O que a imparcialidade implica para as nossas decisões que afetam os animais

Neste texto apontarei algumas implicações de se aceitar uma perspectiva centrada na imparcialidade que normalmente não são percebidas. Essas implicações apontam para novos horizontes em termos de como devemos agir em relação aos seres sencientes em geral.

O método centrado na imparcialidade é característico do contratualismo contemporâneo. As teorias contratualistas são caracterizadas por defenderem que os princípios morais e políticos que deveríamos seguir são aqueles que deveríamos adotar em um contrato hipotético, onde nenhum princípio foi adotado ainda. Essa seria uma ferramenta para decidir quais princípios são legítimos. Entretanto, o contratualismo contemporâneo, influenciado por Rawls[1] é essencialmente diferente do contratualismo antigo[2], proposto por Hobbes.  A diferença está, basicamente, no critério para afirmar quais princípios são legítimos.

Segundo Hobbes, cada agente tem poder de prejudicar os outros, mas no contrato hipotético, cada um escolheria não prejudicar, pois os outros também poderiam prejudicá-lo. Entretanto, nessa abordagem não haveria razão alguma para não prejudicar aqueles que não representam uma ameaça. Esse sistema poderia tolerar resultados altamente desiguais, e até mesmo a escravidão.

É por essa razão que o contratualismo contemporâneo incorpora uma exigência de imparcialidade. Desta vez, no contrato hipotético são imaginados também agentes autointeressados. Entretanto, precisam imaginar que já existem enquanto seres racionais, mas que não nasceram ainda no mundo em que viverão. Essa é a chamada posição original. Nessa abordagem, os contratantes têm de decidir por trás de um véu da ignorância, onde não sabem que características terão depois de nascerem. Não saberão sua raça, gênero, nacionalidade, se nascerão em famílias ricas ou pobres, se nascerão saudáveis ou com alguma doença, que talentos ou dificuldades terão etc. A ideia é a de que, sob condições de imparcialidade não seriam toleradas discriminações com base nesses fatores.

Entretanto, Rawls acreditava que seu método não se aplicava às nossas decisões que afetam os animais não humanos[3]. Isso porque ele acreditava que, para alguém ser protegido por princípios de justiça, precisa possuir um senso de justiça (pois tal característica é necessária para decidir sobre princípios de justiça na posição original). Esse raciocínio faria sentido se, para alguém ser injustiçado, fosse necessário ter um senso de justiça. Mas, considere o seguinte exemplo: imagine que um bebê recebe menos comida do que os outros bebês em um berçário por conta da cor da sua pele. Esse tratamento é claramente injusto, mesmo que o bebê não tenha um senso de justiça. Pela mesma razão, a falta de um senso de justiça nos animais não torna impossível sermos injustos para com eles.

Por isso, autores como Mark Rowlands[4] defenderam que a verdadeira imparcialidade exige que, sob o véu da ignorância, não saibamos a qual espécie pertenceríamos. Sob tais condições parece que rejeitaríamos fortemente a ideia de que os membros de certa(s) espécie(s) devem receber uma consideração maior ou menor. Isto é, parece que o especismo não passa no teste da imparcialidade, e que ele só é defendido porque os humanos sabem que não serão suas vítimas e colherão seus benefícios. Se a imparcialidade é um componente essencial da justiça, então o especismo é injusto.

O método da imparcialidade oferece um teste simples para avaliarmos se uma atitude é especista. Por exemplo, podemos perguntar se consideraríamos a atitude em questão justa: (1) se não soubéssemos a espécie dos afetados por ela; (2) se não soubéssemos a qual espécie pertencemos; (3) se suas vítimas fossem humanas, padecendo de danos de mesma magnitude; (4) se os beneficiários fossem animais não humanos, e os prejudicados fossem humanos; (5) se tivéssemos que receber os prejuízos que ela causa para alcançar os benefícios obtidos por ela; (6) se tivéssemos que receber os prejuízos que ela causa para que os outros alcançassem os benefícios obtidos por ela. Se fizermos esse exercício, concluiremos que a exploração animal é injusta e deveria ser abolida. Mas, parece que essa não seria a única implicação. A seguir estão algumas outras:

Normalmente, quem se preocupa com os animais foca nos danos que eles padecem em decorrência de práticas humanas. A maneira como os processos naturais prejudicam os animais é altamente negligenciada, sobretudo quando afetam animais selvagens. Isso se deve em parte à crença de que, se os humanos pararem de prejudicar os animais selvagens, estes normalmente terão vidas positivas. Entretanto, sua situação já é terrivelmente ruim por conta dos próprios processos naturais. Fome, sede, doenças, desastres naturais, condições meteorológicas hostis, lesões físicas, conflitos e taxas de mortalidade prematuras altíssimas que decorrem da estratégia reprodutiva predominante (a maioria das espécies tem milhares ou mesmo milhões de filhotes por ninhada, e em populações estáveis sobrevivem em média apenas dois por ninhada) são a norma na natureza[5]. Isso é assim não porque os humanos causaram algum "desequilíbrio": era assim desde muito antes do aparecimento da espécie humana. Parece que, sob condições de imparcialidade, não concluiríamos que "devemos deixar a natureza seguir o seu curso". Pelo contrário, concluiríamos que recursos deveriam ser destinados para prevenir/minimizar essa quantidade gigantesca de sofrimento e de mortes.

