Sônia Felipe, filósofa ecoanimalista
O Jus Animalis, na coluna Ética Animal, não poderia deixar de homenagear a filósofa que se tornou a maior referência brasileira no pensamento crítico que se volta ao respeito à natureza e, sem dúvida, aos animais, vítimas perpétuas do supremacismo humano. Estamos falando de Sônia T. Felipe, que ao longo de sua jornada acadêmica iniciada ainda sob o regime político ditatorial, lecionou as disciplinas Ética Prática, Bioética, Ética Global e Teorias da Justiça nos programas de graduação e pós-graduação em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina, fazendo-o sempre atenta às expressões de violência contra gênero, espécies e classes sociais. Doutorando-se em Teoria Política e Filosofia Prática na Alemanha, pela Universidade de Konstanz, para em seguida realizar pesquisa de pós-doutorado em Bioética e Ética Animal no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, no início dos anos 90, Sônia Felipe inaugurou os estudos de Ética Animal no Brasil ao traduzir para uso em sala de aula na UFSC, do alemão para o português, o livro Ética Prática, de Peter Singer.
Na mesma época ela ainda foi pioneira em trazer, ao nosso meio acadêmico, o debate acerca da filosofia política de John Rawls (autor de Uma Teoria da Justiça, publicado em 1971) e de Robert Nozick (autor de Anarquia, Estado e Utopia, de 1974). Debruçando-se sobre o vasto campo da ética e dos direitos humanos, Sônia Felipe então avança rumo aos direitos de outros seres sensíveis, a ponto de até reescrever, criticamente, o texto da célebre Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornando a Carta da ONU bem mais plural, equitativa e justa. O sentido mais profundo do direito, afinal, depende da expansão do alcance das normas legais para abrigar, sob o manto da justiça, todas as criaturas que necessitam de proteção e cuidados, independentemente de suas contingências biológicas. E se hoje existe o Direito Animal, como disciplina jurídica que ganhou autonomia em relação ao Direito Ambiental, isso se deve ao esforço daqueles que vêm lutando por avanços na doutrina e na legislação brasileiras. No campo da filosofia, aliás, Sônia Felipe há décadas já se referia aos animais como sujeitos de direito e mostrava que o meio ambiente tinha de ser respeitado pelo que ele é, não em função de interesses exclusivamente humanos.
Para tanto, basta examinar a produção intelectual da filósofa abolicionista, cujo longo percurso investigativo sempre combateu as múltiplas formas de opressão cometidas pela espécie que se autodenomina racional, inteligente e superior. Nesse caminho de pedras permeado pela dor do Outro ela se volta ao estudo da condição animal, ao constatar que na sociedade humana o discurso antropocêntrico, ao aproximar os conceitos de cultura e crueldade, funciona como uma espécie de salvo-conduto para as atrocidades cometidas em detrimento dos animais. Nem é preciso dizer que, guiados pelo eco da voz longínqua de Humphry Primatt (A Dissertation on the Duty of Mercy and Sin of Cruelty to Brute Animals, de 1776, que foi republicada por Arthur Broome em 1822) e de Henry Salt (Animal Rights, de 1892), vieram os filósofos de Oxford como Peter Singer, Richard Ryder e muitos outros conceituados pensadores animalistas, cujo mérito maior foi divergir do status quo ditado pelo paradigma preponderante em relação às demais espécies. Na linha desse pensamento filosófico minoritário e mais generoso aos animais, Sônia Felipe tem sido, desde fins do século passado, a principal pesquisadora brasileira a edificar, em sua escrita, sólidos alicerces voltados ao avanço do direito para além dos seres humanos.
Assim apareceram, dentre outras publicações e iniciativas suas, as obras Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais (2003), Ética e Experimentação Animal: fundamentos abolicionistas (2007), Galactolatria: mau deleite (2012), Acertos Abolicionistas: a vez dos animais (2014), Carnelatria: escolha omnis vorax mortal (2018) e, mais recentemente, Animais na trama abolicionista: nós supremacistas (2024). Ao estudar a teoria de Peter Singer, Richard Ryder, Tom Regan, Steven Wise, Gary Francione e de tantos outros que se dedicaram à questão dos animais, ela inaugura em nosso país uma abordagem ético-animalista, mostrando que a senciência, por si só, deveria vedar a subjugação, exploração e matança de qualquer espécie. Mais à frente, a filósofa vegana realiza o mais profundo estudo crítico já existente sobre os malefícios do consumo do leite, seja para a saúde humana, seja em relação aos animais explorados, seja pelos impactos ocasionados ao ambiente natural. Não tardou para que ela publicasse um livro de ética prática versando sobre os impactos, nos animais e no meio ambiente, da produção, extração e consumo de carnes, ao denunciar os horrores provocados por uma dieta que a cada ano acarreta, no mundo, a morte sofrida de 70 bilhões de animais.
