Especismo: Quais são as consequências para os animais não-humanos?

Em um mundo cada vez mais atento a pautas de justiça social, como o combate ao racismo, ao sexismo e à homofobia, o especismo permanece como o preconceito mais difundido e menos reconhecido, embora influencie profundamente não apenas nossas decisões individuais, mas também práticas culturais, políticas públicas e normas jurídicas.

Especismo é o nome dado ao tipo de discriminação que envolve desfavorecer injustamente membro de certa(s) espécie(s). Quando discrimina contra quem não é membro da espécie humana, é chamado de especismo antropocêntrico. Quando discrimina contra certos animais não-humanos comparativamente a outros animais não-humanos é chamado de especismo não antropocêntrico.

Arbitrariedade na consideração moral

A forma, o grau e o contexto em que os interesses dos animais não-humanos são negligenciados variam significativamente entre diferentes culturas, e até mesmo dentro de uma mesma sociedade. Consideremos, por exemplo, o caso de cães e gatos. Para muitos, eles ocupam um lugar privilegiado nos lares humanos, sendo tratados como membros da família, com nomes próprios, camas confortáveis e certa proteção jurídica. No entanto, esse cenário coexiste com realidades radicalmente opostas: inúmeros cães e gatos são explorados como matrizes reprodutoras em fábricas de filhotes; outros são abandonados nas ruas, expostos à fome, doenças e todo tipo de violência; e muitos são confinados em laboratórios, utilizados como cobaias em experimentos. Em algumas regiões do mundo, esses mesmos animais são criados e mortos para servirem como alimento.

Essa arbitrariedade, contudo, não se limita à forma como tratamos cães e gatos. Vacas, porcos, galinhas, peixes e indivíduos de inúmeras outras espécies são rotineiramente explorados em larga escala para atender a interesses humanos.

Mesmo quando certos animais recebem algum tipo de atenção, o motivo frequentemente repousa em critérios antropocêntricos. Por vezes, a preocupação com o bem-estar de um animal depende exclusivamente do vínculo afetivo que alguns humanos estabelecem com ele. Em outros contextos, animais que vivem na natureza podem receber alguma proteção por estarem ameaçados de extinção, ou em razão do valor ecológico, estético ou simbólico que representam para os seres humanos. Em ambos os casos, o critério decisivo continua sendo o valor instrumental dos animais para alcançar outras metas, e não o bem-estar dos próprios indivíduos.

O especismo, portanto, não se manifesta apenas na total negligência em relação ao bem-estar dos animais. Ele ocorre também quando o seu bem-estar recebe um peso menor por qualquer motivo injusto (por exemplo, por não termos certas relações especiais com eles, etc).

Essa lógica discriminatória pode persistir mesmo entre aqueles que rejeitam determinadas formas explícitas de exploração. É possível, por exemplo, que alguém se oponha ao uso de animais em circos e rodeios e, ainda assim, mantenha atitudes especistas, semelhantemente a alguém que pode condenar a escravidão humana e, mesmo assim, perpetuar o racismo.

Redução de seres sencientes a mercadoria

O especismo é responsável por institucionalizar a objetificação dos animais, fazendo com que deixem de ser reconhecidos como sujeitos de uma vida própria para serem valorizados apenas enquanto instrumentos úteis aos fins humanos. 

Esse processo de dessubjetivação manifesta-se como uma prática sistemática, e não como exceção. Animais são confinados em ambientes que violam suas necessidades básicas de espaço, movimento, socialização e expressão comportamental. São submetidos a experimentações dolorosas, explorados até a exaustão como força de trabalho ou forma de entretenimento, e comercializados como produtos no mercado de animais de estimação.

Com frequência, enfrentam práticas brutais, como castração sem anestesia, descorna, marcação a ferro quente e transporte violento. Em muitos casos, também enfrentam alimentação forçada ou privação de alimento, água e cuidados veterinários. Quando destinados ao abate para consumo humano, são mortos ainda jovens e, por vezes, permanecem conscientes enquanto têm suas gargantas cortadas, num processo conhecido como sangria.

Ao serem tratados como ferramentas ou mercadorias, sofrem, portanto, não apenas pelas condições degradantes a que são submetidos em vida, mas também pela violência irreparável da morte. 

Ignorância deliberada

Para muitos humanos, o contato mais próximo com um animal não-humano, que não seja um cão ou gato, ocorre nas prateleiras do supermercado. Todos os dias, uma quantidade enorme de animais são criados e mortos para servirem como alimento, e sob condições que provocariam indignação imediata se fossem impostas a seres humanos ou mesmo aos animais com os quais convivemos em nossas casas. Isso evidencia como os produtos de origem animal constituem uma das expressões mais visíveis e naturalizadas do especismo em nossa sociedade, manifestando o que Gary Francione chamou de “esquizofrenia moral”: a maneira arbitrária como alguns animais são tratados como membros da família enquanto outros são explorados.