Outra implicação diz respeito à importância da causa animal. Qualquer defensor dos animais já se deparou com essa objeção: "por que se preocupar com os animais enquanto há humanos precisando de ajuda?". Uma visão comum é a de que, mesmo que os animais estejam normalmente em uma situação muito pior, mesmo que a quantidade total de vítimas não humanas seja gigantescamente maior, e mesmo que haja uma quantidade muito maior de pessoas já investindo em ajudar humanos, deveríamos, ainda assim, priorizar os humanos. Entretanto, jamais diríamos isso se não soubéssemos a espécie das vítimas em cada um dos casos. Lembre-se que, por trás do véu da ignorância, temos iguais chances de nascer como qualquer um dos seres sencientes existentes no mundo. Há em torno de 1 a 10 quintilhões de animais não humanos no mundo em um dado momento[6]. Há 8 bilhões de humanos. Se fizermos uma analogia com o período de um ano, a população humana representaria no máximo 0,25 segundos do ano. Isso significa que, uma vez levantado o véu, você provavelmente descobriria que é um animal não humano. Isso mostra que, sob condições de imparcialidade, reprovaríamos a negligência atual em relação à causa animal. Pelo contrário, defenderíamos  darmos a ela uma alta prioridade.

O método da imparcialidade também permite avaliar o que devemos às gerações futuras. Por exemplo, podemos imaginar que por trás do véu da ignorância também não saberemos em que época viveremos. A probabilidade de nascermos exatamente na época em que realmente existimos é mínima (haja vista que temos iguais chances de nascer em qualquer outra época do futuro). O futuro é ordens de magnitude maior. Ao que parece, sob tais condições, defenderíamos que o que devemos fazer é adotar estratégias que tenham uma alta probabilidade de fazer com que a história do mundo daqui para frente não seja repleta de sofrimento. Normalmente, as pessoas (incluindo ativistas da causa animal), quando planejam estratégias, focam em seres que já existem agora, ou que existirão em um futuro próximo. Tópicos relacionados ao futuro distante tem sido amplamente negligenciados. Entretanto, assim como o surgimento da pecuária industrial permitiu causar sofrimento e morte a uma quantidade gigantesca de animais, é possível que surjam novas tecnologias com um potencial de causar um sofrimento muitas ordens de magnitude maior dali para frente. Por essa razão, de uma perspectiva imparcial, concluiremos dar uma grande importância a prevenir sofrimento no futuro[7].

Um dos riscos de sofrimento relacionado ao futuro é a possibilidade de virem a surgir seres sencientes em meios digitais[8]. Se a senciência surgir toda vez que um meio estiver configurado de maneira a desempenhar a mesma função de um cérebro, então a senciência não depende do material. O risco de sofrimento relacionado a isso é que esses seres venham a ser discriminados por não serem orgânicos, e como resultado, seja feito a eles tudo o que é feito hoje aos animais. É possível que esses seres venham a ser muito numerosos, talvez mais numerosos do que os seres sencientes orgânicos. Novamente, sob condições de imparcialidade parece que rejeitaríamos não somente o especismo, mas também o substratismo, e defenderíamos a igual consideração todos os seres sencientes, orgânicos ou não. 

O que vimos acima mostra que o método a imparcialidade abre novos horizontes, permitindo que avaliemos questões sobre as quais nunca pensamos. Podemos começar refletindo sobre o especismo e, de repente, estarmos refletindo sobre a situação dos animais selvagens, sobre a importância da causa animal, sobre o futuro em longo prazo e até mesmo sobre a consideração por possíveis seres sencientes não orgânicos no futuro. Isso parece mostrar que o método da imparcialidade é uma ferramenta com um amplo alcance.

 

_______________________________________________

 [1] RAWLS, J. A Theory of Justice. Harvard: Harvard University Press, 1999 [1971].

[2] HOBBES, T. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2004 [1651].

[3] RAWLS, Ibid., p. 448.

[4] ROWLANDS, M. Animal Rights: A Philosophical Defense. London: MacMillan Press, 1998.

[5] Sobre as implicações éticas disso, ver CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.

[6] NATIONAL MUSEUM OF NATURAL HISTORY & SMITHSONIAN INSTITUTION. Numbers of insects (species and individuals). Encyclopedia Smithsonian, 2008.

[7] Ver ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.

[8] Ver TOMASIK, B. Why digital sentience is relevant to animal activists. Animal Charity Evaluators. 03 fev. 2015b.

LUCIANO CARLOS CUNHA

Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt) e autor dos livros "Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente" e "Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas". Publicou também artigos em periódicos especializados e capítulos de livro, tratando de temas como especismo, senciência, sofrimento dos animais selvagens e ética normativa em geral.

Anterior
Anterior

Animais têm alma, sentimentos e direitos como você e eu?

Próximo
Próximo

A importância de questionar o especismo