Entrevista com Sônia T. Felipe

Principal nome da Ética Animal no Brasil, a filósofa Sônia T. Felipe - doutora em Teoria Política e Filosofia Prática pela Universität Konstanz (Alemanha) e pós-doutora pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (Portugal) – é a precursora no debate sobre o status moral dos animais e se tornou, na atualidade, a maior referência teórica àqueles cuja postura abolicionista têm verdadeiramente contribuído, em meio aos paradoxos da sociedade contemporânea, com uma perspectiva biocêntrica capaz de alargar o alcance dos direitos a ponto de incluir outros seres vivos. Ao expor os limites e as incoerências da filosofia antropocentrista clássica em relação ao Outro, a reflexão que ela traz mostra-se também imprescindível no campo jurídico, suscitando a legitimidade do direito animal. Os livros Por uma questão de princípios: alcance e limites da Ética de Peter Singer em defesa dos animais (2003), Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (2007), Galactolatria: o mau deleite (2012), Acertos abolicionistas: a vez dos animais, crítica à moralidade especista (2014) e Carnelatria: escolha omnix voraz mortal (2018), dentre outros tantos escritos seus, falam por si. Ao revelar a violência institucionalizada para com os animais não humanos, sua obra torna-se fundamental a todos aqueles que se propõem a desafiar o sistema convencional e aderir a um modo de vida isento de crueldade. Nesta entrevista concedida com exclusividade ao Jus Animalis, Sônia Felipe revisita o passado, fala da trajetória acadêmica que desenvolveu e demonstra, pelas pesquisas que realizou após conhecer a obra de pensadores sensíveis à questão animal, a coerência de sua biografia que, desde sempre, pautou pelo respeito à vida, independentemente da natureza ou do formato biológico que esta pudesse ter. Ao mostrar porque a filosofia não tradicional é imprescindível à formação dos juristas, a entrevistada deixa claro que a efetividade do direito dos animais, em um mundo especista marcado pela insensatez, passa a ser, sobretudo, uma questão de justiça. O portal Jus Animalis agradece a relevante participação de Sônia Felipe, a grande filósofa brasileira da causa animal.        

Jus Animalis – Sua escolha pela filosofia, em meio aos turbulentos anos 70, acaso teve uma motivação especial? Algum incentivo escolar ou da família, algum livro marcante que leu, algum acontecimento singular da época ou simplesmente uma inquietação talvez metafísica em face dos mistérios do mundo? Sinta-se à vontade para remexer na gaveta das memórias.

