A PROIBIÇÃO DA CAÇA DE BALEIAS NO BRASIL: UMA LUTA ATIVISTA
Durante mais de três séculos, milhares de baleias que vinham se reproduzir em nossas águas litorâneas perderam a vida na ponta dos arpões. Muita dor recaiu sobre os grandes mamíferos marinhos e seus filhotes, que morriam em agonia para depois serem retalhados nas armações baleeiras instaladas na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santa Catarina e na Paraíba, o último reduto da caça no país. Essa atividade mercantil iniciada no século 17 visava, sobretudo, a extração de óleo de baleia que se destinava à iluminação pública, dentre outros fins. No período colonial, a perseguição era feita com veleiros movidos a remo e uso de arpões e lanças manuais. Em tempos modernos, quando canhões mecânicos passaram a ser instalados na proa de navios, para disparar arpões explosivos assim que os animais subiam à tona para respirar, aumentaram muito as estatísticas da caça.
Foi o que aconteceu na armação do Costinha, quando a empresa japonesa Nippon Reizo assumiu o controle da Companhia de Pesca Norte do Brasil (Copesbra) para abater, a cada temporada, centenas de baleias-jubarte, cachalote e espadarte, que foram desaparecendo das águas brasileiras. A exemplo da baleia-franca, espécie mais caçada no país por quase trezentos anos, aquelas outras também ficaram em perigo de extinção, a exemplo da baleia-azul e baleia-fin, levando a indústria baleeira a mirar na espécie minke, de menor porte. O mais espantoso de tudo é que na praia do Costinha, nos anos 70, o retalhamento das baleias arpoadas se tornou atração incorporada ao Calendário Turístico da Paraíba, tanto que as pessoas pagavam ingresso para assistir de perto, em arquibancadas erguidas na areia, ao espetáculo macabro.
Com a era ambiental e o surgimento das primeiras entidades ecológicas no Brasil, isso começa a mudar. A produção de estudos científicos especializados, o trabalho informativo da imprensa responsável e o aumento de consciência coletiva fez com que a ação de ecologistas ganhasse força, a ponto de desencadear grandes campanhas em defesa das baleias. Nessa época a atividade comercial baleeira restringia-se à praia do Costinha, na Paraíba, embora tenha também acontecido, em menor escala, em Cabo Frio/RJ e Imbituba/SC. A Associação Paraibana dos Amigos da Natureza-APAN e outras entidades parceiras, juntamente com ambientalistas, protetores de animais, artistas, professores, estudantes, jornalistas e tantas pessoas sensíveis que se engajaram na luta em defesa das baleias, conseguiram mobilizar o país para a aprovação da Lei dos Cetáceos.
Nesta reportagem realizada em João Pessoa, Cabedelo e no distrito de Costinha, local em que operava a fábrica da Copesbra, o Jus Animalis fez um resgate dos acontecimentos ali transcorridos para mostrar de que maneira a ação ativista organizada pode mudar as coisas. Do passado para o presente, a matéria conta a triste história das baleias no Brasil e a gradativa recuperação de suas espécies, após o advento da Lei n° 7.643/87, entrevistando gente que viu, viveu ou participou das necessárias transformações. E como medida redentora ao massacre ocorrido no litoral paraibano, além de ter as baleias nadando livres pelo seu espaço de plenitude, sem importuná-las, surge a ideia de se construir, na própria praia do Costinha, em Lucena/PB, um memorial histórico-pedagógico sobre o que foi a perseguição e a matança dos grandes cetáceos que ali aconteceu ao longo do século 20. Para jamais esquecer...
Baleias arrastadas para o corte na Copesbra. Foto reproduzida. Verônica Martins, 2009
Retrospectiva histórica
É preciso desde logo dizer que baleia não é peixe, mas um cetáceo. Diferentemente dos peixes, que possuem guelras e são ovíparos, as baleias têm pulmões, sangue quente e se reproduzem por fecundação interna, sendo que após o parto a fêmea amamenta o filhote. A constatação científica dos caracteres anatômicos-morfológicos das baleias, ao contrário do que se imaginava antes, revela que os mamíferos marinhos não são suscetíveis à pesca, e sim à caça. É que este termo, do ponto de vista conceitual, envolve atos de rastreio, acuamento e abate do animal em fuga. E a baleia costumava ser alvejada quando vinha à tona para respirar. Ferida pelo arpão, era perseguida pelo barco baleeiro até a exaustão, quando sofria o golpe mortal. Ou seja, o processo em si significava caça.
Há, portanto, uma impropriedade técnica, linguística e jurídica na doutrina e na legislação brasileira predominante até o século passado em relação ao termo “pesca da baleia”, até porque a captura do grande cetáceo não significa apenas a sua retirada do meio aquático, mas uma autêntica batalha no mar permeada por tiros de canhão, perseguição, luta e resistência, que normalmente terminava com a morte do animal. Por isso é que caça da baleia é a expressão correta. Ainda a propósito desse equívoco terminológico que fez história não se pode esquecer que na época colonial a baleia acabou sendo considerada “peixe-real” pela Coroa portuguesa, que reivindicou para si o monopólio de sua exploração comercial.
Sobre a caça de baleias em nosso país há dois livros essenciais de historiadores que se aprofundaram no tema. O primeiro é de 1969, lançado por Myriam Ellis (A Baleia no Brasil Colonial), que trata do período compreendido entre o início do século 17 e o final do século 19). Já o segundo, de 2014, foi escrito por William Edmundson e Ian Hart (A História da Caça das Baleias no Brasil: de peixe real a iguaria japonesa) e avança até o século 20, com as atividades baleeiras na praia do Costinha/PB e em Cabo Frio/RJ, além da caça realizada pela armação de Imbituba/SC. Pode-se dizer, então, que citadas obras merecem ser lidas juntas e de modo complementar, haja vista que a pesquisa histórica iniciada por Ellis foi finalizada por Edmundson e Hart, permitindo que se tenha atualmente um panorama completo do assunto.
As duas obras fundamentais sobre a caça de baleias no Brasil. Arquivo pessoal
Tudo começou em 1602, quando o rei Felipe III deferiu aos espanhóis Pêro de Urecha e a Julião Miguel, provenientes do Golfo da Biscaia, concessão régia por 10 anos para instalarem na costa do Brasil armações de “pesca da baleia”, mediante recebimento de impostos alfandegários e divisão dos lucros. As armações baleeiras, estabelecimentos litorâneos destinadas às atividades da captura e processamento dos animais abatidos, eram implantadas em áreas de mar calmo, como ilhas, baías e enseadas. A primeira delas surgiu na Ilha de Itaparica, em 1613, transcorrendo a caça nas águas da Baía de Todos os Santos. Nas praias de Salvador, segundo Myriam Ellis, quando as embarcações arpoavam as baleias, a população aglomerava-se para assistir lances da batalha que se desenvolvia ao longe. Vencido o animal, seu corpo era rebocado à armação para ser retalhado por escravos munidos de facas, ganchos e facões.
Durante a temporada de 1768 na Bahia, como constatado pelos historiadores Edmundson e Hart, foram capturadas 179 baleias, sendo 146 fêmeas e 33 baleotes. Do Recôncavo Baiano as armações expandiram-se a outras localidades brasileiras. Uma feitoria fluminense surgiu na baía da Guanabara ainda no século 17, com núcleos em Cabo Frio e Ilha Grande. No litoral paulista ergueram-se armações em Ilhabela, Bertioga, Santos e Cananéia, enquanto ao sul operavam na Ilha de Santa Catarina e Garopaba. Já no século 20 as estações baleeiras concentraram-se em Imbituba (Santa Catarina), Cabo Frio (Rio de Janeiro) e Lucena (Paraíba), esta última situada na praia do Costinha, a maior e mais lucrativa de todas elas.
Entre junho e setembro, época em que as baleias migravam das regiões polares às águas tropicais do Atlântico Sul, para fins de reprodução, as baleias-franca se aproximavam muito perigosamente da costa brasileira, tornando-se alvos fáceis dos caçadores sempre que subiam à tona para respirar: “As fêmeas, prenhes, refugiavam-se nas reentrâncias litorâneas, em busca de recanto seguro onde pudessem dar à luz e amamentar os baleotes. E daí não se afastavam enquanto não estivessem aptas as crias a acompanhá-las ao alto mar. Eram quando mais vulneráveis se tornavam ao arpão”, observou Myriam Ellis em seu livro A baleia no Brasil colonial.
