ASSOCIAÇÃO MATA CILIAR AMEAÇADA DE DESPEJO: A FAUNA PEDE SOCORRO
Maternidade da Associação Mata Ciliar: cuidados especiais na nutrição, aleitamento e aquecimento de filhotes órfãos. (foto: site AMC)
A Associação Mata Ciliar (AMC), entidade sem fins lucrativos fundada em 1987, tornou-se ao longo de seus 38 anos de existência uma das maiores referências brasileiras na conservação da biodiversidade, especialmente no recebimento e cuidados à fauna silvestre vítima de caça ilegal, tráfico, queimadas, ocupação irregular do solo, eletrocussão, atropelamentos e outras tantas situações de violência sofridas pelos animais que são trazidos pela Polícia Militar Ambiental e outros órgãos ambientais. Não é à toa que o trabalho que ela desenvolve em Jundiaí, como Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), já registra mais de 32 mil espécies atendidas e 11 mil restituídas à natureza. Afora esse esforço diuturno voltado ao atendimento veterinário, processo de reabilitação e preparo para eventual reintegração das espécies a seu habitat, a Instituição desenvolve outras atividades de preservação/conservação da fauna silvestre. Uma delas é o Centro para Conservação dos Felinos Neotropicais, em parceria com o Zoo Botanic Garden/EUA, cuja importância à biodiversidade já obteve reconhecimento internacional. A Associação Mata Ciliar, aliás, detém o pioneirismo no nascimento de uma onça pintada com a técnica de transferência de embriões.
Reconhecida como entidade de utilidade pública federal, a Associação Mata Ciliar atua mediante parcerias com instituições privadas, poder público e sociedade. Seu trabalho em favor do meio ambiente é amplo e promissor. No tocante à flora, ela mantém, na sede, um viveiro de mudas nativas; na área da preservação dos recursos hídricos promove cursos de extensão rural; na educação ambiental fomenta, nos jovens, a sensibilização pela vida. Em relação à fauna silvestre, abriga no local cerca de 1.500 animais. Quanto às espécies ameaçadas de extinção, acolhe felinos como onças-pardas, onças-pintadas e jaguatiricas. Também desenvolve projetos específicos em prol do lobo-guará, com a construção de um amplo recinto para sua reabilitação, assim como em favor do primata bugio, cuja presença na região foi drasticamente afetada, anos atrás, por um surto da febre amarela. Sobre este tema específico, relacionado ao controle das zoonoses, a Associação Mata Ciliar sediou, em 2024, um concorrido encontro nacional sobre Centros de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres que reuniu nas dependências da associação – durante três dias – órgãos federais, estaduais e municiais, como IBAMA, PMA, CETAS, SMA, GCM e CCZ, além de diversos CRAS, gerando com isso grupos de estudo que redundaram em protocolos de atuação.
O local em que se encontra instalada a Associação Mata Ciliar, uma área florestal de aproximadamente 330.000 m2 ao lado do aeroporto de Jundiaí, vem se estruturando desde 1995, após cessão do terreno pelo Centro Paula Souza e formalização de convênio voltado à prestação de serviços pedagógicos aos alunos da Escola Agrícola.
É importante dizer, ainda, que no terreno desde então disponibilizado ao serviços da Associação Mata Ciliar, além dos recursos naturais como mata preservada, curso d´água e várzea, foram construídos vários recintos para felinos, lobo-guarás, aves, símios e outras tantas espécies, assim como unidades de recepção, centro cirúrgico, maternidade, quarentena, viveiros de reabilitação e o centro de pesquisa onde se desenvolvem estratégias para a conservação dos felinos neotropicais, que se tornou referência internacional. Vale dizer que a Associação Mata Ciliar foi pioneira na técnica de Transferência de Embriões que gerou, com êxito, uma onça-pintada, além de ser a primeira instituição da América Latina a ter sucesso no nascimento de um animal selvagem de proveta.