Sônia Felipe – Na inscrição para o vestibular na UFSC, em 1972, hesitei entre a Terra e o Céu. Marquei como primeira opção a Filosofia. Poderia conhecer as ideias que gostavam de visitar a humanidade e nela se instalar. Na segunda opção, Geografia. Aos 17 anos já era professora de Geografia do Ginásio e gostava da matéria. O céu e a Terra se juntam, hoje, nas reflexões sobre quem somos nós neste planeta, o paraíso criado pelos animais e demais espécies vivas que insistimos em devastar. Devo à minha professora de História, Irmã Cassiana, que também era a diretora de teatro do Colégio, no qual atuei por dois ou três anos, a indicação para que fizesse Filosofia. Segundo ela, nenhum outro curso daria vazão às inquietações que em mim adolesciam. Minha mente não era para um livro só, tampouco se prestava para a recitação de doutrinas e dogmas. Aos 16 anos já havia lido quase todos os livros da biblioteca do Colégio e da Biblioteca Paroquial, além da Bíblia, que me inquietava em vez de me inspirar devoção. Havia uma lacuna entre o velho e o novo testamento. Naquele, predominava a força máscula destrutiva. Nesse, o projeto de uma cultura da convivência pacífica e respeitosa, não submetida aos mandos e formatos do imperialismo romano. Em 1971, havia lido textos de Marx, Freud e Sartre, levados à sala de aula pela Irmã Helena, professora de Psicologia, disciplina que compunha a grade curricular da formação para o magistério, o então chamado Curso Normal. Os tempos medicínicos eram turbulentos: autoritarismo, reacionarismo, dogmatismo e ufanismo patriótico grassavam. O feminismo e o clamor por mudanças profundas nos costumes latejavam. Mas lá no vilarejo isolado do resto do mundo e das outras cidades, incrustrado nas colinas e montanhas a mais de 400 metros acima do nível do mar, chegavam-nos pelo rádio apenas a propaganda ufanista e patriótica cívico-militar da ditadura, as novelas e o futebol. Em casa, não tivemos tevê. Nada se dizia sobre a tortura que feria de morte a quem se manifestasse de modo crítico. Estudar filosofia na universidade enredou-me pelos labirintos e passagens das divergentes modalidades do pensar político. Compreendi que meu modo de pensar era dissonante do modo oficial. Melhor estar preparada para tomar as próprias decisões na vida, para desenhar meu projeto existencial, porque à época, sob vigilância e delação contínuas, a ditadura de Médici proibia criar ou participar de qualquer grupo político aberto. Os grupos que existiam eram formados por homens machistas, misóginos e sexistas. Suas reuniões eram clandestinas. Eu tendia mais para Simone de Beauvoir e Simone Weil, embora ainda não houvesse lido seus livros, pois só estudei francês quatro anos mais tarde. Durante o curso de graduação em filosofia, permaneci na clandestinidade autoimposta que o estudo das teorias mais ousadas me permitia, traçando o esboço daquilo no qual verti minha existência uma década mais tarde: ética, filosofia política e educação. Na universidade, nós e os professores éramos vigiados pelo Artigo 477 do AI-5: não era permitido conversar com outras duas pessoas ao mesmo tempo; isso era considerado “complô contra a ditadura”. Se estivéssemos numa roda de três, na lanchonete, chegava um quarto sujeito que nenhum de nós conhecia. Esse era o “dedo-duro” que vinha bisbilhotar o tema da nossa conversa; o olho, o nariz, o ouvido e as garras do “grande irmão” serviliente à ditadura, o lobo prestes a devorar a vovó da Chapeuzinho Vermelho. Na sala de aula, não tive uma professora sequer, só homens eram filósofos; mas tive a graça de ter um professor que defendia a libertação intelectual, econômica e sexual das mulheres e a liberdade de cada jovem desenhar seu projeto existencial. Esse projeto, que entendo ser o da liberdade de expressão genuína, não se reduz à liberdade de fala, tolhida naqueles anos da ditadura, foi fundamental para que eu pudesse reconhecer mais tarde que o viver de qualquer ser senciente requer a liberdade, nada mais do que o compromisso de atender ao que seu desenho e desígnio específicos demandam; vale para nós e para os outros animais igualmente, cada um contido e contente em sua abertura e limite do existir, não imobilizado por um manejo que tortura o corpo e desfigura seu espírito. Cada formato enseja sua expressão singular. Essa é a fonte onde se produz o contentamento. 

Jus Animalis  – Na trajetória acadêmica que construiu, após a graduação na UFSC (1973-1976), consta mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1979), doutorado em Filosofia pela Universität Konstanz (1991) e Pós-doutorado em Bioética/Ética Animal pela Universidade de Lisboa (2002). É possível identificar, durante o percurso em direção ao doutoramento da Alemanha, quando e de que forma o tema relacionado aos animais e seus direitos passou a fazer parte de sua vida?