Referida autora escreveu que as baleias, embora animais gregários, pacatos e propensos à afetividade, não se apartavam de seus filhotes nem em situações de perigo extremo. Mesmo sem chances de sobreviver, elas colocavam-se diante do agressor na esperança de salvar a cria. Uma das técnicas utilizadas para a captura das fêmeas, desde a época colonial, era a de primeiro arpoar o baleote e mantê-lo preso à embarcação. Ellis enfatizou ainda que a baleia mãe, em desespero, aproximava-se do barco na tentativa de desprender o filhote e se colocava na mira das lanças. Apesar de ferida, a baleia exausta retornava em direção ao filhote e, a exemplo deste, acabava morta pelos caçadores.
Por três séculos as baleias foram abatidas manualmente no Brasil, morrendo dilaceradas por arpões e lanças pontiagudas. O arpão é um artefato de ferro com aproximadamente um metro de comprimento, que se encaixava a uma peça de madeira de um metro e meio. Já a lança é um ferro pontiagudo com dois metros de comprimento e que ficava amarrada no barco. Atingidas por esses instrumentos pérfuro-contundentes que lhes causavam severas lesões no corpo, as baleias presas tentavam resistir aos golpes dados e aos puxões da corda, mas entre trinta minutos e três horas sucumbiam em decorrência da hemorragia.
O desmanche delas nas armações consistia no corte longitudinal da cabeça à cauda, separando-se a camada de gordura para extração de óleo e os demais órgãos de interesse comercial. Vale dizer que o produto mais valioso era o óleo obtido em fornalhas, usado para a iluminação pública de cidades, engenhos e estaleiros, além de servir no preparo da argamassa utilizada nas edificações e à fabricação de velas, pomadas e sabão. Já as barbatanas seguiam ao mercado europeu onde se transformariam em subprodutos como espartilhos, escovas, bengalas, cachimbos, guarda-chuvas, tecidos e calçados. A carne de baleia, por sua vez, destinava-se ao consumo humano e os ossos moídos viravam farinha utilizada como adubo.
E assim se manteve a indústria baleeira ao longo do período colonial até chegar ao século 20, com centenas de abates a cada temporada. A caça predatória afetou a população das baleias-franca, as mais visadas antigamente. Quando os caçadores se voltaram às espécies jubarte, cachalote e espadarte, estas também começaram a escassear, sobretudo depois que navegadores noruegueses inventaram o canhão mecânico com arpões explosivos, capaz de matar com precisão e em larga escala. Tal metodologia, que se tornou padrão para a moderna captura de baleias, levou animais de grande porte, como a baleia-azul, praticamente à extinção.
Canhão mecânico que disparava arpões com explosivos. Praia do Costinha. Foto de Verônica Martins, 2009.
Se a captura das baleias serviu durante séculos para obter o óleo que mantinha acesa a chama dos lampiões e fazer a argamassa utilizada nas grandes edificações de cimento e pedra, o fato é que a descoberta do combustível fóssil (petróleo), a partir de meados do século 19, acarretou impactos negativos na indústria baleeira, que decaiu. Mas isso não eliminou de vez a atividade de caça a baleias em território nacional, tanto que cem anos depois o interesse do Japão consubstanciado na gerência da Companhia de Pesca Norte do Brasil, somado ao desenvolvimento tecnológico que ampliou muito as estatísticas da matança, fez com que a armação instalada na Paraíba se tornasse uma das empresas mais lucrativas do Nordeste.
Copesbra e a caça na Paraíba
A moderna tecnologia de caça, já no início do século 20, elevou as capturas de baleias a cifras impressionantes pelo mundo. Analisando as estatísticas da época, registradas nos navios a vapor com arpão mecânico na proa, Edmundson e Hart revelam que no hemisfério sul a quantidade de baleias caçadas teve um impacto devastador na população de baleias-jubarte, a ponto de fazer com que a atividade, em algumas regiões globais, se tornasse insustentável. Segundo eles, entre 1904 e 1917 foram capturadas no hemisfério sul 22.717 baleias-jubarte e, de 1915 a 1920, outras 2.163 baleias, causando um impacto devastador na espécie. Enquanto isso, na Antártida, a Noruega caçava mais de 500 baleias-azuis a cada temporada.
No Brasil, como observam citados historiadores, logo no início do regime republicano foi criada a companhia Duder and Brother, em Salvador, que a partir de 1911 passou a caçar baleias no Nordeste já com os novos métodos de perseguição e captura. Neste mesmo ano surge no Recife, por iniciativa de Julius von Söhsten, a Companhia de Pesca Norte do Brasil, a qual instalou na praia do Costinha fornos para derretimento de toucinho. O navio baleeiro Dantas Barreto, primeiro a caçar de baleias em águas paraibanas, operava com êxito e isso fez com que o gerente da empresa instalasse uma base de processamento na praia, sem depender de navios-fábrica. O local se tornara estratégico à atividade, como informam Edmundson e Hart:
“Essa escolha provou ser excelente, já que a caça de baleias continuou lá sem interrupção até 1985 (...) A plataforma continental na Paraíba é relativamente estreita, e Costinha fica perto do lugar onde baleias de várias espécies se concentram durante suas migrações anuais para acasalamento entre junho e começo de dezembro – principalmente baleias-jubarte, baleias-espadarte, baleias-de-bryde, cachalotes, baleias-minkes-austrais e muito ocasionalmente baleias-fin”.
Navio baleeiro Dantas Barreto. Foto reproduzida do livro de Edmundson e Hart, 2014.
Em 1929, a Companhia de Pesca Norte do Brasil passou para a administração da empresa Mendes, Lima & Companhia, que depois a cedeu para Samuel da Silva Galvão. Paralelamente a esse momento de revitalização da atividade de caça à baleia, o governo brasileiro começa a legislar em favor da indústria pesqueira e baleeira. Em contrapartida, no cenário internacional, a Liga das Nações aprovou a Convenção de Genebra para proibir a matança de baleias-franca, assim como das fêmeas jovens e seus filhotes. A Convenção Internacional para a Regulamentação da Pesca da Baleia, assinada em 1946 por 59 países, criou a Comissão Internacional Baleeira (CIB). Isso porque que a caça de baleias estava afetando drasticamente algumas espécies e a solução política encontrada foi a de estabelecer cotas anuais para captura.
Sobre o papel que a Comissão Internacional Baleeira vem desempenhando ao longo de tantas décadas, a pretexto de proteger determinadas cetáceos da extinção, a advogada Renata Fortes disse ao Jus Animalis que, no seu entendimento, esse colegiado internacional voltado aos grandes mamíferos marinhos nunca se afastou da perspectiva econômica ao lidar com as baleias, estabelecendo aos países caçadores cotas de captura ou, então, períodos de moratória: “A CIB foi criada com a ideia utilitarista de que era necessária uma moratória da caça para que os ´estoques´ de baleias se recuperassem para a liberação futura da caça. Considerando que hoje existe maior conscientização social, liberar a caça não é mais uma possibilidade. Mas a caça ilegal ainda ocorre em larga escala, pois não há qualquer controle em alto mar”.
Mas voltando à Paraíba no ano de criação da CIB, cabe dizer que na temporada de 1946 o navio baleeiro Dantas Barreto, que arpoara 11 baleias-jubarte e 14 baleias-espadarte, foi substituído por embarcações mais modernas, o Belmonte e o Cabo Branco, que passaram a ser operadas com arpoadores vindos da Noruega. Foi então que o número de baleias capturadas em águas paraibanas aumentou de modo significativo em uma década: 1.255. Até que no final dos anos 50 a empresa japonesa Nippon Reizo, que já atuava no ramo baleeiro em escala mundial, manifestou interesse em ter uma base no Brasil e escolheu a praia do Costinha. O gerente da Companhia de Pesca Norte do Brasil, considerando também o aumento das restrições estabelecidas periodicamente pela CIB, decidiu repassá-la aos japoneses.
Fábrica da Copesbra em 1960. Foto reproduzida por Verônica Martins, 2009.
A partir de 1959, então, a atividade baleeira na Copesbra passa a ser exercida pela empresa asiática que se instalou na Paraíba. Como bem observam Edmundson e Hart, os japoneses comprometeram-se a aumentar as capturas, usar tecnologia de ponta e melhorar a qualidade dos produtos processados em Costinha, assim como introduzir novos navios baleeiros. Tudo isso foi feito e os resultados não demoraram a aparecer. Logo na primeira temporada de caça foram arpoadas 315 baleias, enquanto no ano seguinte esse número subiu para 521. A maioria era da espécie espadarte, mas a crescente escassez de sua população fez com que depois os canhões se voltassem à baleia-minke. Durante as temporadas de caça, diversos fornos para extração de óleo de baleia permaneceram em atividade na armação de Costinha, lembrando que a lenha que os abastecia era retirada da Mata Atlântica.
