A viagem do elefante: reflexões sobre o caso Sandro

O último livro escrito por José Saramago, dez anos depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura, chama-se “A Viagem do Elefante”.  A história ambientada no século XVI gira em torno do elefante indiano Salomão, aprisionado na corte portuguesa até que o rei D. João III decide doá-lo ao arquiduque austríaco Maximiliano II. Em meio à caminhada de Lisboa a Viena, o escritor português mostra que o animal protagonista de sua narrativa literária, mesmo que objetificado pelo rigor da supremacia humana, possui personalidade própria e sentimentos bem definidos. O texto ainda contém um sentido alegórico que transita pelos caminhos da fábula, ao mostrar a sujeição de um animal submetido aos caprichos daqueles que o exploram. Qualquer analogia com o caso do elefante Sandro não é mera coincidência. 

Com os olhos atentos à lucidez de Saramago, que ainda chegaria a escrever em seu blog que, se pudesse, fecharia todos os zoológicos do mundo, para resgatar a dignidade dos animais cativos, não podemos deixar de ver que, em tempos contemporâneos, a cultura do entretenimento continua a subverter a natureza dos bichos expostos em zoológicos, circos ou mesmo zooparques, que simplesmente os impedem de desenvolver comportamentos naturais ou agir com um mínimo de liberdade. Eis aqui a triste condição que recai sobre o elefante Sandro, que permanece cativo há mais de quatro décadas no Parque Zoológico Municipal de Sorocaba e que, nos últimos anos, após a morte da companheira de recinto, vem ensejando no Brasil um amplo debate jurídico e animalista sobre o melhor destino para si. Zoo ou Santuário?     

O Ministério Público, pelo promotor do meio ambiente Jorge Marum, sustenta de maneira louvável que Sandro merece seguir para o Santuário de Elefantes situado na Chapada dos Guimarães/MT, enquanto entidade mantenedora de fauna devidamente licenciada pelos órgãos ambientais competentes e que possui corpo técnico especializado para a recepção, acolhida e cuidados devidos aos animais. Diante da negativa da nova gestão municipal em aceitar a recomendação de transferência, a Promotoria de Justiça ajuizou ação civil pública. Outras entidades de proteção animal passaram a atuar no processo, ao lado do Ministério Público, em defesa do elefante Sandro. As ONGs Olhar Animal, Os Animais Importam e Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) tornaram-se litisconsortes, enquanto o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal ingressou nos autos como amicus curiae.  

No curso da instrução foi nomeado, sob compromisso, um perito judicial para avaliar o caso. O profissional escolhido, Alex Fonseca de Andrade, é médico veterinário com experiência no trato de grandes animais, membro da equipe técnica do Centro de Triagem e Recuperação de Animais Silvestres (Cetras) e, também, atua em resgates de espécies silvestres atropeladas em rodovias. No laudo ele demonstrou que Sandro vinha sendo negligenciado no acompanhamento básico de sua saúde, especialmente nos exames preventivos, prejudicados por falta de brete adequado. Ele também desaprovou o recinto escuro em que o elefante vive no zoo, em meio a rachaduras, infiltrações de água e consequente acúmulo de umidade e bolor.  Por fim, o expert judicial realizou a comparação entre os ambientes do Zoológico de Sorocaba e o Santuário de Elefantes, concluindo que este, em todos os quesitos, é significativamente superior ao local onde Sandro ainda é usado como atração turística.      

Em 25 de abril deste ano a ação foi julgada procedente. Na sentença, o juiz Alexandre de Mello Guerra, após tecer considerações sobre os direitos dos seres sencientes e sua dignidade assegurada pela lei, convenceu-se de que as provas obtidas são suficientes para autorizar a transferência do animal ao Santuário, incumbindo o município de contribuir nessa logística. Segundo o magistrado, “A Constituição Federal de 1988 incorporou importantes traços próprios do Biocentrismo, sobretudo em seus §§ 4º e 5º, e nos incisos I, II e VII do § 1º do artigo 225, prevendo com acerto a missão de proteger-se os ecossistemas e a fauna como fins em si, isto é, independentemente da utilidade/valor concreto para a vida humana”. Sucede que houve apelação da Prefeitura e o caso aguarda decisão final do Tribunal de Justiça de São Paulo. Há gente defendendo a permanência de Sandro em Sorocaba para que ele possa cumprir, até o fim da vida, aquilo que alguns teóricos do direito denominam, paradoxalmente, “função recreativa da fauna”.