Sônia Felipe – O tema dos animais sempre esteve presente na minha vida, embora por três décadas me fosse vedada a chance de o elaborar na perspectiva ética. Não havia recursos teóricos disponíveis. Nasci animal, cresci animal. Envelheço animal. Quando eu morrer, morre o animal que me foi facultado ser pelo nascimento nesta espécie. Por dezoito anos, convivi com animais dentro da casa e ao redor dela. Mas havia ali uma dissonância cognitiva e moral. Dizia-se uma coisa, na igreja, no colégio, sobre nosso dever de compaixão para com eles; fazia-se outra, degolando-os para comê-los. Cresci cuidando deles; dando comida a eles; fazendo carinho neles. Um a um, aqueles cuidados se destinavam à degola. Minha infância dietética marchou no compasso da Revolução Verde. Ela nos impôs o catecismo nutricional que apregoa a prescrição medicinal da dieta e da gastronomia animalizadas, propagadas como única fonte saudável de proteínas, que acabaram por criar a massa de doentes crônicos que hoje dependem de remédios contínuos para sobreviver. Mas disso não se falava, obviamente. E disso ainda raros são os médicos que falam. Na Universidade, o silêncio sobre o aprisionamento e a tortura de animais era sepulcral, naturalizado. Sussurrava-se sobre a tortura de homens, de mulheres e de crianças. E eu lia sobre os campos de concentração e as torturas que tiveram início cinco décadas antes e seguiam em curso.  A fala sobre a tortura de aprisionados humanos e a falha em expandir a reflexão para o que se fazia aos animais das outras espécies dissonavam em minha mente. Soava a canção: “Porque gado a gente laça, tange a ferro, engorda e mata, mas com gente é diferente”. Mas as figuras dos outros animais ainda mergulhavam no nevoeiro, como naquela cena do Amarcord de Felini, na qual o menino, indo para a escola, depara-se com o boi e seus chifres imensos emergindo da neblina em meio ao seu caminho. Os animais estavam ali, no nevoeiro, fora do alcance da visão ética. No restaurante universitário nos serviam carne de soja, o primeiro experimento de substituição da proteína animalizada por proteína vegetal. Mais tarde, da soja também se começou a fazer leite. Podia-se comer sem matar. Não era preciso seguir torturando as vacas. Mas o sofrimento delas, das galinhas e das porcas não entrara ainda na pauta. Entre 1977 e 1979, no mestrado, tomei contato com a filosofia oriental da não violência (ahimsă) e com a ideia de que a consciência não é um dispositivo exclusivo dos animais humanos, aprisionado em nossa caixa craniana. Ela se expande para campos outros além dos limites do desenho do crânio e, portanto, do cérebro de cada animal. Neste campo, que o biólogo Rupert Scheldrake e veio a chamar duas décadas mais tarde de campo mórfico, vibram todos os seres vivos em seus elementos que, da perspectiva molecular, são os mesmos dos demais ecossistemas e dos sujeitos que os mantêm vivos e se reproduzindo. A ânima daqueles depende dos vivos transientes, dos vivos sencientes, dos vivos cujos movimentos mal e mal são perceptíveis ao nosso olho despido. Os animais entraram definitivamente no espectro político e ético da minha mente ao final do doutoramento na Alemanha. Em sua passagem dramática pela Alemanha, Peter Singer foi atacado e impedido de fazer uma série de palestras nas universidades. Assistindo a um debate na tevê, promovido com a participação de pessoas com deficiência, fiquei sabendo que esse filósofo australiano “defendia os animais” e que “suas ideias seriam um renascimento da eugenia nazista”. Hitler havia decretado leis de proteção da fauna, que Getúlio Vargas praticamente copiou um ano mais tarde, então, defender animais equivaleria a ser nazista. Peter Singer defendia também o direito das mulheres de pedirem a interrupção da gestação, e, afirmavam os debatedores, o direito “do Estado impor o aborto como forma de barrar o nascimento de pessoas com deficiência”. Descri do que estava ouvindo naquele debate, pois algo não fazia sentido. Na manhã seguinte, fui à livraria e comprei o Praktische Ethik (Ética prática), para entender a argumentação de Singer em defesa dos animais. Não. Ele não era um nazista. Seus argumentos em defesa do direito de interromper a gestação e de encerrar a vida não incluíam o direito de o Estado fazer isso em nome da eugenia, tampouco o nosso direito de submeter os animais a campos de concentração e de extermínio, a privações físicas e afetivas da mesma ordem à qual os alvos da matança nazista haviam sido submetidos. O que importava, para Singer, era justamente a senciência, o tanto de dor e sofrimento que uma vida não tem como suportar com decência e dignidade. E a ética deixa de ser o que deve ser quando silencia sobre os limites a serem impostos na questão do que deve ser proibido fazer também aos outros animais, não apenas aos humanos. A partir dessa leitura, feita em 1990, iniciei a jornada animalista, sem estacionar na argumentação de Singer, mas reunindo-o aos outros que vieram em seguida a ele e àqueles que o antecederam nessa argumentação. Fui escrutinando a trama da moral tradicional em cada um de seus nós. E sei que a trama inteira ainda está por ser desfeita. 

Jus Animalis – Pode-se dizer que, no campo de estudos relacionado ao Direito dos Animais, seu nome apareceu pela primeira vez aos pesquisadores brasileiros por ocasião de um seminário que ministrou na Universidade de Lisboa por ocasião de seu pós-doutoramento. Os temas que tratou naquela oportunidade, fazendo-o em módulos temáticos e com abordagem filosófica, romperam com a visão predominante na seara jurídica da proteção animal que havia em nosso país, mostrando que a mera piedade humana pelas espécies que sofrem não era suficiente para fundamentar sua defesa. Estávamos diante de uma questão ética e de justiça. Neste sentido, como vê a contribuição da filosofia dentro do meio forense?