Antigos fornos para produção de óleo da baleia. Praia do Costinha. Arquivo de Verônica Martins, 2009.
Se a nova tecnologia fazia a diferença em termos estatísticos, em contrapartida ela também aumentava o sofrimento dos animais. “O método empregado para matar a baleia era arremessar um arpão, seguido logo depois por um segundo arpão que tinha uma granada na ponta”, explicam os autores de História da Caça das Baleias no Brasil. Foi algo muito cruel, porque ao penetrar no corpo do cetáceo o arpão disparado pelo canhão mecânico abria suas abas frontais como um guarda-chuva, provocando dor lancinante nos animais alvejados. Por 26 anos essa foi a rotina da Copesbra nas temporadas de caça de baleias no Brasil. Em fins dos anos 60, o jornalista Amaral Netto acompanhou a captura de dentro de um navio da Copesbra, mostrando em inédito documentário de TV a realidade da caça de baleias no país.
O espetáculo da morte
A tripulação dos navios baleeiros da Copesbra, assim que as baleias minke eram arpoadas, tinha o costume de injetar ar comprimido pela boca dos animais agonizantes e deixá-los amarrados junto a grandes boias de isopor que serviam como pontos de sinalização, enquanto os barcos prosseguiam mar afora em seu trabalho de captura. Isso permitia que ao final do dia, com a localização das boias por intermédio de ondas radiofônicas, as equipes recolhessem as baleias capturadas e, depois de amarrá-las aos navios, arrastavam-nas até a armação. Quando isso acontecia era comum encontrar as baleias ainda mais feridas, desta vez pelo ataque dos tubarões. Tal problema levou a empresa a contratar pescadores do porto de Cabedelo, que fica ao lado da praia do Costinha, para que matassem os tubarões que nadavam em torno das boias.
Mas a jornada sanguinolenta não se limitava ao arpoamento das baleias, tampouco ao abate dos tubarões predadores. Ela prosseguia noite adentro, tão logo o barco rebocador trazia os animais capturados para a plataforma de corte, onde funcionários da Copesbra já os aguardavam de facões em punho. A camada de gordura das baleias, denominada toucinho, após ser cortada em pedaços, era levada para as fornalhas de extração de óleo para derreter durante 10 ou 12 horas consecutivas, enquanto as carnes consideradas mais nobres seguiam para exportação. Conta-se que, durante o processo de retalhamento, não raras vezes as fêmeas abatidas ainda estavam em período de amamentação e seu leite jorrava no chão.
Antiga plataforma de corte das baleias na Copesbra. Praia do Costinha. Foto de Verônica Martins, 2009.
Seja como for, o estado da Paraíba orgulhava-se em sediar uma renomada empresa japonesa especialista na caça de baleias e que permitia no distrito de Costinha, a cada temporada, a oferta de aproximadamente 300 empregos à comunidade. Ainda que em 1966 a CIB já estivesse atenta às baleias em risco de extinção, estabelecendo cotas de capturas e decretando moratórias de caça, é preciso dizer que o Brasil se afastou da comissão baleeira por oito anos (de 1965 a 1973), permanecendo à vontade para descumprir as diretrizes internacionais. Sucede que nos anos 70 a ação de ecologistas ganha força em todo o mundo, tanto que os defensores das baleias passaram a lançar olhos de protesto também em relação a Copesbra.
Mesmo assim, a empresa japonesa prossegue normalmente nas suas atividades em Costinha e o governo brasileiro dava respaldo político para que tudo ficasse como estava, sabido que o faturamento anual da Companhia Nippon Reizo alcançava a marca de um milhão de dólares. Um lucro astronômico se comparado aos baixos salários pagos aos trabalhadores braçais que faziam o trabalho pesado, que não tinham garantia alguma em seus empregos e tampouco direitos trabalhistas assegurados, até porque a atividade que desempenhavam a cada temporada na armação do Costinha era sazonal. Esse paradoxo logo criou um pretenso embate, colocando de um lado o apelo de ambientalistas e, de outro, o interesse laboral dos operários que na realidade eram explorados.
Local de corte incorporado ao Calendário Turístico da Paraíba. Foto reproduzida por Verônica Martins, 2009.
Uma das medidas governamentais adotadas para exaltar a atividade da Copesbra foi a de incluir o retalhamento dos cetáceos como atração turística. Parece bizarro, mas foi isso mesmo que aconteceu na Paraíba em plena época de despertar do movimento ecológico: o corte das baleias passou a fazer parte do Calendário Turístico da Paraíba. Hotéis de João Pessoa anunciavam na portaria dos estabelecimentos as datas em que os hóspedes poderiam comparecer na Copesbra e, acomodados em arquibancadas na praia, assistir ao espetáculo macabro do corte da carne e separação do toicinho para as caldeiras. Os interessados adquiriam ingressos para o evento e, se quisessem, podiam até comer carne de baleia no local. Durante os trabalhos de campo, o Jus Animalis ouviu um antigo morador de Costinha, professor Romilson da Costa Santos, que acompanhou a reportagem ao exato local dos acontecimentos e fez comentários sobre o que ali ocorreu:
Eu tinha um irmão que trabalhava para a prefeitura e fazia a venda dos bilhetes para as pessoas assistirem ao corte das baleias. Até que um dia apareceu aqui um grupo de estudantes que tinha participado do Encontro Nacional de Estudantes de Biologia, isso nos anos 70. Veio a turma toda e quando trouxeram a primeira baleia para o corte, aconteceu algo que não se poderia imaginar. Os estudantes começaram a proferir palavras de ordem contra a caça. O clima esquentou e um japonês passou a dizer ao vigilante, ‘atira’, ‘atira’, mas o revolvinho calibre 22 disparado para o alto não intimidava ninguém. Nisso pegaram a mangueira a jato e foi jogado água nos manifestantes. Depois apagaram as luzes e suspenderam o corte, enquanto os estudantes iam embora. No dia seguinte a primeira providência da Copesbra foi desmontar as arquibancadas e levantar um muro bem alto para que ninguém de fora pudesse ver as baleias na plataforma de corte.
Sobre este episódio, o jornalista Ulisses Capozoli, em seu livro Antártida: a última terra, observou que houve mudança de postura da Copesbra em relação não apenas a visitas de pessoas estranhas à empresa, mas sobretudo aos jornalistas, principalmente após a divulgação do conflito surgido no espetáculo turístico de retalhamento das baleias na praia do Costinha: “No passado, a captura e o corte da baleia na Paraíba serviam de atração turística. Após o apedrejamento dos homens que trabalhavam no esquartejamento dos animais, a Copesbra decidiu suspender a demonstração. A partir daí, só jornalistas ´de confiança’, dispostos a defender os interesses da empresa, podiam embarcar nos seus navios baleeiros”.
Ficava cada vez mais evidenciado, quando a consciência ambiental começa a despontar na sociedade brasileira, que a maioria das pessoas não queria a matança das baleias. A Associação Paraibana dos Amigos da Natureza-APAN realizou um incansável trabalho de corpo a corpo junto à comunidade, enfatizando que a atividade laboral que acontecia a cada temporada de caça em Costinha, pela oferta de empregos sazonais aos trabalhadores braçais da Copesbra, não poderia se sobrepor ao interesse maior da conservação das baleias. Paula Frassinete, presidente da APAN na época dos fatos, assim como as demais entidades parceiras, mantiveram-se firmes no propósito de enfrentar a indústria baleeira e seus poderosos interesses econômicos, mostrando ao país que o meio ambiente e a vida dos cetáceos mereciam prevalecer.
E a luta ativista contra a caça não se limitava ao que ocorria na Paraíba, à indústria baleeira em geral. Basta dizer que entre 1960 e 1963 uma outra empresa japonesa, Taiyo Fischery, operou em Cabo Frio/RJ e conseguiu capturar 1119 espadartes, 243 cachalotes, 10 jubartes e até uma baleia-azul, fazendo uso de canhão capaz de arremessar arpões com 18 quilos acoplados a explosivos. A empresa só não continuou suas atividades no Brasil em face das greves dos trabalhadores locais. Outra armação que esteve ativa no século passado, até seu término em 1973, foi a de Imbituba/SC. Ali também se fazia uso de canhão mecânico para matar as baleias, cujo óleo era vendido às fábricas de curtume no Rio Grande do Sul. A proibição da caça às baleias, portanto, precisava ocorrer no país todo, mediante lei federal.