Até que surgiu, em data ainda recente, outro trabalho de fôlego onde a autora, de certa forma, traz elementos já tratados em seus livros anteriores de temática animalista e os agrega a novas reflexões para lá de desafiadoras, reunindo tudo à guisa de síntese de seu pensamento crítico, em uma narrativa impactante marcada pela lucidez e profundidade. Trata-se de Animais na trama abolicionista: nós supremacistas (2024), que pode ser considerado a obra-prima de Sônia Felipe. Como indicado na contracapa, o livro desata os “nós que formam a imensa trama na qual a dietética e a gastronomia nos enredam”. Por isso é tão urgente adotar uma postura abolicionista pelos animais: “O pensamento especista não se resume a uma crença. Ele se torna um programa político quando alcança o poder do Estado, o poder fascista, e eleva a efeito o extermínio dos indesejados (...). Abolir o preconceito e a discriminação requer compreender como se formam em nós essas tramas de nós. Implica em abolir o especismo que leva ao zoocídio, a genocídio, ao politicídio e ao democídio”, sintetiza a autora.
Animais na trama abolicionista: nós supremacistas é uma obra contundente onde a filósofa brasileira, com seu discurso antiespecista, realiza uma sondagem profunda da insensatez humana que teima em subjugar, instrumentalizar, torturar e abater bilhões de animais em todo o planeta. História, filosofia, antropologia, direito, biologia, psicanálise, tanta coisa se vê e se aprende no livro. Nele Sônia Felipe fala das raízes da violência, da psicologia da dominação, de paradoxos do direito. Sob o aspecto histórico evoca personalidades fundamentais para a melhor compreensão do abolicionismo, como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros vultos da era escravocrata que se estendeu até o final da monarquia. Discorre também sobre o drama dos animais submetidos às atividades científicas da vivissecção, ao lazer sádico-perverso e aos sistemas de criação industrial. Interessantes também são as analogias acerca do mal que já aconteceu no passado distante e o que ainda acontece, no tempo presente, a pessoas caninas, equinas e bovinas.
Com rigor, clareza, precisão de estilo e segurança nas fontes, o livro chega a causar comoção em várias passagens, sobretudo nos trechos que revelam as mazelas da supremacia do homem-algoz-poderoso em relação aos animais-vítimas-vulneráveis. Enquanto a linha de produção segue implacável na fila da degola nas granjas e matadouros, quase ninguém se importa com a forma pela qual a carne chega aos açougues, supermercados e lugares de comilança. Poucos veem que os condenados são como nós: têm dois olhos, dois ouvidos e uma boca... E os mesmos órgãos vitais. A crueldade dos experimentos nazistas nos judeus, que incluiu testes realizados em pessoas humanas com deficiência, exterminou em massa, nas câmaras de gás, crianças, idosos, homossexuais e outras pessoas tidas como indesejáveis ou proscritas. Isso tudo não escapa do olhar crítico da autora, haja vista as inegáveis analogias entre a “limpeza racial nazista” e a vida de servidão e castigos imposta a tantas espécies. Trazida ao tempo atual, tal reflexão se volta ao papel do Estado, das autoridades constituídas e da sociedade civil como um todo, para que se considere a dignidade dos animais enquanto seres sencientes integrantes de uma comunidade ecoética e, assim, se atenda aos apelos silenciados de outras vidas que vivem e querem viver.
O livro é dividido em duas partes: a Teoria Moral Abolicionista e a Teoria Política Abolicionista Animalista. Na primeira, a autora trata do abolicionismo, da senciência e discorre sobre os enfrentamentos pioneiros. Na segunda parte ela se detém no supremacismo, depois no fascismo e mais a frente no especismo, até indicar como desfazer a trama que nos enreda. Para Sônia Felipe, “O desafio de desatar os nós tramados em nós pela cultura centrada no valor da vida dos humanos, uma cultura que despreza o valor da vida dos não humanos, não está posto apenas para os abolicionistas veganos; é o grande desafio ético posto a toda a humanidade”. Uma perfeita conclusão autoral. Mais não é preciso falar. Apenas ler. Ler e admirar esta singular publicação da maior filósofa animalista do Brasil, cuja influência no ativismo pelos animais e pela natureza é simplesmente extraordinária. Que a vida e a obra de Sônia Felipe continuem a fluir e a influir nos olhos e nas mentes daqueles que estão ou virão. Que seus escritos sejam capazes de contribuir para as mudanças sonhadas. Que eles possam despertar consciências adormecidas e restabelecer a esperança de que um dia se reconheçam os direitos animais como algo justo, legítimo e absoluto.
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