Sônia Felipe – Com certeza, a compaixão ou piedade não são parâmetro político ou referência para a defesa dos direitos animais, por uma razão muito simples: se é para defender alguém contra ataques e ameaças de morte permanentes, institucionalizadas, isso não pode ficar à mercê dos nossos humores. Os nossos sentimentos variam ao longo da vida e até mesmo ao longo do dia, assim como variam na presença de um e de outro sujeito. Hoje temos compaixão pelas vítimas de uma catástrofe. Amanhã estaremos exaustos de tanta desgraça e já não seremos capazes de sentir qualquer coisa por outras. É preciso uma sensibilidade não emocional, uma sensibilidade não preferencial, para firmar os direitos sobre algo que não dependa de sentimentos, que não varie de cultura para cultura, gênero, classe social, religião, crenças, tampouco de gosto ou humor. Há algo que não varia: o fato de que, sendo sencientes, humanos e outros animais são vulnerabilizados pela dor, pelo sofrimento, pela privação de liberdade, pela carência de meios para suprir suas necessidades básicas específicas, pela agressão e pelo extermínio. Então, precisamos de uma teoria que desvele criticamente o zoocídio, o zooinfanticídio, o genocídio, o politicídio e o democídio como modelagens de uma mesma matriz emocional e moral: a matriz que julga “de menos” o valor da vida dos outros, enquanto o da própria é classificado como “de mais”. Essa divisão supremacista de viés hierárquico, separatista e especista gera a crença de que a desigualdade é natural, o que faculta a opressão. Quando hierarquizamos o valor da vida e a fixamos em degraus de uma escala que assenta apenas alguns humanos no topo, abrimos o portal para eliminar aqueles considerados de “menor valor” ou mesmo de “valor nenhum”. 

A filosofia tradicional modelou o meio forense no viés supremacista separatista. As ciências tradicionais modelaram o meio forense no viés separatista especista, que se manteve impassível à cutucada de Darwin que declarou haver diferença entre animais de outras espécies e humanos apenas nas nuanças emocionais, não na espécie delas. As teologias e teoeconomias modelaram o meio forense no viés hierárquico de castas, separatista, colonialista. Nesses diversos planos da arquitetura moral escondem-se os mesmos preconceitos e formas de discriminação contra todos os seres que não estão moldados para espelhar a máscara ou pessoa humana; seres que não espelham a face que representa o sujeito de direitos, a face de quem os desfigura. Essa é a máscara supremacista, especista, separatista. A filosofia deve desvelar o que esse direito que mascara pessoas com aqueles vieses tem escondido por milênios afora: a face do animal senciente, humano e de qualquer outra espécie, desfigurada pela violência da imposição de um padrão que propaga a devastação de tudo o que vibra ou se expressa em formatos e propósitos que não espelham e tampouco servem aos propósitos extrativistas da dominância do másculo, do padronizado, sobre o cuidado e o diversificado.

Jus Animalis – É certo que a passagem que teve pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa redundou no livro Por uma questão de princípios: alcance e limites da Ética de Peter Singer em defesa dos animais (2003), onde seu olhar mais alargado dos direitos parecia já buscar uma teoria da justiça que contemplasse também os animais. Cristina Beckert, sua supervisora na pesquisa de pós-doutoramento, possuía uma nítida sensibilidade voltada à questão animal. O que pode dizer sobre esse período tão significativo em sua vida, assemelhado a um exílio voluntário pelo qual precisara passar para definir sua biografia centrada na Ética Animal?