Salvem as baleias!
A caça comercial de baleias é uma das páginas mais tristes da história recente do Brasil, contribuindo para que algumas espécies de cetáceos fossem submetidas ao risco de extinção, como a baleia-franca e a baleia jubarte, cujas populações declinaram de modo significativo em nossa costa litorânea. Como já mencionado, muitas vezes os atiradores arpoavam primeiro o baleote para que a baleia mãe se aproximasse e fosse também capturada. Depois, o uso de navios com tecnologia avançada aumentou o número de animais abatidos a cada temporada e, também, o grau de sofrimento que recaía sobre eles. Isso sem falar do abate indiscriminado de fêmeas em fase de reprodução ou com filhotes, o que caracterizava caça predatória.
Tais constatações, a partir dos registros obrigatórios nas atividades comerciais de baleação, aos poucos foram chegando ao conhecimento público. Se no início do século 18 estimava-se a presença de aproximadamente 27 mil baleias-jubarte no Atlântico Sul, o fato é que em meados do século 20, a população de jubartes caiu para apenas 450 indivíduos, o que exigia a adoção de medidas emergenciais pela comunidade internacional, antes que a espécie se extinguisse. Criada em 1946 com o objetivo de regulamentar a caça das baleias, é certo que a Comissão Internacional Baleeira atuava, em regra, sob uma perspectiva econômica e mitigatória.
Arpoamento de baleia. Forte de Santa Catarina de Cabedelo. Foto reproduzida por Verônica Martins, 2009.
Em meados do século passado muitos navios-fábricas já estavam nos oceanos e os países baleeiros recorriam a eles para o processamento dos animais abatidos, como o Japão, a Noruega e outros. Ficava difícil, em águas internacionais, saber o que de fato ocorria. O principal indicativo da gravidade da situação era o desaparecimento das espécies. Mas a CIB demorava a agir e tomava decisões com atraso, sendo o sistema de cotas e a moratória da captura de determinadas espécies apenas medidas paliativas. Basta dizer que só 20 anos depois de sua criação a CIB proibiu a captura da baleia-franca. E daí transcorreram mais 20 anos para que a proibição contemplasse as demais espécies, o que se deu em nível global somente em 1986.
Quando se fala em defesa das baleias, o primeiro nome que vem à cabeça não é a CIB, obviamente, mas o Greenpeace. Esta ONG canadense criada em 1971 lançou em Vancouver a campanha que se tornou célebre pelo slogan “Salvem as Baleias”. Os ativistas, em atitudes sempre corajosas, saíam ao mar dispostos a colocar sua embarcação entre os arpões dos caçadores e as baleias, registrando as cenas de confronto e repassando-as para a imprensa. A repercussão das ações diretas do Greenpeace em cada enfrentamento feito aos navios de caça comercial impactava a sociedade e, de certa forma, os membros da CIB, que se viam pressionados a adotar uma moratória global sobre a caça comercial de baleias, alcançando aos poucos a baleia-azul, a baleia franca, a baleia jubarte, a baleia cachalote e outras.
É importante dizer que o Greenpeace sempre contou com voluntários de várias nacionalidades e representações em muitos países. Quando o problema da caça das baleias na praia do Costinha repercutiu na imprensa internacional, o Greenpeace Brasil esteve na Paraíba para conversar com a APAN e as outras entidades ambientalistas empenhadas na defesa das baleias. Seus membros viram que o encaminhamento dado à questão estava sendo feito da melhor maneira possível, com a união das entidades ecológicas e o apoio da sociedade civil. José Truda Palazzo Junior, quando ainda começava sua militância pelas baleias, contou ao Jus Animalis que o Greenpeace nos Estados Unidos foi a primeira entidade internacional que contatou quando se envolvera mais a fundo na questão, mantendo diálogos em tempo real – mediante uso de aparelho de telex - com John Frizzell, coordenador no escritório de San Francisco, na Califórnia.
Já a imprensa brasileira não era unânime em relação à ilegitimidade das atividades baleeiras na Copesbra, tanto que em meados do século anterior, o Jornal do Brasil e a revista O Cruzeiro publicaram matérias exaltando a carne de baleia, enquanto alguns jornais paraibanos defendiam em sua linha editorial a garantia dos empregos aos trabalhadores do Costinha. Em 1974, o repórter correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em João Pessoa escreveu: Brasil continuará a pescar baleias. Tal cenário mudou quando o movimento ecológico cresceu no país e as entidades ambientais assumiram a defesa das baleias, convencendo a sociedade de que o tema da sustentabilidade ambiental precisava estar sempre acima dos interesses econômicos. Foi aí que o assunto – agora tratado com maior seriedade - entrou em pauta nos meios de comunicação, sobretudo nos jornais e na televisão.
Cabe lembrar algumas passagens dessa mudança. Ainda em 1974, o jornalista da Folha de S. Paulo, Luiz Carlos Souza, publicou um texto contundente intitulado A baleia a caminho da extinção: “Até quando, no Brasil, será permitida a caça das baleias, inclusive fêmeas prenhes, colaborando para a extinção dos maiores mamíferos do planeta?”, perguntava o articulista na matéria. Três anos depois o oceanógrafo Luiz Roberto Tommasi, do Instituto Oceanográfico da USP, disponibilizou ao referido jornal o artigo “Salvem as Baleias!”, que repercutiu perante os leitores e motivou o jornalista a escrever outras reportagens sobre a caça de baleias na Paraíba, que foram replicadas no país todo. Isso, com certeza, desagradou a direção da Copesbra e aqueles que tinham interesse nas atividades baleeiras ali desenvolvidas. A partir daí mais nenhum repórter passou a ser bem-vindo da armação do Costinha.
Jornal Folha de S. Paulo, edição de 03.11.1974. Arquivo pessoal.
Mas a TV Globo furou o bloqueio e a matéria gravada no ano de 1983 serviu como luva ao slogan “Salvem as Baleias”. Saiu no programa Globo Repórter, após filmagens dentro de um navio da Copesbra em operação de captura. O jornalista Pedro Bial, durante o trabalho, chegou a perguntar ao arpoador Akio Sato a quantidade de baleias que ele já abateu, número esse que ultrapassava a marca de centenas. Em dado momento da gravação, depois de olhar para a minke ensanguentada e já presa na lateral do barco, o jovem repórter se refere às baleias como “vítimas”. Em terra, Bial ainda entrevistou Paula Frassinete em plena manifestação de rua com a APAN, constatando o empenho da sociedade paraibana em acabar com toda essa matança. Não se pode negar que a matéria televisiva veiculada pela Rede Globo foi vista por milhões de telespectadores, a ponto de influenciar a opinião pública e repercutir no cenário político.
Navio da Copesbra arpoando baleia com canhão mecânico. Foto reproduzida por Verônica Martins, 2009.
Poucos anos depois, quando a caça de baleias no Brasil entrou em moratória e o fantasma de seu retorno ainda assombrava a Paraíba, a imprensa paulista teve um papel fundamental para que a atividade fosse proibida de vez. E quem mais se distinguiu nessa campanha em defesa das baleias foi o jornalista Dagomir Marquezi, que no ano de 1986 assinava a coluna Recado Ecológico no jornal O Estado de S.Paulo. O texto que escreveu, 10 razões para acabar com a caça às baleias no Brasil, alcançou um resultado imediato e impressionante, justamente na época em que um novo projeto de lei proibitivo da caça, que fora apresentado pelo deputado Gastone Righi, aguardava votação. Ao Jus Animalis, Dagomir Marquezi contou sobre a repercussão de sua matéria perante a população e no meio político:
Comecei a receber cartas de apoio do Brasil inteiro, abaixo-assinados de empresas e escolas, desenhos de crianças, apoio de políticos e artistas. Isso antes da internet. Viralizou sem redes sociais. E eu contei com o valioso apoio do deputado Fábio Feldmann, que seria o autor do capítulo sobre ambientalismo da Constituição de 1988. Meu trabalho foi só o catalisador de todas essas forças. Em 9 de junho de 1986 fui até Brasília em nome do jornal e entreguei uma sacola repleta desse material ao presidente do Senado Federal na época. Demorou, mas a lei foi aprovada e em 1987 as baleias deixaram definitivamente de serem caçadas no litoral do Brasil.