Tudo isso, entretanto, não foi considerado pelo consórcio privado que recentemente passou a gerenciar os aeroportos paulistas. Devido a pretensos interesses econômicos na área reivindicada, a nova administração regional aeroviária propôs uma ação de reintegração de posse contra a Associação Mata Ciliar, notificando-a a deixar o local em 48 horas. Houve imediata reação popular mediante vigília da sociedade civil em favor da associação e das centenas de animais ali acolhidos. Mas o inusitado processo ainda se encontra em andamento, agora em fase de perícia judicial. Espera-se que o Poder Judiciário tenha a sensibilidade para reconhecer o direito de a Associação Mata Ciliar ficar onde se encontra legalmente e sem oposição há mais de 30 anos, realizando seu essencial trabalho de utilidade pública em defesa de milhares de animais silvestres submetidos a todo tipo de violência, privação e sofrimento. Que a justiça seja feita em favor de quem mais precisa dela!
De recursos hídricos à fauna silvestre
Talvez não seja demasiado afirmar que a história da Associação Mata Ciliar se confunde com os ideais de seu presidente e fundador, Jorge Bellix de Campos, que desde a infância, em Pedreira/SP, já demonstrava um apreço pela natureza. Filho de um funcionário da CESP (Companhia Energética de São Paulo), Jorge se encantou com o trabalho de produção de árvores nativas realizado nos viveiros de mudas. Muitas vezes, ao acompanhar seu pai no trabalho, ganhava mudas e as plantava em casa. Assim se formava uma futura vocação profissional, trazida dos bons exemplos de sua família. Mas nessa atividade de mexer com a terra, o contato com os bichos também o cativou. No momento do vestibular, Jorge optou pelo curso de Agronomia. Seu propósito se voltava à silvicultura, especificamente o de produzir árvores nativas para reflorestamento, isso em uma época anterior à Constituição Federal de 1988 e que ainda pouco se falava em preservação ambiental.
Foi no primeiro curso que frequentou na faculdade, intitulado “Recuperação de Matas Ciliares”, que surgiu o embrião daquilo que, anos depois, se tornaria uma das grandes paixões de Jorge Bellix de Campos como engenheiro agrônomo. Cabe lembrar, aliás, que em fins dos anos 70, em sua cidade natal, Jorge integrava um grupo ecológico, o PRENAT (Associação de Preservação da Natureza e das Tradições Culturais Independente de Pedreira), cuja primeira luta ambiental foi contra a derrubada de um extenso bosque que se tornaria empreendimento imobiliário. Para isso contaram com o levantamento técnico de flora realizado pelo renomado botânico Hermógenes de Freitas Leitão, professor da Unicamp, que encontrou ali árvores raras da Mata Atlântica e que precisavam ser preservadas. O meticuloso trabalho realizado pelo mestre, que alcançou resultados significativos, foi algo inspirador.
Em 1987, a faculdade de agronomia da Universidade de Taubaté (UNITAU) promoveu um evento acadêmico para discutir a degradação do Rio Paraíba do Sul. Jorge Bellix de Campos ali esteve como membro do PRENAT. Afora o grupo ecológico de Pedreira, participaram do encontro a associação SOS Mata Atlântica, a CESP e o Instituto Florestal, além de universidades e prefeituras.
No final surgiu a ideia de fundar uma entidade que se preocupasse, em particular, com a gestão da água no Estado de São Paulo. Naquele ano surgiu oficialmente a Associação Mata Ciliar, voltada na época ao cuidado com os recursos hídricos. Até que em 1995, a entidade se transferiu para Jundiaí, em razão do convênio de serviços educacionais firmado com o Colégio Agrícola, o que ensejou, pela autarquia estadual Centro Paula Souza, a cessão da área que hoje ocupa. E o que viabilizou, em termos financeiros, o trabalho florestal proposto pela cooperativa de alunos (o viveiro-escola), foi o patrocínio de uma instituição bancária, por intermédio do projeto Unibanco-ecologia.