Sônia Felipe – Desde 1990 eu vinha estudando a ética animal. A partir de 1992 e por toda aquela década, ofereci cursos na UFSC para introduzir a questão não apenas aos alunos da Filosofia, mas também a outros estudantes e professores. Cursos de extensão e palestras. Quando decidi fazer o projeto para um pós-doutorado em Lisboa, levava comigo a bagagem de mais de dez anos de trabalho. A Professora Doutora Cristina Beckert (in memoriam) topou a parceria e abriu as portas do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa para todas as atividades de extensão que eu quisesse realizar. Lá, o estudo da questão animal vertia o padrão da ética tradicional: o da compaixão e o da admiração estética. Os cursos que pude oferecer foram importantes por reunirem os ativistas históricos da causa animal de Lisboa. Os debates que sucediam confirmaram o quanto ainda havia por fazer, na filosofia, no direito e na educação, para trazer os animais à cena, revelando o cenário no qual eles eram vistos ou como objetos idílicos (animais silvestres e aquáticos a serem protegidos), ou como animais destinados à estima, guarda e companhia. Silenciava-se sobre os condenados ao trabalho forçado, à escravidão sexual (fêmeas usadas como matriz reprodutora para repor os planteis) e à degola.  Defendia-se a compaixão pelos primeiros, o cuidado carinhoso para os usados em casa para companhia. Mas seguia-se torturando vacas e galinhas com a dieta ovo-lacto que prevalece no meio resgatista ou socorrista. Na verdade, como ainda segue em curso, usava-se a expressão “defensor dos animais” para designar quem resgata cães e gatos, mas come queijos, ovos, frango, peixes e outros seres que habitam os oceanos e seus derivados. Como é possível se dizer defensor dos animais e seguir comendo-os? Acho que meu trabalho, em Lisboa, foi revelar aos ativistas o objeto animal, sobre o qual não se parava para pensar, tampouco se estudava. Passadas duas décadas, segue-se considerando que “animal”, no direito, refere “cão” e, quando muito, “gato”. Entretanto, nenhum animal é substituível ou representável por outro. Respeitar o direito de um e vilipendiar o de outros preserva a estrutura mental, afetiva e linguística supremacista, castista, separatista e especista elitista, seja no direito, seja na religião, seja na ética. Dediquei pelo menos 14 horas por dia, ao longo de um ano (2001-2002) à revisão da obra completa de Peter Singer, de Tom Regan, de Richard D. Ryder, Henry Salt, de Steven M. Wise e de Gary Francione, além de dezenas de artigos escritos por cientistas, teólogos e filósofos, entre 1970 e 2000 sobre a redefinição do estatuto dos animais na ética, na ciência, na teologia e no direito. Os livros Ética e experimentação animal (Edufsc) e Por uma questão de princípios (Boiteux), foram escritos naquele ano, embora o Ética tenha sido publicado cinco anos mais tarde. As referências bibliográficas ao final desses livros registram o trabalho de leitura que me absorveu naquele autoexílio intelectual e moral tão salutar para a causa animal abolicionista no Brasil e em Portugal. 

Jus Animalis – Há um artigo originalíssimo de sua autoria, Alcance e Limites da Declaração Universal dos DDHH (UFC, 2006), em que propõe a reescrita da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ampliando o alcance dessa carta internacional para incluir também os animais. Nela todos os dispositivos sofrem um acréscimo de redação para se tornar mais inclusiva. De onde veio a inspiração para elaborar, no meio acadêmico, essa salutar proposta de redefinição da célebre Declaração da ONU?