Vozes pioneiras
A época em que mais se matou baleias na praia do Costinha foi durante o regime militar, observando que importantes órgãos do governo, como o Itamaraty e a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca-SUDEPE, eram favoráveis à atividade da Copesbra. Mas havia uma honrosa exceção, e ela estava na Marinha. Estamos falando do vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, um homem apaixonado pela causa ambiental e que se posicionava abertamente contra a matança dos cetáceos. Sua dedicação à preservação da vida marinha explica a liderança que ele teve na luta contra a caça das baleias e, também, na criação de Unidades de Conservação marinhas, tanto que ao deixar a ativa, em 1981, Ibsen Câmara presidiu a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza-FBCN e ali continuou a realizar seus projetos ambientais.
Afora o Almirante Ibsen Câmara, que sempre projetou um olhar conservacionista para o meio ambiente, fosse ele marinho ou terrestre, outra honrosa exceção dentro do governo federal era um dos maiores expoentes do ambientalismo brasileiro: Paulo Nogueira Neto, que a partir de 1974 ocupou o cargo de Secretário Especial do Meio Ambiente. Como bem registram os historiadores Edmundson e Hart em seu livro, Nogueira Neto defendia a ideia de que toda a costa atlântica da América do Sul deveria ser transformada em um santuário de cetáceos. Mas em meio ao cenário político existente na época dos acontecimentos, nenhuma ideia sensata ou propositura legislativa conseguia avançar para proibir a caça de baleias no país.
Vozes outras apareceram em adesão à campanha ecologista, que prosseguia firme. As mais bem sucedidas surgem na música popular brasileira, pela parceria entre Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Em 1976, Roberto grava O Progresso, na qual uma estrofe toca no ponto crucial da questão: “E as baleias desaparecendo / por falta de escrúpulos comerciais / Eu queria ser civilizado com os animais”. Dois anos depois Erasmo lança Panorama Ecológico, falando sobre os desmandos humanos contra a natureza e os animais, com a imagem das “baleias entupidas” de poluição (e ataques). Já em 1981, quando o movimento ambientalista alcançava seu apogeu em termos de participação popular e reinvindicações políticas, após a aprovação da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938, concebida por Paulo Nogueira Neto), é a vez de Roberto Carlos estourar nas paradas de sucesso com uma música dele e de Erasmo, As Baleias:
“Não é possível que você suporte a barra / De olhar nos olhos do que morre em suas mãos / E ver no mar se debater o sofrimento / E até sentir-se um vencedor nesse momento / Não é possível que no fundo do seu peito / Seu coração não tenha lágrimas guardadas / Pra derramar sobre o vermelho derramado / No azul das águas que você deixou manchadas / O gosto amargo do silêncio em sua boca / Vai te levar de volta ao mar e à fúria louca / De uma cauda exposta aos ventos / Em seus últimos momentos / Relembrada num troféu em forma de arpão / Seus netos vão te perguntar em poucos anos / Pelas baleias que cruzavam oceanos...”
O Brasil se emocionara com a canção de Roberto Carlos, cujo LP vendeu mais de três milhões de cópias. Não demorou para que o deputado Gastone Righi passasse a trabalhar em um projeto de lei que proibia a caça de cetáceos em águas territoriais brasileiras, mas as resistências políticas eram muitas. Sem desanimar e mantendo-se firme em seus propósitos, o movimento ambientalista reunia a Associação Paraibana dos Amigos da Natureza-APAN e entidades ecológicas do Sul, Sudeste e Nordeste do país, dentre elas a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural-AGAPAN (Porto Alegre), a Associação Pernambucana de Defesa da Natureza-ASPAN (Recife), a Associação Mineira de Defesa do Ambiente-AMDA (Belo Horizonte) e a União em Defesa das Baleias-UDB (São Paulo), afora o apoio recebido do Greenpeace Brasil (sede em São Paulo) e da própria Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (Rio de Janeiro).
A União em Defesa das Baleias-UDB, seguindo a mesma linha do ativismo de rua realizado pela APAN em João Pessoa, realizou em São Paulo um trabalho multifacetado cuja dinâmica recorria ao uso de faixas e cartazes, distribuição de panfletos, discursos em praça pública, abaixo-assinados, arte gráfica, palestras educativas nas escolas, publicação de livro em linguagem de cordel e até a gravação de música com coral infantil. A gravidade do que se via na praia do Costinha justificava tantas ações. Quem conta isso à reportagem do Jus Animalis é a advogada Ana Maria Pinheiro, uma das fundadoras do grupo ao lado do ambientalista inglês David Paul Stevens e da artista plástica Ângela Leite:
Na Paraíba tinha o grupo da APAN. Mas em São Paulo fundamos a UDB quando a caça de baleias na praia Costinha ainda acontecia intensamente. Ângela associava a arte dela à defesa das baleias. Lançamos um livro juntas, com texto meu em forma de cordel repentista e desenhos dela. Fazíamos tudo o que podíamos para atrair a atenção da imprensa. Levamos uma baleia azul inflável para manifestações, fomos a eventos no Parque do Ibirapuera, com a participação de crianças, enviamos correspondência com nossos livros para toda a circunvizinhança da Copesbra e até gravamos numa fita cassete uma musiquinha minha chamada “Baleia Feliz“, que contou com um bonito coral infantil. E encaminhamos tudo isso para cada político do Congresso. O sucesso da nossa campanha deve-se à variedade de manifestações, à nossa persistência, insistência e não desistência de lutar pela causa.
Já a carioca Ângela Leite, que muito fez como ativista da União em Defesa das Baleias nos anos 80, usou a linguagem da arte – desenhos e xilogravuras - para sensibilizar as pessoas em relação ao direito das baleias, projetando um olhar sensível para o ambientalismo e a sustentabilidade. Sua representação dos animais, especialmente a baleia-jubarte, tornou-se um símbolo da gravura brasileira, tanto que ao longo da carreira ela obteve elogios da crítica especializada e, também, de personalidades como Paulo Vanzolini, Washington Novaes e Ibsen Câmara. Na época da ECO-92 o jornalista da Folha de S. Paulo, Aloysio Biondi, disse que “Angela Leite mostra os bichos que defende não com um viés mórbido ou como vítimas de extermínio, mas exaltando-os como exemplos de vida bem-sucedida e que merece ser preservada”.
No âmbito acadêmico, é preciso enaltecer a voz de outro grande precursor do meio ambiente no Brasil, o professor João de Vasconcelos Sobrinho. Durante um congresso realizado na Universidade Federal do Recife, em janeiro de 1981, ele assim endossou a fala de Paula Frassinete pela proibição da caça das baleias: “Nas águas quentes do Nordeste a baleia tem sua área de acasalamento. Para todas as espécies, as áreas de acasalamento são santuários de preservação, que deveriam merecer todo o amparo dos homens civilizados. O Nordeste tem a responsabilidade por zelar por suas águas territoriais, como faríamos se fôssemos menos bárbaros”. A Universidade Federal da Paraíba, de sua parte, contribuiu para a melhor compreensão dos cetáceos com o trabalho do pesquisador Kandar Singarajah e do zóologo Alfredo Langguth, que propiciaram maior respaldo técnico às entidades ambientalistas.
Como bem lembrado pelos historiadores Edmundson e Hart, naquela época, 16 entidades ambientalistas entregaram um abaixo-assinado ao escritório regional da Secretaria Presidencial de Planejamento no Recife, visando à proibição da captura de baleias na costa paraibana sob o fundamento de que a caça não beneficiava as populações do Nordeste. Neste mesmo sentido, aliás, foi a conclusão do geógrafo Antônio Moacyr Madruga, da Universidade Federal da Paraíba, em seu livro A Questão da baleia: Da Luta Ecológica à Exploração Humana, demonstrando ele que a caça às baleias, um trabalho sazonal mal remunerado em comparação aos cargos exercidos por funcionários japoneses, trouxe apenas prejuízos à reputação do Brasil, seja na Comissão Internacional Baleeira, seja perante a comunidade científica.
A baleia mais caçada durante o período colonial brasileiro e, também, no Atlântico Sul, pelas nações baleeiras, foi a baleia-franca, que declinou sua população a ponto de despertar preocupação internacional em face do risco de extinção. Em Santa Catarina, nos anos 80, com o intuito de monitorá-la para ajudar na conservação, José Truda Palazzo Junior fundou o Projeto Baleia Franca, após ser incentivado pelo Almirante Ibsen Câmara. Nessa época, Truda Palazzo chegou a atuar como conselheiro da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural-AGAPAN e, ainda, como vice-presidente dessa entidade no biênio 1983-1984. Perguntado pelo Jus Animalis sobre como iniciou sua trajetória ativista em defesa das baleias, ele respondeu:
Eu entrei na campanha contra a caça à baleia no Brasil em 1978, pelas mãos de Augusto Carneiro, um dos grandes líderes do ambientalismo gaúcho, que trabalhava com José Lutzenberger na AGAPAN e, quando nos conhecemos em uma reunião semanal da entidade, me incumbiu de ajudar com o abaixo-assinado contra a atividade. Foi através dele que conheci os paraibanos já engajados na causa através da APAN-PB, União em Defesa das Baleias em São Paulo, e outros grupos. Vale lembrar que naquela época não havia internet e tudo era feito no papel, escrevendo cartas, enviando telegramas, fazendo manifestações presenciais nos consulados japoneses, enfim, tudo muito braçal mesmo. A entidade promovia um ativismo baseado na boa informação sobre os temas, toda semana organizava palestras e encontros, e defendia a Natureza acima de tudo, sem concessões antropocêntricas.