Jorge Bellix de Campos, presidente e fundador da Associação Mata Ciliar (foto: Jus Animalis)
Jorge Bellix, que se tornou presidente da Associação Mata Ciliar, explica que no começo os trabalhos se voltavam à água e à mata, daí o nome da Instituição. Segundo ele, "na época a área estava invadida e nós a recuperamos ambientalmente, para desenvolver o projeto do viveiro de mudas para a escola. Até que chegaram os saguis pioneiros. A partir daí esse movimento não parou mais, hoje recebemos cerca de 30 animais por dia". É que naquela época, 1995, a prefeitura de Jundiaí iniciava as obras da construção de uma nova represa para o abastecimento de água para a cidade. Sucede que em determinada ocasião, o DAE (Departamento de Águas e Esgoto) apareceu na sede da associação trazendo um problema: quatro dezenas de saguis precisavam ser acolhidos por conta das obras da represa. Por sorte, a médica veterinária Cristina Harume Adania, que desde o início atua na Associação Mata Ciliar, fez valer sua experiência no zoológico de Pedreira e deu o apoio necessário para que os primatas fossem recebidos na entidade, seguindo-se a construção de recintos de acolhida. A fauna, a partir daí, incorporou-se definitivamente ao histórico da Instituição.
Nas últimas três décadas, realizando trabalhos ambientais voltados à fauna, à flora, aos recursos hídricos, à educação ambiental, à biotecnologia e a tantos temas correlatos, a Associação Mata Ciliar ganhou respeito e credibilidade, tornando-se referência no país. Basta dizer que, na sede em Jundiaí, algumas realizações da entidade são logo conhecidas pelos visitantes. Dentre elas merecem destaque: a produção de mais de 200 espécies da Mata Atlântica e Cerrado para plantio em áreas degradadas; proteção de cursos d´água e criação de corredores de biodiversidade; projeto socioambiental desenvolvido junto às comunidades rurais para a preservação dos recursos hídricos, incentivando a adoção de práticas que conciliem a produção agropecuária com a preservação ambiental; programa de vivências junto à natureza para despertar a sociedade quanto ao seu papel em cuidar dos recursos naturais; atendimento de animais silvestres vítimas de situações de degradação ambiental, a fim de lhes proporcionar recuperação e reabilitação para que possam voltar com maiores chances ao seu habitat; programa para conservação de nove espécies de felinos brasileiros ameaçados de extinção, aplicando biotecnologia e inovação em parceria com diversas instituições do mundo.
Tratamento e reabilitação de animais
Em Jundiaí, o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) começou a operar no ano de 1997. Desde então a Associação Mata Ciliar recebe animais vítimas de violência, atentados ou desastres naturais, por exemplo, caça ilegal, tráfico, desmatamentos, expansão urbana, eletrocussão, atropelamentos, incêndios florestais e inundações. A maioria vem de resgates efetuados pela Polícia Militar Ambiental ou de apreensões administrativas do Ibama, encaminhamentos da Guarda Municipal e outros órgãos ambientais.
Jorge Bellix lembra que a Associação Mata Ciliar, muitos anos atrás, recebeu um leão do nordeste e o manteve sob cuidados permanentes: “O leão Juba viveu 25 anos, veio do Ceará apreendido pelo IBAMA depois de sofrer maus-tratos em zoológicos e adquirir artrose". Outros felinos que se encontram aqui, como as onças, têm recintos divididos em duas partes: a de baixo é a área de manejo e a de cima é acessada pelos animais por meio de um túnel que interliga os ambientes. Algumas onças-pardas chegaram ainda filhotes, depois que perderam suas mães em queimadas”. Nos últimos anos os episódios de incêndios florestais têm aumentado no território paulista e em todo o país, ocasionando grande impacto à biodiversidade.
Samuel Oliveira Nunes, há 14 anos respondendo pelo setor de comunicação e políticas públicas da Associação Mata Ciliar, explica que afora as apreensões de aves em gaiolas, a maioria dos animais resgatados vem do estado de São Paulo, com fraturas, cortes, traumas neurológicos ou queimaduras. Ao longo de 2024, segundo ele, as consequências das queimadas foram terríveis para os bichos: “Os incêndios que ocorreram no noroeste paulista, muitos deles criminosos, atingiram diversas espécies da fauna nativa. Deram entrada aqui veados, tamanduás-bandeiras, ouriços, lobo-guarás, antas, tatus e cachorros do mato, com lesões generalizadas pelo corpo e intoxicação por inalação de fumaça. Isso sem falar no trauma representado pelo fogo, depois o resgate e o transporte. A maioria, infelizmente, não sobrevive”. Apesar disso a tentativa de salvar os animais é feita sempre, o que enaltece o trabalho realizado pela associação: “Todo dia há um aprendizado novo em nossa rotina de trabalho, seja no CRAS, seja nos projetos faunísticos e de educação ambiental. Nós temos sempre o apoio da população e isso nos dá esperança”, ressalta Samuel.
