Antropocentrismo na visão ecossistêmica: breve histórico

Segundo a hipótese de Gaia, com referência à deusa grega Terra, fazemos parte de um sistema de vida planetária, no qual os componentes bióticos (seres vivos) e abióticos (elementos físicos e químicos do ar, da água e da terra) formam duas forças interativas, estreitamente acopladas (LOVELOCK, 2006). 

Antropocentrismo e ecossistêmico são dois termos de origem grega, portanto muito antigos, e ao mesmo tempo, muito atuais. Antropo significa homem, e é também uma ótica na qual o ser humano percebe-se como o centro do mundo. Ecossistêmica deriva de Eco, oikos, que significa casa, de onde conhecemos as palavras ecologia e economia.

O termo ecologia foi proposto em 1866, pelo naturalista Ernest Haeckel (1834 – 1919), seguidor de Charles Darwin, entendendo que “os organismos interagem entre si e com o meio ambiente”. Entendimento este com o significado de “ecologia profunda”, distinção proposta pelo filósofo Arne Naess (1912 – 2009), em 1972, para diferenciar do conceito de “ecologia rasa”, onde os seres humanos situam-se acima ou fora da natureza.

De acordo com o Branco (1989) e Capra (1996) a ecologia profunda não separa seres humanos do ambiente natural. Nela, o mundo não é visto como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e que são interdependentes; reconhece o valor intrínseco dos seres vivos; e concebe os humanos apenas como um fio particular na teia da vida, no sentido de conexidade com o cosmos. 

As palavras “sistema”, do grego synhistanai, e “síntese” originam-se da combinação de dois radicais gregos: syn que significa junto, e thesis, que significa composição, união. Seu sentido literal, como sugere estes cientistas, trata de um conjunto unificado, constituído de partes solidárias, articuladas entre si e não reunidas ao acaso. 

A teoria dos sistemas aplicada à ecologia, cria a noção de ecossistema, demonstrando que a visão do homem, isolado do ambiente físico e biótico é ilusória. Isto porque fazemos parte do conjunto de todos os seres vivos de nosso planeta, desse espaço chamado biosfera, onde tudo está interligado por uma complexa rede de interações (DAJOZ, 1988 e CAPRA, 1996). 

O pensamento sistêmico concebe assim o mundo, como um todo integrado. Reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos por entender que, enquanto indivíduo e sociedade, estamos todos envolvidos nos processos cíclicos da natureza, dependentes uns dos outros, os quais incluem o respeito e a preservação à fauna e à flora, aos recursos naturais, aos povos das florestas, das montanhas, dos desertos e dos mares.

Kormondy e Brown (2002 apud POFFO, 2008) mencionam que o antropocentrismo se originou da ilusão de que todos os recursos naturais aqui estavam para servir ao ser humano. Esta sensação de superioridade surgiu da percepção de que o homem, como topo da cadeia alimentar, tinha vantagens e predominância sobre outras espécies. 

Basta olhar o noticiário dos últimos meses e anos para constatar que a assimilação dos conceitos ecossistêmicos na vida cotidiana não é compartilhada pela maioria dos governantes, deputados, senadores e empresários. Muito voltados aos seus umbigos e bolsos, costumam desprezar tudo que ameace “seu rico dinheirinho”, como referência ao pato mais rico do mundo, o Tio Patinhas, criado na década de 1940 por Carl Barks para os estúdios de Walt Disney. 

O contraste da visão ecossistêmica com os interesses egocêntricos ocorre desde a antiguidade. Ponting (1991) menciona que o antropocentrismo foi defendido por Sócrates (470-399 a.C.), e Aristóteles (384-322 a.C.), acreditando que “os deuses haviam providenciado tudo cuidadosamente para o benefício do homem”. Porém, Cícero (106-43 a.C.) e Platão (429-347 a.C.) faziam parte de um grupo que não atribuía tanta importância assim ao homem. 

Com as viagens de Marco Polo para a Ásia no século XVIII, os nobres comerciantes europeus tiveram contato com a cultura das antigas civilizações chinesas e hindus, principalmente. Com os ensinamentos holísticos e ecossistêmicos dos mestres Lao Tsé (China, século VI a.C.) dos quais se originou o taoísmo, Krishna (Índia, século V a.C.) e Sidarta Gautama, o Buda (Índia, século VI a.C.). 

Chegaram então à Europa, notícias de que os orientais viviam de forma integrada com a natureza, possuindo grande diversidade agrícola, e saberes incríveis para prevenir e tratar de doenças. Muitos se espantaram ao saber que na Índia, não se comiam carne bovina, e não se maltratavam os animais, aos quais eram associados com divindades e com os espíritos de seus ancestrais. 

Estas notícias foram recebidas com desprezo pela maioria dos europeus (THOMAS, 1983 citado por Diegues, 1996), cuja cultura estava embasada em conceitos judaico-católicos, nos quais os humanos, como representantes divinos, eram superiores e tinham o direito de explorar e dominar a natureza selvagem, os animais, e escravizar as raças que consideravam inferiores. 

A minoria dos europeus foi influenciada pelos ensinamentos de São Francisco de Assis (1182 – 1226), que tinha uma percepção diferente do próprio evangelho de Jesus, entendendo que os seres da natureza também eram nossos irmãos e que deveríamos amá-los como a nós mesmos. 