Enfim, muita gente ergueu voz para que as baleias tivessem o direito de migrar e se reproduzir livremente por onde quer que fossem. Se nossa história tratou esses animais com o ferro dos arpões, somente no século 20 - em meio ao ritmo industrial implantado pela fábrica da Copesbra para alavancar a indústria baleeira do país -, ecologistas destemidos se uniram contra o que acontecia em nosso último reduto de caça comercial. Pessoas como a ativista social Paula Frassinete e tantos outros companheiros de luta, contando com o reforço de cantores populares de sucesso, de jornalistas sérios e de cidadãos sensibilizados com a causa das baleias, contribuíram para que o tema chegasse à esfera política, suscitando uma lei capaz de virar a página sangrenta que envergonhava o Brasil perante a comunidade internacional.
Pedro Cordeiro Estrela, mestre e doutor em Biodiversidade e profundo conhecedor da área de zoologia e da evolução morfológica dos mamíferos, recebeu a reportagem do JusAnimalis em seu departamento na Universidade Federal da Paraíba. Nesta Instituição ele também é curador da coleção de mamíferos, tanto que fez questão de mostrar alguns ossos de baleia minke capturada em temporada de caça na praia do Costinha. Segundo ele, em relação às baleias “as coisas melhoraram muito em nosso país e isso é fruto da militância que se posicionou contrariamente à matança dos cetáceos. Temos aqui um exemplo de ativismo que conseguiu vedar a caça das baleias. E todo esse avanço decorreu em virtude da implantação de uma importante política de conservação”, conclui o professor.
Paula Frassinete, da APAN, uma importante voz contra a caça das baleias na Paraíba
Ainda sobre o grande defensor das baleias e que tanto protegeu o ambiente marinho, Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, é preciso dizer que ao final de sua vida ele recebeu uma justa homenagem no Ministério do Meio Ambiente, em razão das realizações que fez em prol da biodiversidade, com um papel fundamental na criação do nosso primeiro Parque Nacional Marinho, a Reserva Biológica Atol das Rocas, depois o de Abrolhos e o de Fernando de Noronha. Ibsen Câmara, sensibilizado com o reconhecimento público, contou durante a cerimônia transcorrida em Brasília de que maneira a preocupação ecológica tocou seu ser, conforme trecho da entrevista concedida ao Jornal eletrônico O ECO, em 5 de dezembro de 2013:
A minha vocação ambientalista foi porque eu gostava de natureza. Comecei a perceber as barbaridades que eram feitas e isso me levou cada vez mais a me envolver [com o meio ambiente]. Uso sustentável para mim é brincadeira, nada mais é que refrear um pouco o ritmo de destruição. Isso não satisfaz. Eu fiz o que pude, não fiz o que quis, e espero ter dado alguma contribuição. Mantenho meu interesse até hoje, estudo todos os dias e acompanho as revistas científicas. Quero estar em dia com o que está acontecendo. Me assusto demais pelo que está havendo no mundo em termos de destruição da vida. Estamos passando por uma das crises ambientais e biológicas mais séries e intensas dos últimos 65 milhões de anos. A humanidade não está percebendo o que está fazendo. Feliz por saber que há pessoas que apreciam alguma coisa que eu fiz. A juventude é a esperança das coisas melhorarem.
A Lei redendora
A legislação aplicada no Brasil colonial, pelas Ordenações Filipinas, não estabeleceu qualquer proteção ao denominado “peixe-real”, apesar da importância econômica que a baleia tinha naquela época. Foram priorizadas regras voltadas à organização da vida social e à exploração dos recursos naturais. Só mais tarde é que as baleias passaram a figurar em regulamentos sobre atividades pesqueiras. Na era republicana, o Código Civil de 1916 falou da caça e da pesca, mas sem incluir cetáceos. Apenas em 1934, mediante lei autônoma, é que surgiu o primeiro Código de Caça e Pesca (Decreto nº 23.672), cuja execução cabia ao Departamento Nacional de Produção Animal, pertencente ao Ministério da Agricultura. Em seu capítulo X apareceu, especificamente, a previsão da “pesca da baleia e outros cetáceos”: Artigo 94 - Será permitida a caça dos cetáceos, inclusive a baleia, aos pescadores que, não dispondo de embarcações e aparelhagem apropriadas, a façam em canoas, ou outras embarcações movidas a vela ou remo.
Ainda que essa lei vedasse a matança de “filhotes novos não desmamados” ou a “captura de fêmeas acompanhadas de filhotes” (artigo 95), na prática tais restrições não eram cumpridas pelos arpoadores. E quatro anos depois surge o Decreto-Lei nº 794/38, que instituiu o novo Código de Pesca e revogou a parte referente à pesca do Código de Caça de 1934, mas sem fazer referência a cetáceos. Na década seguinte foi aprovado outro Código de Caça, o Decreto-Lei nº 5.894/43, que revogou o anterior e, também, não tratou dos mamíferos marinhos. Por sua vez, a Lei de Proteção à Fauna, instituída pela Lei nº 5.197/67, revogou o Decreto nº 5.834/43, mas deixou uma lacuna em relação aos cetáceos. A baleia acabou incluída depois no Decreto nº 221/67, o Código de Pesca, cujo título IV dispunha “da Pesca e da Industrialização de Cetáceos”.
Esse rápido panorama legislativo do passado serve para mostrar a confusão jurídica estabelecida em torno do assunto, primeiro sem tratar dos cetáceos em legislação alguma, depois com a baleia sendo colocada no Código de Caça e de Pesca, e para mais tarde deixá-la apenas no Código de Pesca como uma das espécies passíveis de extração marítima. Enquanto isso, nas águas territoriais brasileiras, a atividade mercantil que prescindia de sua captura corria solta e de modo cruel, haja vista que os animais eram abatidos indiscriminadamente e isso acarretou, no Brasil, a redução das populações de baleias-franca e de baleias-jubarte, enquanto em alto-mar outras nações baleeiras dizimavam, em navios-fábricas as baleias-azul, as baleias fin e outras tantas espécies.
Navio-fábrica operando no oceano, levando a bordo baleia e filhote para processamento. Fonte: Greenpeace.
Tratava-se, sem dúvida, de caça predatória o que vinha ocorrendo no Brasil e no mundo, o que mobilizou ecologistas em toda parte do planeta. A Copesbra tornou-se alvo de protestos ativistas e a polêmica ultrapassou os limites geográficos da Paraíba para ser levada a outras instâncias do poder. Era preciso, em termos globais, que a Comissão Internacional Baleeira fosse além da mitigação decorrente das moratórias para proibir de vez a matança comercial. Mas também era preciso que nosso país aprovasse uma lei federal em favor dos cetáceos. O senador Nélson Carneiro chegou a apresentar o PL 248/76, de conteúdo restritivo, mas sua propositura não seguiu adiante porque a maioria do governo federal era favorável à caça das baleias.
Eis que a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca-SUDEPE, em face das críticas que recebia, publicou o Decreto nº 17/79, anunciando o fim da caça de baleias no Brasil a partir de 1º de janeiro de 1981. O entusiasmo das entidades ambientalistas e dos órgãos de imprensa, porém, morreu na praia, porque o presidente João Baptista Figueiredo, quase ao final de 1980, revogou o decreto da SUDEPE. Isso permitiu que a atividade baleeira na praia do Costinha ganhasse uma sobrevida, apesar das pressões de entidades conservacionistas nacionais e internacionais. Já na reunião anual da CIB a delegação brasileira se absteve de votar em favor da moratória à caça, de modo a permitir a continuidade das atividades da Copesbra.