De fato, os projetos Vozes da Mata, Guará, De Olho nos Rios e Jaguaretê têm tudo a ver com a proposta pedagógica da Associação Mata Ciliar, seja em favor dos primatas quase extintos na região, seja na construção de um amplo recinto para a reabilitação dos lobo-guarás, seja na participação comunitária na gestão das águas, seja em favor de uma tecnologia que favoreça a biodiversidade e agilize os atendimentos no CRAS.
A Associação Mata Ciliar, que recebe dezenas de animais todo dia, possui uma equipe composta por pouco mais de 40 pessoas, com tratadores, veterinários e biólogas. Quando os bichos resgatados chegam à associação, estejam na condição de saúde que estiverem, eles passam pelo setor de recepção, para fins de registro e histórico de cada um. Neste momento, também são ministrados os cuidados veterinários emergenciais. Há no local ambulatório para aves e mamíferos, com clínica e centro cirúrgico. Se o animal receber alta, será encaminhado ao setor de reabilitação que precede a fase de soltura. Já as espécies com traumas ou lesões incapacitantes são incluídas no programa de reabilitação.
Lobo-guará no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres da Associação Mata Ciliar. (foto: site AMC)
O ideal, é claro, seria que cada animal trazido à Associação Mata Ciliar pudesse ser reabilitado e devolvido à natureza. Mas nem sempre isso acontece, apesar do esforço da equipe veterinária do CRAS. Cristina Harumi Adania, médica veterinária que coordena o setor de fauna da associação, conta que "atua com uma equipe extremamente dedicada", da qual fazem parte Júlia Caraça (responsável pelo setor de mamíferos, desde a triagem, atendimento inicial, aplicação de anestesias e cuidados pós-operatórios), Camile Hisadomi (gerencia o funcionamento da associação, com atuação no criadouro científico, conservação de espécies, banco de dados e banco genético), Yasmin Conjani (veterinária clínica do setor de ambulatório, cuidando de aves e répteis) e Luana Mariotti (atua com clínica geral e farmacológica, no setor de administração e na avaliação das condições de cada animal). Para Cristina, muitos animais que adentram na Associação Mata Ciliar precisam conviver com sequelas ou dependem de medicamentos para viver. Mas a prioridade sempre é a reabilitação: "Isso significa tirar o condicionamento imposto a eles pelo convívio e instigá-los ao comportamento natural. É um desafio, mas temos muitos bons resultados”, observa a coordenadora de fauna.
A Associação Mata Ciliar conta ainda com o relevante trabalho de Geovani Vinicius de Oliveira, veterinário que permanece no setor de quarentena dos animais e, também, da bióloga Giulia Verdini Mencarini, veterinária que atua no CRAS e é responsável pelo processo de reabilitação junto aos tratadores. Isso tudo sem esquecer da contribuição técnica do veterinário patologista Bruno Camilo de Souza, responsável pelas necropsias para constatação de intoxicações ou doenças zoonóticas infecciosas nas espécies silvestres que pereceram. Sobre este tema relacionado à necessidade de vigilância epidemiológica, a coordenadora de fauna Cristina Harume – que trabalha na Associação Mata Ciliar desde sua fundação – explica que doenças de animais domésticos podem afetar os silvestres que adentram na área urbana em razão da perda de seu habitat, sobretudo pelo desmatamento. Ela esclarece que determinados vírus contagiosos, como o da cinomose, não têm cura, às vezes são letais ou deixam sequelas. E adverte que a cinomose canina pode também contagiar o lobo guará, o coati, o furão e o mão-pelada. Em razão dessas constatações, Cristina faz um alerta importante: “Não podemos concordar com a utilização de espécies silvestres como pets, pelo risco de se disseminar doenças zoonóticas. Por isso somos absolutamente contra essa prática”.