Especialmente no que diz respeito à exploração de animais para consumo, um dos fatores estruturais do especismo é o que Melanie Joy denominou de “carnismo”: um sistema de crenças e preconceitos que condiciona nossa percepção moral a considerar alguns animais como “comestíveis”, como galinhas, porcos, peixes, entre outros. Esse sistema opera por meio de mecanismos de dissociação, que fazem com que ao olharmos para um pedaço de carne no prato ou nas gôndolas do supermercado deixemos de enxergar um animal morto. O sofrimento e a morte do ser senciente do qual aquele pedaço fazia parte tornam-se invisíveis.

 Esse processo também está associado ao que psicólogos chamam de “ignorância deliberada”: para evitar o desconforto moral diante da realidade da exploração animal, muitas pessoas preferem ignorar os processos que precedem a chegada dos produtos de origem animal aos seus pratos.

No entanto, é impossível ignorar que nossas escolhas alimentares têm um impacto direto sobre a vida de inúmeros indivíduos sencientes. Ainda que aqueles que consomem carne e derivados de animais não participem diretamente do abate, estão financiando uma indústria que sistematicamente perpetua o sofrimento e a morte em escala massiva. Por isso, refletir criticamente sobre nossos hábitos de consumo é fundamental para combater o especismo em todas as esferas.

Negligência com os animais selvagens

O especismo também afeta nossa percepção em relação aos animais que vivem na natureza, pois são normalmente considerados apenas enquanto exemplares de espécies e componentes de ecossistemas. Como consequência, a vasta maioria dos programas que lidam com animais selvagens são conduzidos a partir de metas ambientalistas, negligenciando a vida e o bem-estar dos animais individualmente. 

Além disso, os animais selvagens estão sujeitos a condições meteorológicas hostis, desastres naturais, doenças de diferentes tipos, parasitismo, estresse psicológico, fome, subnutrição e sede.

Entretanto, há pessoas que afirmam que não deveríamos ajudar estes animais, alegando, por exemplo, que não devemos interferir na natureza. No entanto, quando humanos estão enfrentando situações semelhantes, mesmo quando decorrentes de processos naturais, acreditamos que devemos ajudá-los. Além disso, humanos intervêm frequentemente na natureza para satisfazer seus próprios objetivos. Esse duplo padrão reflete uma forma sutil, mas persistente, de especismo, que subestima ou ignora os interesses dos animais selvagens simplesmente por não pertencermos à mesma espécie. Se levamos a sério a ideia de que o sofrimento é ruim independentemente de quem o experimente e de como se originou, então deveríamos considerar intervenções prudentes que possam reduzir esse sofrimento, seja qual for a espécie do indivíduo ou o ambiente em que ele vive.

Essa transformação, contudo, não ocorrerá sem enfrentamentos. O movimento antiespecista ainda encontra uma forte resistência social e por parte de grandes conglomerados econômicos e lobbies políticos. E apesar de alguns avanços recentes, a legislação vigente ainda tende a reproduzir a visão dos animais como propriedade e a proteger interesses fundamentados na sua exploração.

Na prática, o especismo é para os animais não-humanos uma sentença de sofrimento e morte. Superar o especismo, portanto, requer uma reconfiguração profunda de nossos valores, hábitos e estruturas sociais, uma mudança que começa com o questionamento de normas naturalizadas e se expressa em escolhas éticas, tanto individuais quanto coletivas.


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GUSTAVO HENRIQUE DE FREITAS COELHO

Graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade de Franca (2015), e Graduado (licenciatura e bacharelado) em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (2019), onde também obteve o título de Mestre em Filosofia (2023) como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com pesquisa sobre as implicações morais da técnica de xenotransplantação. Possui especializações em Ciências da Religião pela Faculdade Famart (2020) e em Direito Animal pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (2022). Atualmente, é graduando em História (UFU); e doutorando em Filosofia pela mesma instituição, como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com pesquisa sobre a moralidade da guerra no século XXI. Fundador e coordenador do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Ética Animal da Universidade Federal de Uberlândia UFU/CNPq (2019-2024), um projeto que ofereceu dezenas de cursos gratuitos nas áreas de Ética, Direito e Medicina Veterinária, impactando mais de 12 mil alunos em todo o Brasil. Também é membro fundador do Núcleo de Estudos Animalistas: Direito Animal, Ética e Sustentabilidade da Faculdade de Direito da UFU, iniciativa que amplia o debate sobre os direitos animais em contextos acadêmicos e jurídicos. Diretor-fundador do Instituto de Educação Antiespecista, organização dedicada a combater o especismo em todas as suas manifestações, com o objetivo de criar um espaço de transformação social por meio da educação. É organizador de dezenas de eventos acadêmicos, autor de artigos, capítulos de livros, e colunista no portal Jus Animalis. http://lattes.cnpq.br/5265638620788673

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