Em 1984, o deputado Gastone Righi apresentou o PL 4014, cuja redação original proibia e criminalizava a matança de baleias, dentro de uma perspectiva conservacionista. O projeto recebeu emenda de outro deputado, Darcy Passos, que sugeriu alteração no texto para que a conduta delituosa abarcasse “qualquer forma de molestamento intencional de cetáceos”. Acontece que, durante a sua tramitação parlamentar, a CIB impôs moratória global de captura comercial de baleias a partir de 1986, o que levou o Brasil a aderir à diretriz internacional por meio do Decreto nº 92.185/85: “Ficam proibidas, nos termos da emenda 10 (e) ao Regimento da Convenção Internacional para a regulamentação da Pesca da Baleia, as atividades de caça comercial da baleia no Brasil, a partir de 1º de janeiro de 1986, por um período de cinco anos”.
Ao contrário do que se podia imaginar, ainda não era motivo de comemoração. Isso porque o decreto do presidente José Sarney não acabava com a caça das baleias no país, apenas estabelecia uma moratória de cinco anos. A atividade baleeira interrompida na armação de Costinha em tese poderia voltar caso não fosse aprovada, dentro do prazo estabelecido, uma lei definitiva em favor dos cetáceos. Na última temporada, a de 1985, a Copesbra capturou 598 baleias, o que rendeu lucros expressivos aos japoneses. Mas depois disso ficou em compasso de espera, à procura de alternativas para sua fábrica desde então paralisada. No ano seguinte a empresa recebeu outro duro golpe, assim que a moratória global de caça às baleias começou a vigorar. Mas o golpe fatal, que acabaria de vez com ela, ainda estava por vir.
O que acelerou o desfecho da questão, como enfatizado por Edmundson e Hart, foi o gigantesco lobby político feito pelos ambientalistas e a campanha impulsionada pelo jornalista Dagomir Marquezi, de O Estado de S. Paulo. Mais de 60 mil assinaturas e centenas de cartinhas de crianças em prol das baleias fizeram com que o presidente do Senado, José Fragelli, colocasse a proposta de Gastone Righi em pauta. Palavras dos citados historiadores: “O Senado brasileiro, numa sessão extraordinária, aprovou o projeto de lei do deputado Gastone Righi em 16 de dezembro de 1987, e o Senado enviou a lei ao presidente Sarney para sua sanção”. Assim surgiu a Lei 7.643/87, que proibiu a caça de baleias no Brasil.
Baleia-jubarte de volta às águas nordestinas. Imagem: National Geographic.
A lei redentora das baleias criminalizou, enfim, o molestamento intencional de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras, estabelecendo aos infratores pena de dois a cinco anos de reclusão, multa pecuniária e perda da embarcação em caso de reincidência. Após ser criado, em 1989, o Ibama se incumbiu de regulamentar a Lei dos Cetáceos, editando a Portaria nº 2306/90. Posteriormente, pela Portaria nº 117/96, o órgão ambiental estabeleceu normas específicas para a proteção das baleias, incluindo restrições à aproximação delas por meio de embarcações e aeronaves, com o propósito de evitar qualquer tipo de molestamento que possa interferir em sua vida natural em liberdade.
Mais a frente, em 2008, o governo federal editou o Decreto nº 6.698, que declara as águas jurisdicionais marinhas brasileiras Santuário de Baleias e Golfinhos do Brasil, com a finalidade de reafirmar o interesse nacional no campo da preservação e proteção de cetáceos e promover o uso não-letal das suas espécies.
Ao assim fazê-lo, o decreto assegurou a proteção e conservação desses animais e de seus habitats. Não se pode deixar de dizer que o decreto, ao reforçar a proibição da caça comercial dos cetáceos, também busca promover a pesquisa científica, o desenvolvimento do turismo de observação de baleias e a educação ambiental.
Desde 2000, aliás, que Brasil, Argentina e Uruguai vêm apresentando juntos, na CIB, propostas para a delimitação de uma área que alcance toda a porção do oceano situada entre o litoral da América do Sul e o continente africano, para que nesse trecho as baleias sejam inteiramente protegidas. Em 2016, no Rio de Janeiro, foi lançada uma campanha pela criação do Santuário de Baleias do Atlântico Sul, na expectativa de sensibilizar a comunidade internacional e aprovar a área oceânica de conservação aos cetáceos. Sucede que ano após ano a proposta é derrotada pelos países interessados na retomada da liberação, sobretudo a Noruega e o Japão, que conseguem votos de países aliados ou que de alguma forma são beneficiados por eles. Indagado pelo Jus Animalis sobre o que acontece nas reuniões da CIB, a impedir a aprovação do Santuário, José Truda Palazzo Junior faz revelações pouco animadoras:
A proposta ganhou o apoio maciço dos países latinos na CIB e vem sendo debatida na Comissão desde então, mas o problema é que sua aprovação depende de ¾ dos votos, e o Japão, mesmo hoje não sendo mais membro da CIB, mantém ali um grupo de países-marionetes, nações insulares pobres pagas com “cooperação pesqueira” e outras benesses mais obscuras, para impedir que esse número de votos a favor seja alcançado. Na mais recente Plenária, em Lima, Peru, em 2024, a aprovação do Santuário deixou de acontecer por UM voto, o do Benim, cujo Presidente havia garantido em recente visita ao Brasil seu apoio, mas o Comissário dele mudou o voto na última hora após uma reunião a portas fechadas com um emissário japonês.
Sobre o papel da Comissão Internacional Baleeira em um cenário global que se move em função de interesses econômicos e que cada vez mais desrespeita o meio ambiente natural, tanto que há nações que ainda continuam a caçar baleias, Truda Palazzo é enfático:
Minha opinião particular é de que a CIB está fadada à extinção. Seu texto fundador, de 1946, é eminentemente baleeiro e não condiz com as necessidades de conservação desses animais no século XXI. A caça à baleia, felizmente, está acabando em todo o planeta, e já não há mais um grande interesse político dos países em atuar na Comissão, até porque sua anuidade é alta, enviar delegações é caro, e esse dinheiro poderia ser mais bem aproveitado em outras convenções mais úteis como a Convenção de Espécies Migratórias. É necessário o Brasil e outros países estarem lá enquanto o Japão mantém suas marionetes engajadas, para evitar que derrubem a moratória global da caça em águas internacionais ou outra manobra do gênero, mas o próprio Japão ano a ano vem tendo mais dificuldades de justificar a caça em suas águas, e quando ele parar, a CIB não terá mais razão de existir. A geração mais nova verá certamente o fim total da caça comercial de baleias no mundo, e saber disso me dá uma sensação de dever cumprido.
Memorial das baleias
Memorial, como o próprio nome já diz, é um lugar de memória. Algo que evoca lembranças de locais ou pessoas. Recordações boas ou ruins, não importa, sua justificativa principal é a de preservar para conhecer, para fazer refletir, para conscientizar. Documentos e objetos antigos, prédios históricos, sítios arqueológicos ou espaços de grandes acontecimentos do passado podem se tornar memoriais destinados à visitação de gerações presentes e futuras. Seu sentido maior não deixa de ser pedagógico, pelo fato de servir como referência ao que deve ser exaltado ou simplesmente repudiado. Outra importante função que possui é a de estabelecer um elo entre dois tempos distintos da história, ajudando na formação daquilo que se pode chamar de consciência coletiva.
Em relação à caça das baleias, o que se deu no Brasil – sobretudo na praia do Costinha, no século 20 – é um acontecimento memorável que concentrou na Paraíba a luta ativista em nível nacional e cujo esforço levou à proibição definitiva da perseguição e matança dos cetáceos. O local de memória, no caso, é a área em que operou a Copesbra, de onde saiam os navios arpoadores e no qual as baleias abatidas no mar eram retalhadas. Embora as edificações originárias já tenham sido derrubadas, o fato é que boa parte do material relacionado à caça (canhão, lanças, arpões, ganchos, boias de sinalização e outros apetrechos, assim como documentos e fotografias) ainda existe e pode ser reunido para compor o acervo de um museu.
Instrumentos utilizados para a caça de baleias na Paraíba. Praia do Costinha. Foto de Verônica Martins, 2009.
Vale citar um precedente em Santa Catarina que contou com a iniciativa da prefeitura de Imbituba, região em que esteve instalada a última armação baleeira daquele estado. A edificação existente na praia do Porto e que encerrou suas atividades em 1973, foi reformada e hoje ali funciona o Museu da Baleia. Isso se deve a uma parceria entre a prefeitura local e o Projeto Baleia Franca, que contou com o apoio de empresários da região e, também, da Petrobrás, para a devida adaptação do imóvel destinado à visitação pública. Só que neste caso o local em que funcionava a antiga estação baleeira foi tombada pelo Patrimônio Histórico Municipal e, consequentemente, restaurada para servir como memorial que reúne relíquias capazes de mostrar o período de caça das baleias e a importância da proteção dos cetáceos.