Muitos animais da região, quando reabilitados, são soltos na Serra do Japi, remanescente da Mata Atlântica de 354 quilômetros quadrados com grande variedade de flora e fauna situada no trecho montanhoso entre os municípios de Jundiaí, Cabreúva, Pirapora do Bom Jesus e Cajamar. Para o sub-inspetor Claudio Souza, que chefia a Divisão Florestal da Guarda Municipal de Jundiaí e atua na Serra do Japi, a própria área protegida também registra atropelamentos de fauna nas suas estradas, sobretudo rãs, cobras, coatis e capivaras. Mas o que de mais grave aconteceu no biênio 2023/2024, segundo ele, foi a perda de biodiversidade decorrente do fogo: “Não há como mensurar seu impacto nos animais. A mata cresce de novo, mas as perdas decorrentes da morte dos bichos são irreparáveis”.
O veterinário Paulo de Tarso e Cristina Harumi, da Associação Mata Ciliar, em uma ação conjunta de resgate e soltura de um veado catingueiro na Unicamp. (foto: site AMC)
Existe uma parceria do município com a Associação Mata Ciliar, que já soltou no local mamíferos como bichos-preguiças, gambás, ouriços e até uma onça-parda. Nesta unidade de conservação, que é Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, a equipe do Jus Animalis, durante a reportagem, acompanhou os trabalhos de soltura de 45 aves nativas (canários, coleirinhas, sanhaços e azulão). Abrir as caixinhas para que os pássaros voem livres não deixa de ser uma experiência inesquecível. Não há dúvida de que uma das ações mais emocionantes que a equipe da Associação Mata Ciliar realiza, após a recuperação dos animais, é a soltura daqueles que são capazes de retornar a seu habitat.
Uma ação judicial perversa
Nunca é demais lembrar que a área ocupada pela Associação Mata Ciliar há exatas três décadas foi cedida pelo Centro Paula Souza e advém de um convênio de prestação de serviços com a Escola Agrícola, documento esse que foi renovado em 2018. Ou seja, a situação demonstra posse contínua e regular da área, cujos objetivos se voltam a uma atividade essencial de interesse público, lembrando que há décadas a entidade ali realiza ações de preservação ambiental e sustentabilidade.
Após a vinda dos primeiros animais resgatados, foi construído o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres e, depois, o Centro Brasileiro de Conservação dos Felinos Neotropicais. Os animais acolhidos aguardam oportunidade para se reintegrar ao meio ambiente natural, embora muitos bichos, em razão da impossibilidade de reabilitação, tenham de permanecer cativos no local. Tais fatos justificam a necessidade de um espaço amplo e ambientalmente adequado, que envolve a existência de recintos específicos para cada espécie, sem falar nas salas destinadas à triagem de animais resgatados, com berçários, laboratórios, clínica e centro cirúrgico. Também há salas de educação, que se destinam às atividades pedagógicas com visitantes.
Todo esse extraordinário trabalho que acontece nas dependências da Associação Mata Ciliar em Jundiaí foi colocado em risco diante de interesses de terceiros sobre seu terreno, que é vizinho ao aeroporto da cidade. Isso porque, para a ampliação do espaço aeroviário, a concessionária que assumiu a administração da aviação regional passou a cobiçar parte da área florestal contígua. Com base em um decreto estadual de 1998 (direcionado ao antigo Departamento Aeroviário Estadual, DAESP, órgão extinto em 2017), o consórcio privado decidiu reivindicar para si 3 hectares que passam justamente no meio da Associação Mata Ciliar, englobando os recintos destinados a felinos, lobo-guarás e aves.
