O boi mais solitário do mundo: fístula ruminal, vivissecção e sadismo

“[...] Não compreendo a vivissecção a não ser como um delírio de perversidade inominável, nem chego a ver a vantagem da embriaguez científica que põe milhares de cobaias e cães e qualquer espécie de animal à mercê dos cientistas […] vaidosos de fazer sofrer os “mártires da ciência” em nome de um princípio ou de uma descoberta ou de uma pesquisa ou dos problemáticos benefícios daí resultantes para todo o gênero humano […]. O homem continuará a descer sempre, bem para baixo de todos os símios, na sua maldade de criatura civilizada, para estimular todas as virulências, desde as guerras até o prazer satânico de martirizar os animais em nome do humanitarismo cínico. [...] A humanidade pode progredir sem a fisiologia, porém, não poderá progredir sem a piedade” [1].

Compaixão é a capacidade humana de sensibilizar-se com a dor alheia. É o exercício da empatia, da piedade e do amor ao próximo, independente das diferenças de espécie, raça/etnia, gênero e/ou classe social. A citação acima é de um livro de Maria Lacerda de Moura, publicado em 1931. Desde o final do século XIX e início do século XX há uma bandeira de luta contra a perversidade da vivissecção que recai sobre as vidas não humanas. Falar sobre compaixão no universo científico é uma afronta ao pensamento cartesiano, racionalista, pragmático e utilitarista. 

“A doutrina cartesiana permitiu a interpretação de que os gemidos de um cão que apanha não refletem a dor ou o sofrimento que este esteja passando, mas soam como ‘o som do órgão quando tocado’” [2]. Andreia Campos questiona se devemos usar cobaias não humanas nos experimentos científicos e analisa as premissas que permitem que esta prática tenha chegado até nós hoje, em tempos de tecnologias avançadas, encoberta pelo manto das benesses científicas. 

Na visão cartesiana, vale o que tiver utilidade e gerar lucro para alguns humanos. Devemos lembrar que os frutos da ciência nem sempre estão disponíveis para todas as pessoas. Muita gente vive à margem das inovações por não terem recursos financeiros para pagar os privilégios de algumas descobertas. 

Durante a Segunda Guerra Mundial, muitas pessoas foram usadas pelos nazistas como cobaias humanas. Stephen Jay Gould demonstrou como os testes serviram para reforçar a supremacia do macho branco europeu e justificar “cientificamente” o racismo e o machismo [3]. Após a Segunda Guerra Mundial, a ocupação sionista da Palestina reproduz os sinistros experimentos em cobaias humanas. Denúncias de tráfico de órgãos e testes com novas armas são a ponta do iceberg. Em um mundo que se cala diante da barbárie imperialista, que consome carne humana fresca em benefício de testes com armas, drogas e tráfico de órgãos, o que podemos imaginar de atrocidades sofridas pelos animais não humanos?  

Neste início de 2025 estive na Fazenda Experimental de Iguatemi, na Universidade Estadual de Maringá, para conhecer a agrofloresta desenvolvida pelo pessoal da agroecologia. No caminho me deparei com um boi solitário. Dia e noite ele fica trancafiado em um cubículo de madeira ganhando o alimento de forma controlada e antinatural. O servidor que me acompanhava falou: “tenho muita pena dele”. Vi a compaixão em seus olhos. Muito diferente é a realidade daqueles que usam o pobre boi para uma tortura permanente e sem possibilidade de uma mudança naquela vida roubada.

Em outra visita à fazenda resolvi me aproximar do boi mais solitário que já vi. Enquanto eu me aproximava lentamente do curral ele tentou fugir em vão. Não há possibilidade de fuga, ele está encarcerado sem ter cometido nenhum crime. A prisão perpétua só será findada quando ele não servir mais para os torturadores, então ele será eliminado. Segundo os comitês de ética em pesquisa, ele deve ser executado com uma “morte humanitária” para garantir o seu “bem-estar”. O que é um engodo, pois, justifica-se a utilização de recursos “indolores” sem levar em conta que o sofrimento infringido é permanente. Eu fiquei encostada no curral, conversando com ele gentilmente. Ele se aproximou, me deixou acariciar a sua cabeça. 