Nada impede que a prefeitura de Lucena possa fazer o mesmo no distrito do Costinha, desapropriando uma parte da área onde operava a Copesbra para reconstruir ali, a partir das imagens e registros existentes, o cenário do que existiu, reunindo também todo o acervo da caça para que turistas e visitantes possam ver e sentir mais de perto o que de fato aconteceu com as baleias no século passado. A ecóloga Verônica Martins de Souza, que em 2009 esteve no local e fez registros fotográficos do que restou da antiga estação baleeira, acredita que esse tipo de iniciativa seria importante para reforçar a memória dos brasileiros. Entrevistada pelo Jus Animalis, ela disse que, além de uma medida de reparação histórica, o museu exerce relevante papel educativo, já que é indispensável atuar na sensibilização das pessoas:
Nesses tempos em que a gente se acostuma facilmente com absurdos e barbáries, contra humanos, animais e meio ambiente natural, não podemos baixar a guarda: é imprescindível que todos, especialmente as novas gerações, tomem conhecimento dos nossos erros passados para não repeti-los no presente ou no futuro. É o papel que os livros de história têm, né? Baleias são seres incríveis e a cultura de caça prejudica não apenas uma espécie, mas todo o ecossistema marinho, do qual todo o planeta depende, de forma interligada.
Na condição de morador do distrito de Costinha que conheceu muito de perto as atividades ali desenvolvidas pela Copesbra, Romilson da Costa Santos - que também preside o Instituto de Meio Ambiente e Ações Sociais-IMAAS – contou à reportagem que nos fundos da área da empresa baleeira havia um pequeno monumento japonês com inscrições que diziam o seguinte: “À memória dos espíritos das baleias que matamos”. Entusiasta do sonhado Memorial das Baleias no distrito de Costinha, ele decidiu criar uma associação para reunir os adeptos desse projeto cultural-pedagógico. Segundo Romilson, temos a expectativa de que o Consulado japonês encampe a ideia do memorial e o Greenpeace ajude a implementá-lo:
O plano é transformar isso numa réplica do que foi, para reunir na pequena cidade oceanográfica o Museu da Baleia, que poderia contar com o Cebrae para apoiar os microempresários, o Senac para a capacitação profissional e, também, com a Universidade, que teria um espaço para pesquisas. Ou seja, um conglomerado de interesse cultural e turístico, porque aqui tem muita coisa valiosa para ser visto e aprendido.
Paula Frassinete (centro) e Romilson da Costa Santos (à direita), durante a reportagem na praia do Costinha.
Existe também a possibilidade de a praia do Costinha se tornar ponto estratégico para o turismo de observação de baleias, a partir de embarcações específicas destinadas a esse fim, como cogita Romilson. A esse respeito cabe dizer que até ambientalistas divergem entre si, pelo fato de a lei brasileira vedar o molestamento intencional de cetáceos. Renata Fortes, advogada que foi contratada pela Sea Shepherd Brasil para defender, em Santa Catarina, o berçário da baleia Franca Austral (que, segundo afirmou, é um dos cetáceos mais ameaçados de extinção, mesmo no hemisfério sul), tem posicionamento contrário ao turismo de observação de baleias em embarcações. Ouvida pela reportagem, ela faz críticas a essa prática turística:
O turismo de observação de baleias embarcado, segue suspenso em Santa Catarina desde 2013. Em outros locais o turismo com baleias jubarte, em que pese ser diferente porque essas baleias não têm hábito costeiro, sempre causa molestamento, porque a definição é para qualquer ato que tenha o potencial de causar a mudança de comportamento em uma baleia ou grupo de baleias. A portaria do Ibama 116/97 não cumpre com o seu papel de proteção, porque quem verifica a distância é o piloto da embarcação a olho nu, o que leva a falhas na aferição da distância. Não existe qualquer tipo de cautela, sempre será molestador, lembrando que a definição de molestamento alcança qualquer ato que tenha o potencial de mudar o comportamento das baleias. Em Santa Catarina o turismo deve ser feito por terra, de vários mirantes naturais e noutras regiões adequadas, não pelo mar.
Na mencionada Portaria, o Ibama veda, dentre outras coisas, que a embarcação se aproxime a menos de 100 metros da baleia com o motor ligado; que produza ruídos excessivos a menos de 300 metros dos cetáceos; que interrompa o curso de deslocamento marítimo dos animais; que haja mergulho ou natação de pessoas a menos de 50 metros da baleia; ou, ainda, que as aeronaves se aproximem das baleias em altitude inferior a 100 metros sobre o nível do mar. Também indagado pelo Jus Animalis acerca do turismo de avistamento de baleias, por embarcações, se é ou não uma boa medida a ser implementada no litoral brasileiro, José Truda Pallazzo Junior tem opinião favorável e a justifica:
A promoção do Turismo de Observação de Baleias foi uma ferramenta muito importante para fazer com que a comunidade da região passasse a valorizar as baleias como parte do seu patrimônio, e até hoje vem crescendo em todo o Brasil, inclusive e principalmente voltado às baleias-jubarte, um trabalho excelente do Instituto de mesmo nome. Tanto os estudos científicos realizados a longo prazo, e a própria recuperação das populações, mostram claramente que a atividade é sustentável e não gera impactos negativos nem sobre os animais, nem sobre as populações, desde que realizada conforme as normas de avistagem, sendo que participamos da redação da norma federal vigente no Brasil, a Portaria 117/96.
Turismo de Observação de Baleias em embarcação. Fonte: Projeto Baleia-jubarte.
Já o presidente da Colônia de Pescadores do Costinha, Zélio da Silva Nascimento, disse à reportagem que o fim das atividades de caça à baleia decorreu das pressões ambientais ocasionadas pela diminuição das espécies que passavam pelas águas paraibanas, como as baleias jubarte, cachalote, espadarte, azul e outras tantas. Isso, para ele, contribuiu para a aprovação, no país, da lei que proibiu as capturas e decretou o fechamento da Copesbra, deixando os trabalhadores locais desempregados. Quarenta anos depois, Zélio acredita que toda iniciativa turística que possa ajudar os moradores de Costinha é bem-vinda:
Eu era criança quando havia a pesca das baleias e assistia a tudo, da chegada dos navios rebocadores até o corte. A temporada começava no dia de Santo Antônio e acabava em dezembro. Em 1977 mataram 1050 baleias. Elas foram diminuindo em seu ambiente. E a pesca da baleia acabou por decreto em 1985. Hoje vejo que não compensa, não. Mas se vier pra cá um empreendimento que tenha atrativos turísticos, restaurante e navio para avistamento, seria muito bom para a nossa comunidade.
Restos mortais do navio baleeiro Dantas Barreto, na praia do Costinha. Foto: Laerte Levai.
A fotografia acima é o epílogo desta matéria. Quem se afasta das ruínas da antiga fábrica da Copesbra e caminha em direção ao mar, na parte mais à direita daquilo que foi a plataforma de corte das baleias, pode notar despontando na areia da praia resquícios do mastro e da proa de um velho navio. Exatamente isso. É o que sobrou do antigo baleeiro Dantas Barreto, desmanchado ali há muitas décadas e hoje quase inteiramente soterrado pelo tempo, onde seus ferros escuros e carcomidos contrastam com o horizonte azul da paisagem marítima. Que essa imagem simbólica seja a melhor tradução da vida a triunfar sobre a morte. No ambiente marinho agora aberto a seus legítimos habitantes, já não há espaço para canhões, arpões e nem barcos caçadores. Que o horror da caça das baleias não retorne nunca mais.
Paula Frassinete, que se tornou a ativista símbolo da luta em favor das baleias e fez ecoar sua voz ao país todo, até que a Lei dos Cetáceos fosse concebida e aprovada, viu e sentiu de perto todo esse drama. Ela também acredita que o projeto de um memorial na praia do Costinha tem tudo para dar certo e servir, de certo modo, como uma forma de remissão àquilo que aconteceu a milhares de baleias, que, em meio a muita dor e sofrimento, perderam suas vidas na ponta dos arpões para satisfazer a interesses comerciais. “Não se pode explorar a natureza como fizeram aqui, até a exaustão, quando muitas espécies de baleias passaram a entrar para as listas de extinção. Por isso o Memorial das Baleias é importante: para resgatar fatos do passado e despertar consciências”, conclui a presidente da APAN. Que assim seja!
Laerte Levai, repórter do Jus Animalis, na UFPB com a ativista social e presidente da APAN, Paula Frassinete.
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