Sucede que desde antes do Decreto nº 43.587/98, a Associação Mata Ciliar já desenvolvia suas atividades no local e, pelo menos desde 2009, tinha todos os recintos implantados. Mas se a suposta área em litígio (chamada de “Gleba C”) nunca foi reivindicada pelo DAESP, se a Associação Mata Ciliar desde 1995 ocupa todo o terreno e ali edificou instalações para a fauna silvestre, não há sentido algum que agora uma empresa concessionária apareça para fazê-lo, por interesse econômico, prejudicando a continuidade de um prolongado e essencial serviço de utilidade pública.
Seja como for, o consórcio surgiu em cena com algumas tentativas iniciais de desenvolver projetos em parceria com a Associação Mata Ciliar, até mesmo uma proposta empresarial de construir na área reivindicada um "Eco hotel" que permitisse aos hóspedes observar os animais acolhidos ou em reabilitação, ideia descabida e de plano rechaçada pela associação. Mas não tardou para que em maio de 2021 a concessionária, por meio de equipe terceirizada, desse início com o uso ruidoso de maquinário, motoserras e picadeiras, à supressão da vegetação próxima dos recintos dos animais, submetendo jaguatiricas, lobos-guarás e aves a situações de estresse. Segundo Jorge Bellix, foi necessário, naquela oportunidade, a sedação de três onças-pardas para tranquilizá-las, além do manejo emergencial de diversos outros animais, o que também colocou em risco a integridade física dos próprios técnicos e tratadores. A pronta intervenção do pessoal da Associação Mata Ciliar impediu que o corte das árvores tivesse continuidade.
Diante do perigo anunciado, a sociedade civil, contando com o apoio de organizações não-governamentais e coletivos da região, saíram em defesa da Associação Mata Ciliar, montando ali um acampamento com barracas e realizando vigília por uma semana, mediante cordão humano para a proteção da área. A empresa interessada, ao constatar que sua pretensão seria resistida, decidiu expedir Notificação Extrajudicial, estabelecendo prazo de 48 horas para que a Associação Mata Ciliar deixasse o local, levando consigo todos os animais ali abrigados. Houve em seguida a contranotificação pela Instituição, negando-se à mudança. Dias depois, na prefeitura de Jundiaí, realizou-se reunião com todos os envolvidos na tentativa de buscar uma solução para o impasse, mas a concessionária não compareceu. Esta, deixando claro seu interesse na área, logo ajuizou Ação de Reintegração de Posse contra a Associação Mata Ciliar.
Cordão humano de proteção formado em favor da Associação Mata Ciliar, com o objetivo de impedir a entrada forçada na área. (foto: arquivo AMC)
Nessa mesma época, até o DAE (Departamento de Água e Esgoto) esteve na área com a ideia de instalar ali uma ampla rede de esgoto, o que fez a equipe da Associação Mata Ciliar levantar a suspeita de que a visita do órgão estadual tinha propósitos de estruturação de um futuro empreendimento imobiliário.
Diante do cenário preocupante, a Associação Mata Ciliar buscou ajuda política e conseguiu, junto ao então vice-governador do estado, a promessa de que a área permaneceria com ela, dada a importância que o trabalho da entidade realiza no estado, por viabilizar, na prática, a aplicação de dispositivos constitucionais voltados à tutela do meio ambiente e da fauna nativa. Passados quase 4 anos desde então, o processo judicial ajuizado em face da Associação Mata Ciliar continua em curso, à espera da realização de perícia judicial.
A concessionária autora da ação de reintegração de posse, ao insistir na obtenção dos três hectares reivindicados no processo que tramita em Jundiaí, pode inviabilizar todo o trabalho que vem sendo realizado pela Associação Mata Ciliar e, com o pretendido despejo da entidade vizinha, fazer com que o terreno todo - com seus 33 hectares - tenha outra destinação que não voltada a interesses ambientais e faunísticos, mas à expansão urbana e/ou especulação imobiliária de uma área que se tornou economicamente muito valorizada no município.
Espera-se que o Poder Judiciário, em tempos de mudanças climáticas e atentados gigantescos às populações animais que vêm causando desequilíbrios no planeta, possa agir com bom senso e decidir em favor do bem maior relacionado à defesa da vida.
