Vegetarianismo, veganismo e antiespecismo
Nenhum movimento social talvez tenha enfrentado oposição tão tenaz quanto o movimento pelos direitos animais. Isso não é surpreendente. A exigência de que os animais não humanos sejam tratados de forma ética e com justiça desafia não apenas práticas culturais, mas se apresenta de forma disruptiva a uma tradição milenar de exploração animal que se entrelaçou profundamente com hábitos, economias e crenças humanas.
Hoje, porém, vivemos um momento singular. O movimento pelos direitos animais tem conquistado o apoio de um número crescente de pessoas. No entanto, com o aumento da visibilidade, o movimento também enfrenta uma oposição crescente, organizada e cada vez mais sofisticada.
Entre as táticas utilizadas para neutralizar o movimento, destaca-se uma estratégia menos evidente, porém extremamente eficaz: a apropriação e assimilação das pautas animalistas por conglomerados econômicos com o objetivo de influenciar políticas públicas, legislações e a narrativa midiática, e assim enfraquecer os pilares éticos e conceituais do movimento pelos direitos animais, perpetuar as práticas de exploração animal e manter a percepção dos animais como propriedade.
Ao incorporarem os termos utilizados pelo movimento animalista, essas corporações esvaziam seu conteúdo moral e transformam conceitos como vegetarianismo e veganismo em meros rótulos mercadológicos, promovendo iniciativas e produtos que se apresentam como éticos, mas que, na prática, apenas criam uma falsa sensação de mudança enquanto mantêm intactas as estruturas de opressão. A sofisticação dessa estratégia reside justamente em sua sutileza, ao adotar uma linguagem que desarticula a luta genuína ao mesmo tempo que reforça seu controle sobre os sistemas de exploração animal.
O papel da linguagem na luta pelos direitos animais
Além dos desafios nos campos econômico, político e jurídico, o movimento pelos direitos animais enfrenta, sobretudo, desafios morais. Trata-se de questionar as bases éticas que visam sustentar o tratamento injustamente desfavorável concedido aos animais e de propor um novo paradigma moral, no qual seres sencientes sejam reconhecidos como sujeitos de direito e tenham sua vida e integridade física respeitados. Este embate ideológico é uma das frentes mais importantes e difíceis do movimento, já que implica desmantelar tradições profundamente enraizadas.
Para reconfigurar os alicerces morais da sociedade, é indispensável cultivar uma consciência coletiva que reflita sobre as injustiças intrínsecas à forma como, historicamente, nos relacionamos com os animais não humanos. Nesse contexto, a linguagem surge como uma das ferramentas mais poderosas de transformação.
A forma como definimos conceitos e introduzimos termos novos pode determinar a direção do debate público e influenciar profundamente como as pessoas percebem o mundo. As palavras que usamos carregam significados que moldam a realidade ao influenciar como as pessoas interpretam o mundo ao seu redor e orientam suas ações, de tal modo, que quando um termo é cunhado ou redefinido, ele não apenas descreve uma realidade existente, mas também propõe uma nova maneira de enxergá-la, promovendo novos paradigmas.
Termos como vegetarianismo, veganismo e especismo não apenas nomeiam ideias, mas também desafiam crenças antigas e práticas naturalizadas. Assim, a luta pelos direitos animais não se dá apenas no campo das ações, mas também no das ideias - e a linguagem é o terreno fértil onde essas ideias florescem.
Uma disputa conceitual
Nas civilizações antigas, a reflexão sobre a morte de animais para o consumo humano esteve imersa em debates que envolviam uma ampla gama de questões. Em muitas culturas, a violência implícita no ato de matar animais era refletida e ponderada à luz de valores que promoviam uma forma de harmonia entre o espiritual, o corporal e o moral. A escolha por uma dieta sem carne não era apenas uma prática alimentar, mas a expressão de um ideal de vida ética e transcendental.