Esta suposta superioridade trouxe graves consequências socioambientais. Ponting (1991) comenta que nos séculos XIV ao XIX, a exploração das florestas foi tão intensa na Europa, que afetou seriamente a fabricação de navios para a marinha mercante da Inglaterra, França, Espanha e Portugal (pela falta de árvores). E, como tudo está interligado, a escassez de madeira e de carvão vegetal gerou uma crise energética no final do século XIX, com reflexos na vida doméstica, na fabricação de pães e na fundição do aço. E daí, sabemos que os europeus foram buscar árvores na África e nas Américas. 

A colonização europeia de outros continentes, norteados pela visão antropocêntrica (e egocêntrica) degradou também as florestas de outros biomas, desnudou o solo com a exploração de minerais (ouro, prata, pedras preciosas), contaminou as águas, exterminou muitas espécies da fauna e da flora, assim como tribos indígenas americanas e africanas. 

Por isso que em 1854, o Chefe Seattle, da tribo dos Duwamish, escreveu ao presidente dos EUA protestando contra os maus tratos que os índios, os animais, os rios e as montanhas estavam recebendo dos colonos e soldados. Nesta carta, consta a conhecida frase: “tudo o que ocorrer à terra, ocorrerá aos homens da terra, há uma ligação em tudo” (TANAKA, 1986 apud POFFO, 2008). E em pleno século XXI, podemos perceber quão sábia e verdadeira e atual, esta frase é! 

Ainda no século XIX, observando que a onda de destruição do mundo natural ameaçava a própria existência do homem sobre a Terra, em 1864, foi publicado o livro Man and Nature por Marsh, o primeiro a analisar os impactos negativos da nossa civilização. Ele propôs, como medida corretiva à ação destruidora do homem, o controle da tecnologia, exigindo uma revolução política e moral. Proposta totalmente pertinente aos tempos atuais. 

As ideias preservacionistas tiveram maior embasamento com os trabalhos dos naturalistas Alexander Van Humbold (1769 -1859), de Leopold Fitzinger (1802 – 1884), e Charles Darwin (1809 – 1882), devido à visão sistêmica e ética da natureza. Porém, segundo Nash (1989 citado por Diegues, op. citi), os ecólogos do pós-guerra, principalmente nos EUA, abandonaram estes conceitos, e tornaram a ecologia uma ciência abstrata, quantitativa e reducionista, tendo o homem (branco e “cristão”) como o centro do universo. 

Essa maneira de pensar antropocêntrica e gananciosa (e maquiavélica) de que “os fins justificam os meios” embasou, e tem embasado, inúmeras ações que degradaram e vem degradando os recursos naturais, adoecendo humanos e o próprio planeta. As mudanças climáticas, que temos sentido na pele, provam que não se trata apenas de previsões de “eco-chatos”.

Podemos ser a mudança que queremos ver no mundo, disse Mahatma Gandhi (1869-1948)! Que possamos ampliar cada vez mais a visão ecossistêmica e incorporá-la no dia a dia, motivando-nos a criar um estilo de vida mais harmônico e responsável para com os animais que nos cercam, com o bairro onde moramos, com o alimento que consumimos, com os resíduos que descartamos e sermos assim, instrumentos do bem e da paz na Terra.

Assim como exemplificaram Jane Goodall (1934), Chico Mendes (1944-1988), Sebastião Salgado e família, família Schurman e Ailton Krenak (1953), entre tantos ilustres desconhecidos, precisamos de mais cooperação. O trabalho é árduo, e o que importa é fazermos a nossa parte com coragem e humildade. 


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Referências

Branco, S.M.; Rocha, A.A. (1987). Elementos de Ciências do Ambiente. 2 ed. CETESB/ASCETESB, São Paulo, SP. 206p.

CAPRA, F. A teia da vida; uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. (Trad. Einchemberg, R.R.) São Paulo, SP. Editora Cultrix; 256 p. 1996.

CHERNG, W. J. Iniciação ao Taoísmo. Vol. 1. Mauad. RJ. 104p. 2000

DAJOZ, R. Ecologia Geral. 4ª edição. Vozes Editora. Petrópolis, RJ. 472 p.

Diegues, A.C.S. (1996). O mito moderno da natureza intocada. Editora HUCITEC. NUPAUB-USP, São Paulo (SP). 191p.

KRISHNAMURTI. J. Sobre a Natureza e o Meio Ambiente. Tradução Zilda H. S. Silva. Editora Cultrix. São Paulo, SP.158pp. 1991

LOVELOCK, J. Gaia: cura para um planeta doente. Tradução de Eichemberg, A. T. e Eichemberg, N. R. Editora Cultrix. São Paulo. SP. 192p. 2006

POFFO, I.R.F. Gerenciamento de riscos socioambientais no complexo portuário de Santos na ótica ecossistêmica. Tese (Doutorado). PROCAM – Programa de pós-graduação em Ciência Ambiental da USP. São Paulo, 2008. Disponível em: https://cetesb.sp.gov.br/emergencias-quimicas/wp-content/uploads/sites/22/2018/02/Tese-doutorado-Iris.pdf

PONTING, C. (1991). A green history of the world. Penguin Books. NY (EUA).


IRIS FERNANDES POFFO

Bióloga com doutorado em Ciências Ambientais pela USP/SP. Pós doutorado em Psicologia pela PUC/SP. Terapeuta holística. Escritora.

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