Permanecer é preciso
Pode-se constatar, pela rotina de suas atividades, que a Associação Mata Ciliar tem desenvolvido na sede em Jundiaí, ao longo dos últimos 30 anos, um importante trabalho voltado à defesa do meio ambiente e da fauna silvestre, suprindo muitas vezes a deficiência estatal no setor. Não é à toa que a Polícia Militar Ambiental aparece quase diariamente na porta da associação para entregar animais silvestres lesionados e/ou apreendidos. Pode-se dizer que o CRAS nunca fecha, dado ao movimento constante de animais que necessitam de atendimento clínico. Embora a autorização de manejo para essas atividades com fauna tenha sido renovada pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente, com prazo de cinco anos, o fato é que a condicionante de que a associação deva possuir sede própria pode colocar em risco todo o trabalho que vem sendo realizado, caso a Associação Mata Ciliar perca o direito de ficar na área.
Os animais nativos, apesar da garantia de proteção constitucional que possuem e da ampla criminalização dos delitos contra a fauna, ainda padecem muito no Brasil. A onça pintada, por exemplo, entrou na categoria de espécie vulnerável após perder 85% de seu habitat e, segundo o Ibama, encontra-se hoje na situação de "criticamente em perigo". Ao lado dela, outros felinos correm risco, como a onça-parda, a jaguatirica e alguns gatos do mato. A Associação Mata Ciliar, por meio do Centro para Conservação dos Felinos Neotropicais, ganhou reconhecimento internacional por seu trabalho de conservação a esses animais tão ameaçados no país. Vale lembrar que a Serra do Japi, onde o bioma Mata Atlântica tem sido preservado, fica próxima da Associação Mata Ciliar e tem sido utilizada como área de soltura para espécies endêmicas.
Placa do Centro Brasileiro para Conservação dos Felinos Neotropicais, na Associação Mata Ciliar. (foto: Jus Animalis)
Na visita que fez à Associação Mata Ciliar, a reportagem do Jus Animalis pôde constatar toda a dedicação da equipe para com os animais silvestres que se encontram em estado de vulnerabilidade, seja durante a fase dos cuidados veterinários, seja nos recintos próprios para cada espécie, seja na etapa de reabilitação que precede a soltura. O fato de a entidade sediar, em data recente, um encontro técnico nacional de Centros de Reabilitação de Animais Silvestres, comprova o prestígio da Associação Mata Ciliar perante os órgãos técnicos, governamentais e de gestão. Tudo isso tem sido feito por uma entidade que não mede esforços para acolher e tratar de bichos necessitados e que agora vê sua existência em perigo.
A concessionária privada, ao ingressar com ação de reintegração de posse, não considerou o tempo em que a Associação Mata Ciliar se encontra instalada no local reivindicado, nem o atendimento de excelência que realiza no CRAS, tampouco a contribuição científica voltada aos animais em risco de extinção ou o empenho pedagógico que direciona às presentes e futuras gerações.
É importante dizer, em meio à confusão toda provocada pelo consórcio que reivindica parte da área da Associação Mata Ciliar, a ponto de inviabilizar todo o trabalho ali desenvolvido, que o pleito da empresa autora se mostra tão infundado quanto injusto. O interesse comercial do segmento aeroviário não pode, por si só, inviabilizar a vida e o bem-estar animal e tampouco prevalecer sobre valores ambientais assegurados pela Constituição.
O meio ambiente deve ser considerado sempre por inteiro. E as entidades que verdadeiramente lutam por ele, defendendo a fauna, a flora, a terra, a água e o ar, merecem ser respeitadas. Em três décadas de atuação incansável, a Associação Mata Ciliar, que na sede de Jundiaí salvou a vida de pelo menos 30 mil animais nativos, nunca havia sido incomodada. Agora corre o risco de despejo e fechamento. Mas ainda há esperança. A esperança de que a Justiça decida em favor de quem mais precisa do direito, assegurando o devido tratamento às espécies vulneráveis e a permanência, no local, da Instituição que se tornou um modelo a ser seguido quando se fala em dedicação à natureza e à fauna silvestre.
Jus Animalis com a equipe da Associação Mata Ciliar. (foto: Jus Animalis)
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