Durante séculos, a ideia de uma alimentação que excluía a carne de animais foi nomeada de várias formas, incluindo “regime pitagórico” ou “dieta vegetal”. Foi somente em 1842, no entanto, que o termo “vegetariano” foi utilizado pela primeira vez. Até então, a oposição ao consumo da carne de animais sempre esteve fundamentada em uma profunda objeção ética ao sofrimento dos animais, sendo essa motivação uma força subjacente importante, mesmo nas suas formas mais limitadas e, por vezes, antropocêntricas.
No entanto, desde a fundação da The Vegetarian Society no ano de 1847, o termo “vegetarianismo” passou por um processo de esvaziamento semântico que o afastou de suas origens éticas. O que antes era uma postura baseada em princípios morais - uma rejeição à violência e à exploração animal - transformou-se em um conceito predominantemente dietético, que inclui o consumo de ovos e laticínios.
Essa transformação deturpou o significado e objetivo original do termo, reduzindo-o a uma simples escolha alimentar, frequentemente promovida como uma alternativa saudável ou sustentável, mas desconectada de seu compromisso ético com os animais. Esse afastamento não apenas obscureceu a crítica ao abate, mas também negligenciou o sofrimento inerente aos sistemas de criação industrial para extração de leite e ovos. O resultado é um vegetarianismo despojado de seu potencial transformador, que abdica de sua base moral em favor de uma interpretação limitada e condescendente, que não questiona o sistema de exploração animal.
Com o objetivo de se contrapor ao consumo de laticínios e ovos, resgatando os valores de oposição à exploração animal, no ano de 1944, dissidentes da The Vegetarian Society fundaram a The Vegan Society, que já em sua primeira definição apresentava o veganismo como o “princípio da emancipação dos animais da exploração pelo homem”.
Contudo, especialmente a partir do século XXI, o termo tem se tornado alvo de intensas disputas. Esses conflitos não se limitam apenas à sua conceituação, mas também à sua abrangência e propósito. Cada vez mais, o veganismo tem sido cooptado por indústrias e mercados como um rótulo, associado a alimentos plant-based, questões ambientais e outros produtos que prometem um “estilo de vida consciente”. Essa assimilação, muitas vezes reduzida à ideia de consumo sustentável, desvia o foco do veganismo de sua essência original: o combate à exploração animal. De fato, tem se tornado comum a incorporação do termo “veganismo” em narrativas que priorizam interesses e pautas humanas, relegando aos animais não humanos uma preocupação secundária ou até mesmo inexistente.
Embora esse processo tenha ampliado a visibilidade do termo, ao deslocá-lo para um debate centrado no consumidor, enfatizando seus benefícios para a saúde, o meio ambiente ou a economia, ele também esvazia o poder subversivo do veganismo, tornando-o parte do sistema que busca erradicar.
Enxergando além da exploração animal
Os termos “vegetarianismo” e “veganismo” surgiram, essencialmente, como formas de identificar e promover o boicote a produtos de origem animal, ainda que com abordagens e intensidades distintas. No entanto, eles apresentam uma limitação fundamental: concentram-se principalmente nos sintomas visíveis de um sistema de opressão, como a existência de produtos derivados de animais, abordando apenas a superfície de um problema estrutural mais vasto - uma rede de práticas, crenças e instituições que sustentam a discriminação contra os animais não humanos.
Foi apenas em 1970 que essa base estrutural ganhou um nome: especismo. Cunhado pelo psicólogo britânico Richard D. Ryder, o termo descreve a discriminação sistemática baseada na espécie, que visa legitimar a exploração e o sofrimento de animais não humanos com base na ideia de que suas vidas e experiências têm menos valor intrínseco do que as de seres humanos. O especismo, assim como outras formas de opressão, como o racismo e o sexismo, opera silenciosamente por meio de normas culturais e práticas cotidianas que mascaram a violência e a objetificação como algo natural e aceitável.
