente ultrapassado e gerador de sofrimentos e riscos evidentes de lesões,  extravio e morte, demonstrando total inadaptação às novas exigências da sociedade contemporânea e colocando o Brasil, neste quesito, como totalmente fora dos padrões internacionais. 

A horrível morte de Joca, exposto a intenso sofrimento, fez surgir várias indagações, mudanças de normativas, havendo ainda alguns questionamentos em relação à hipótese constituir ou não ilícito penal.

Não ingressando no tema da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, prevista na lei dos crimes ambientais, mas, objeto de críticas em meus escritos específicos em matéria penal, pelo confronto representando com a estrutura dogmático-penal (Manual de Direito Penal: parte geral. Tirant lo Blanch: Florianópolis, 2018.), cabe afirmar que a responsabilidade penal de pessoas físicas se faz presente, sem a menor dúvida.

Claramente a hipótese se ajusta no delito previsto nos §§1º e 2º do artigo 32 da Lei nº 9605/1998:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.     

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.


Inexiste dúvida de que a forma como se deu o transporte de Joca, somada à sua submissão a condições climáticas inadequadas, ausência de cuidados básicos, como fornecimento de água, caracterizam a conduta de maus-tratos a animais e, sobrevindo sua morte, a hipótese é de pena de 2(dois) a 5(cinco) anos, aumentada de ⅙ a ⅓, acrescida da multa e da proibição da guarda de animais.

Não há dificuldade hermenêutica alguma nesse aspecto, porém, algumas indagações surgem no campo da autoria, em especial, quando desconsiderada a responsabilidade penal da pessoa jurídica. 

Destarte, há que se considerar autoras as pessoas atuantes ativamente no transporte, quando da ocorrência do fato, pois elas,  ao fazerem a opção por manter o cão em condições inadequadas, com exposição a sofrimento, atuaram com dolo direto de maus-tratos, contando com plena previsibilidade objetiva da possibilidade da produção do resultado morte. 

Igualmente, a responsabilidade penal recai, em tese, nos gestores da empresa, em especial os responsáveis por estabelecer as regras internas de transporte dos seres sencientes não humanos, bem como, àqueles que têm o dever de orientar os cuidados a serem adotados nessa hipótese.

Claramente se está tratando de garantes, na forma do artigo 13, §2º, letra c do Código Penal, o qual estabelece:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. 

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.


 Na hipótese, com o comportamento anterior de fixar regras ou orientações inadequadas ou deixar de fixá-las é criado o risco da ocorrência do resultado de sofrimento, lesão e morte dos animais transportados.

De igual forma, a falha no sistema de treinamento representa omissão geradora do risco da ocorrência do resultado de ofensa ao bem jurídico, o que, sob o ponto de vista penal, situa o problema na regra em análise que trata dos garantes.

Assim sendo, não há dúvidas, a exposição ao sofrimento, aos maus-tratos e, em caso extremo, à morte de seres sencientes não humanos, quando transportados pelas companhias aéreas, permite a responsabilização penal, tanto dos agentes que diretamente atuaram na ocasião do transporte, em suas diferentes etapas, assim como dos gestores, a quem incumbe a definição de regras, o estabelecimento de treinamentos, o controle e a fiscalização sobre a forma adequada e segura de efetuar o transporte. 

Dessa forma, o transporte de seres sencientes não humanos pelas companhias aéreas dista do transporte de cargas, afinal, a clara diretriz emanada do conteúdo penal é de que há relevância no cuidado com as diferentes espécies animais, pois, a agressão ao bem-estar delas representa ofensa a bem jurídico relevante.

Isso é decorrência da estrutura constitucional, na medida em que a proclamação do artigo 225, inciso VII, da Carta Maior, faz a vida animal e seu bem-estar destacarem-se como bens jurídicos relevantes no Brasil, sendo a matéria passível de disciplina pelo Direito Penal.

Uma sociedade continuamente é desafiada a repensar comportamentos, ajustando-se aos avanços que a civilização humana produz e, em relação aos seres sencientes não humanos, o atual momento é de redimensionamento das relações e das formas de interação, fazendo com que práticas normalizadas no passado, como o transporte deles como carga, sejam atualmente consideradas abjetas e hostis ao próprio estágio evolutivo da sociedade. 

Com isso, a estrutura do sistema jurídico-penal também evolui para emanar efeitos sobre campos antes ignorados, sendo a preservação do bem-estar e da vida animal um desses campos, fazendo situações como os maus-tratos e a morte por transporte inadequado assumirem espaço relevante no sistema, de sorte que não é aceitável, em situações extremas como a de Joca, seja ignorada a responsabilidade penal, em seus diferentes níveis de autoria.

ADEL EL TASSE

Desempenha a atividade de Magistério na cadeira de Direito Penal em cursos de pós-graduação em diferentes instituições de ensino. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor do Curso CERS (Recife/PE) e no Curso Jurídico (Curitiba/PR). Mestre em Direito Penal e Doutor em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Conselheiro de Direitos Humanos do Município de Curitiba. Membro da Comissão Estadual de Proteção e Direito dos Animais da OAB/PR. Membro da Comissão Estadual de Direitos Humanos da OAB/PR. Membro da Comissão Estadual de Advocacia Criminal da OAB/PR. Autor de vários livros e artigos científicos (ID Lattes: 1185470936747459).


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