Técnicos especializados em fauna têm divergido sobre a transferência de Sandro. Os de posicionamento contrário alegam que o Santuário existente no Mato Grosso é uma área inóspita, desprovida de recursos básicos e perigosa à saúde dos elefantes, acrescentando que o transporte configuraria maus-tratos. Já a corrente favorável mostra que o Santuário é seguro, conta com corpo técnico especializado e realiza um trabalho primoroso no cuidado dos animais, que ali reencontram sua natureza perdida e se recuperam dos traumas advindos do cativeiro e da exposição a que foram submetidos. Daniel Moura, biólogo que já participou de inúmeros transportes de elefantes para o Santuário da Chapada dos Guimarães, onde é diretor, tem muita prática no manejo desses animais e explica, aos leitores do Jus Animalis, que as viagens seguem um protocolo rigoroso que prioriza o bem-estar animal: 

É importante destacar que o elefante Sandro não será forçado a entrar na caixa de transporte e tampouco anestesiado, por isso se chama Processo de Aclimatação, que é uma forma de condicionar o animal de forma ética, positiva e segura, sem o uso de força física, uso de equipamentos ou drogas, apenas com alimentação e manejo correto. Durante todo o percurso rodoviário ele será monitorado por equipe de profissionais com décadas de experiência em transporte e manejo de elefantes, o que traz segurança ao processo, além de contar com escolta da PRF, a garantir segurança na viagem. Uma câmera de monitoramento, dentro da caixa, nos mostrará em tempo real como Sandro reage ao deslocamento, se precisaremos antecipar paradas ou se poderemos prosseguir por mais algumas horas. É imprescindível que tenhamos controle sobre todas as etapas do processo, para que ele seja tranquilo.  

Daniel Moura acrescenta que ao longo do trajeto são realizadas paradas estratégicas para alimentação e hidratação de cada elefante transportado, que recebe “muita água, frutas, legumes, cana de açúcar, feno, água de coco e outros mimos”. A etapa mais emocionante de toda a operação de transferência acontece no momento do desembarque, quando o animal se depara com o ambiente natural que o acolherá. “A caixa é posicionada na entrada do Centro Veterinário, que estará com uma ampla diversidade de alimentos, água e uma montanha de terra para que o elefante possa exercer seu comportamento natural de cuidados com a pele, para que possa se deitar, se esfregar. Assim ele terá uma primeira boa impressão da sua nova moradia, que também será o lugar que ele passará por treinamentos de reforço positivo e uma série de exames capazes de avaliar seu real estado de saúde”, enfatiza o especialista em manejo e conservação de animais silvestres. 

Não há o que temer no paraíso implantado na Chapada dos Guimarães, local onde os elefantes recebidos vivem felizes e encerram seu ciclo vital de modo digno. Muitos deles chegam ao Santuário com moléstias preexistentes nas articulações, adquiridas no cativeiro, a afetar patas e unhas, dada à sua rotina diária em pisos de cimento. Outros vêm com idade já avançada, mas o contato permanente com a mata nativa, com a terra e a água, além da possibilidade de caminhadas livres e interação social, tudo isso sob acompanhamento técnico e cuidados veterinários especializados, têm o condão de reanimá-los, de torná-los ativos, de lhes restituir a alegria de viver. Os pequenos prazeres do mundo natural servem, aos animais ali acolhidos, para redimi-los de tantas décadas sofridas e dedicadas ao entretenimento público. Sandro, com mais de 50 anos, merece agora a oportunidade de expressar sua verdadeira natureza.

Conclui-se que a melhor solução para o caso Sandro, portanto, passa pela consideração da vida emocional dos elefantes. O fato de os animais pensarem, sentirem e buscarem o que lhes propicia bem-estar é, na atualidade, uma evidência científica irrefutável. Nem é preciso dizer que os mamíferos possuem estruturas cerebrais idênticas às nossas e que são responsáveis pelo processamento das emoções. Neste sentido, como poderiam os elefantes esquecer sua vida pretérita permeada por choques elétricos, pelo estalo das chibatas, pelo recinto duro entremeado de grades eletrificadas ou pela ausência de interação com outros membros da própria espécie? Traumas e danos psicológicos não são exclusivos dos seres humanos, mas de todos os animais que partilham das mesmas características morfofisiológicas, incluindo a memória. E o processo de reabilitação prescinde de um ambiente natural permeado de paz.           

A viagem do elefante, no caso de Sandro, é o caminho necessário para esse reencontro consigo mesmo. Já distante dos picadeiros de Orlando Orfei, perdida sua parceira Haisa e considerado o alarme da idade que avança, não há dúvida de que a transferência para o Santuário surge como o melhor e mais justo desfecho jurídico para a demanda animalista que hoje mobiliza o país. Há que se dizer só mais uma coisa. O principal fundamento para a libertação de Sandro não se resume aos documentos técnicos constantes do processo nem às constatações dos especialistas. Ele está no bom-senso. É preciso, sobretudo, considerar o animal como sujeito, em seus anseios naturais, apelos existenciais e interesses vitais, algo que o deixe se conectar com sua essência mais profunda, às forças da natureza, às sensações (re)descobertas, às vivências sonhadas... Ainda há tempo. Libertar Sandro no Santuário, como forma de redenção a toda uma vida de solidão, privações e sofrimento, é um ato de Justiça.

LAERTE F. LEVAI

Jornalista ambiental (DRT n. 96682/SP). É repórter do Jus Animalis.

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