Ao nomear esse preconceito, Ryder trouxe à tona a necessidade de uma mudança não apenas nos hábitos de consumo, mas também nos paradigmas éticos e culturais, para os quais o vegetarianismo e o veganismo são apenas o ponto de partida – pois evidenciam o sintoma, a exploração animal, mas não atacam a sua causa, o especismo.
Entender o especismo é compreender que o problema não está apenas no que consumimos, mas nas crenças e valores que regem a forma como a humanidade se posiciona em relação aos demais seres sencientes, incluindo os animais selvagens. Dessa forma, apenas a oposição ao especismo, o antiespecismo, se mostra como base moral e ferramenta pedagógica capaz de promover as transformações sociais necessárias, pois posiciona a discriminação contra os animais não humanos como o cerne do problema e do debate ético.
Assim, enquanto o vegetarianismo e o veganismo oferecem passos importantes em direção à redução da exploração animal, é crucial que questionemos, de forma profunda e abrangente, as estruturas que visam justificar sua subordinação e objetificação. Precisamos ir além da exploração, rejeitando todas as formas de discriminação contra os animais e nos comprometendo a combater o sofrimento e a morte infligidos a eles, mesmo quando sofram danos que não resultem de nossas próprias ações – como no caso dos animais selvagens. Nesse sentido, adotar o antiespecismo é tanto um ato de resistência quanto de construção, um reflexo de uma mudança social iminente e também o catalisador para que ela ocorra.
___________
Referências bibliográficas
ASSOCIAÇÃO VEGETARIANA PORTUGUESA. O Vegetarianismo ao longo da História da Humanidade. 2013. Disponível em: https://www.avp.org.pt/o-vegetarianismo-ao-longo-da-historia-da-humanidade/ Acesso em: 16 nov. 2024.
ÉTICA ANIMAL. Veganismo e antiespecismo. [s. d.]. Disponível em: https://www.animal-ethics.org/veganismo-e-antiespecismo/ Acesso em: 16 nov. 2024
HORTA, O. O que é o especismo? Ethic@ - An international Journal for Moral Philosophy, [on-line], v. 21, n. 1, p. 162–193, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/80645 Acesso em: 16 nov. 2024.
MULLER, B. Veganismo, vegetarianismo e protovegetarianismo: definições e concepções. In: Sociedade Vegana. [on-line], 2010. Disponível em: https://sociedadevegana.org/artigos/veganismo-vegetarianismo-e-protovegetarianismo-definicoes-e-concepcoes/ Acesso em: 16 nov. 2024.
PRAVA, J. C. O que é veganismo? In: Vegpedia. [on-line], 24 nov. 2017. Disponível em: https://vegpedia.com/textos-fundamentais/o-que-e-veganismo/ Acesso em: 16 nov. 2024.
SOUZA, A. T. B. de. Ensaio contra o veganismo: por uma criatividade política anticolonial e anticivilizatória. Revista Caboré. [on-line], v. 1, n. 4, p. 40–53, 2021. Disponível em: https://www.journals.ufrpe.br/index.php/revistacabore/article/view/4371 Acesso em: 16 nov. 2024.
SOUZA, R. F. de. Veganismo liberal e a “defesa animal” sem antiespecismo. In: Veganagente. [on-line], 17 fev. 2021. Disponível em: https://veganagente.com.br/veganismo-liberal-sem-antiespecismo/ Acesso em: 16 nov. 2024.
THE VEGAN SOCIETY. Definition of veganism. [on-line], [s. d.]. Disponível em: https://www.vegansociety.com/go-vegan/definition-veganism Acesso em: 16 nov. 2024.
THE VEGAN SOCIETY. Ripened by human determination: 70 years of The Vegan Society. [on-line], 2014. Disponível em: https://www.vegansociety.com/sites/default/files/uploads/Ripened%20by%20human%20determination.pdf Acesso em: 16 nov. 2024.