Ao ver aquele gigante com medo lembrei-me da arte de Amanda Melo. No ensaio fotográfico Round IV ela cria uma série de fotos na qual interage com um touro. O touro é um animal de grande porte que representa força, virilidade, ameaça, perigo. É explorado nas touradas, nos rodeios para demonstrar a dominação masculinista sobre os animais, que em alguns casos, são violentamente abatidos durante as exibições públicas. Há um sadismo masculinista em dominar, torturar e matar estes gigantes. Na arte de Amanda Melo a força bruta do touro é suavizada pela fragilidade da mulher com um longo vestido vermelho interagindo de forma belíssima em conexão com o animal não humano. 

O boi mais solitário do mundo perdeu o medo e ficamos um tempo em profundo silêncio. Ele é fistulado. Beatriz Batista escreve sobre as vacas fistuladas no seu blog [4]. Ela diz que se nomeia popularmente de vacas com janelas. A fístula ruminal é um buraco no estomago, criado cirurgicamente para que o processo digestivo seja observado e manuseado nas aulas e nas pesquisas. Desde os anos 1990 que Maria Mies e Vandana Shiva denunciam as novas formas de colonialismo contemporâneo. Elas escreveram: “uma vez que a terra, as florestas, os rios e os oceanos foram todos colonizados, torna-se necessário encontrar novos espaços para colonização, porque, caso contrário, a acumulação do capital pararia. Os únicos restantes são os que ficam dentro – dentro de plantas, de animais e do corpo das mulheres” [5]. 

Logo abaixo do texto de Beatriz Batista lê-se comentários de leitoras/es, um mais absurdo que o outro. Dizem que o animal não sente dor. Como alguém que tem um rombo do estômago até a cavidade externa não sente dor? O isolamento, a falta de mobilidade, o manejo constante para que os alunos vejam o óbvio, que poderia ser visto em um equipamento tecnológico, não são levados em consideração. Há um sadismo contra o animal e um servilismo ao agronegócio que justifica toda a barbárie. Afinal, quem compartilha do gosto de sangue da carne não irá se comover com o sofrimento do boi ou da vaca com fístula ruminal. 

Até quando a ciência estará a serviço do agronegócio? Em um tempo de emergência climática já deveríamos estar combatendo o extensionismo, o carnismo e todas as práticas vivisseccionistas. Há tecnologia para mudar o cenário, falta compaixão, empatia e piedade. A ciência segue firme nos moldes modernistas, exploratórios e destrutivos. Os cientistas vivisseccionistas marcham orgulhosamente rumo à destruição da vida planetária, serviçais dos bilionários do agronegócio. 

É tempo de derrubarmos a barbárie da pesquisa e do ensino com a fístula ruminal. Que os Direitos dos Animais destruam mais um cativeiro e excluam esta perversidade das universidades! 

Quanto ao boi mais solitário do mundo, ele continuará sendo maltratado e, depois, será descartado como lixo para alimentar a perversidade humana que se lambuza com o sangue dos inocentes.  


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Referências 

[1] MOURA, Maria Lacerda [1931]. Civilização, tronco de escravos. São Paulo: Editora Entremares, 2020.

[2] CAMPOS, Andreia Lima. Devemos usar animais como cobaias? Crítica ao paradigma científico antropocêntrico do uso de animais não humanos em pesquisas a partir da Perspectiva dos Funcionamentos. OLIVEIRA, Fabio A. G.; DIAS, Maria Clara (org.). Ética Animal: um novo tempo. Em memória de Tom Regan. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2019, p. 153-173.

[3] GOULD, Stephen Jay. A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

[4] BATISTA, Beatriz. Vacas fistuladas. Disponível em: https://sociedadevegan.com/vacas-fistuladas/. Acesso em 11 jul. 2025.

[5] MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

PATRICIA LESSA

Escritora, educadora e atuante na promoção cultural. Alguns de seus livros autorais que abordam a questão dos animais não humanos são:  Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura, publicado pela editora Entremares (2020), Literatura infantil: Nise da Silveira (2023) e Maria Lacerda de Moura (2023), ambos fazem parte da coleção Lute como uma garota e foram publicados pela Appris; O Resgate do Touro Vermelho, pela editora Luas (2021); e os livros que organizou: Relações multiespécies em rede: feminismos, animalismos e veganismo pela editora Eduem (2017) e Relações interseccionais em rede: feminismos, animalismos e veganismos, pela editora Devires (2019). Demais dados podem ser encontrados em seu site: https://patricialessa.com.br/. Créditos da foto: Isa Angioletto.

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