Sônia Felipe – No final da década de 1990, atuei por três anos como formadora das voluntárias do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis, introduzindo a questão ética no ativismo pelos Direitos Humanos. Naqueles três anos constatei a absoluta negligência dos direitos animais no ativismo pelos direitos humanos, como se nós humanos não fôssemos animais; dito de outro modo, como se nos outros animais não houvesse nada do que há em nós, digno de igual respeito; portanto, como se os direitos não pudessem ser estendidos para formar a barreira de contenção da violência contra os outros animais. Entretanto, cada caso de tortura que denunciávamos remetia sempre de novo a práticas de violência física (tortura), cárcere privado, privação de liberdade de expressão e autonomia; as mesmas violências infligidas com naturalidade aos animais de outras espécies mantidos aprisionados em ambientes manejados, imundos e hostis. Impossível não perceber a impregnação enraizada da prática da tortura contra os outros animais nas práticas de humanos. À época, intuí que os Direitos Humanos jamais alcançarão seu propósito abolicionista enquanto seguirmos no mesmo padrão mental de discriminação do valor da vida em “vidas com valor” e “vidas sem valor algum”. Esse padrão especista torna-se nítido quando estudamos as práticas genocidas e menticidas dos regimes fascistas. Os humanos a serem exterminados são, previamente aos atos do extermínio, tornados alvo da violência pela atribuição a eles de estereótipos ou qualificativos animalizados: “ratos”, “porcos”, “macacos”, “cobras”, “lobos”, “piolhos”, “baratas” e tantos outros. O torturador de humanos inflige flagelos aos prisioneiros, figurando-os como “animais”, portanto, subumanos. Enquanto isso, congela os outros animais em configurações que os destituem de qualquer traço comum a eles e a humanos, por assim dizer, desumanizando-os. Então, o que domina a mente humana no modo como o fascista pensa os outros animais, prevalece quando ele dá de cara com humanos tão degradados de valor que chegam a parecer não fazer parte do círculo moral das pessoas dignas de respeito, as “pessoas de bem”. Realmente, qualquer animal em estado de miséria não é uma “pessoa de bens”, expressão da qual derivamos o qualificativo discriminador que marca, pela posse de bens, os que devem ser protegidos pelo Estado, enquanto marca pela destituição de bens, os que o Estado ou qualquer um em seu nome pode eliminar. No meu entender, a defesa dos direitos humanos fundamentais, daqueles relativos ao corpo e à liberdade para buscar o bem próprio (felicidade ou contentamento), é a defesa dos direitos fundamentais animais. Portanto, não há como seguir, no século XXI, separando os direitos animais dos direitos humanos, embora os humanos precisem de direitos desnecessários à defesa dos demais animais. Mas aplicam-se a todos os direitos fundamentais de primeira geração relativos aos cuidados para a preservação do bem-próprio – que não deve ser confundido com bem-estar – em oikoi ou ecossistemas naturais apropriados a cada indivíduo singular, nos quais a expressão da vida é biodiversificada. O humanismo separatista supremacista modela nossa mente para favorecimento dos nossos propósitos e cobiças em prejuízo da dignidade das formas de expressão do contentamento em viver dos outros animais. Portanto, esse modelo de humanismo é fomentador da violência exterminista. Sem que se perceba, porque não fomos educados para perceber, ele enseja o viés moral zoofascista. Está na hora de a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, no clamor do final da Segunda Guerra Mundial, ser reescrita como:  Declaração Universal dos Direitos Fundamentais Animais, Ambientais e da Cidadania. Na esteira de tais reflexões criei, em 2013, o cumprimento Animastê!. Ele saúda respeitosamente o animal que somos e do qual não podemos nos esquecer quando interagimos com outros humanos e com animais de outras espécies. Em todos nós há um ser muito frágil, qualquer gesto ou ambiente brutalizado dá cabo do contentamento de uma existência singular.

Jus Animalis – Outra contribuição fundamental sua é o resgate do legado de Humphry Primatt, pensador britânico que deixou à posteridade um opúsculo de feição animalista escrito em 1776, influenciando, ao final do século XIX, o autor pioneiro em Direitos Animais (Henry Salt) e, oitenta anos mais a frente, os filósofos de Oxford (Peter Singer, Richard Ryder, Andrew Linzey e, depois, Tom Regan). Como foi a descoberta de Primatt em suas pesquisas acadêmicas e qual a importância que pode atribuir aos escritos desse teólogo que viveu na mesma época de Jeremy Bentham?

Sônia Felipe – Quando estava revisando as obras que precederam a ética animalista de Peter Singer, deparei-me com excertos do livro de Humphry The duty of mercy (O dever da compaixão, em tradução livre) no Apêndice do livro de Henry Salt Animal Rights (Direitos animais, em tradução livre), escrito em 1892; aliás, o primeiro a trazer a expressão direitos animais como título, um século após Mary Wollstonecraft ter publicado, em 1792,  A vindication of rights of women (A reivindicação dos direitos das mulheres). A partir daquele momento comecei a busca por um exemplar do livro de Primatt, cuja edição de 1776 e sua reedição de 1992 havia esgotado. Foram cinco anos de procura esperançosa. Enfim, consegui um exemplar usado da edição de 1992. Posso dizer que nenhum livro me deu tanta alegria, no momento que o tive nas minhas mãos, quanto este: The duty of mercy. Embora Primatt recorra à compaixão para afirmar sua defesa dos animais, precisamos entender que a única linguagem aceitável para a inclusão dos animais no círculo moral e jurídico, dois séculos e meio atrás, era a da compaixão. Entretanto, muito mais do que teo, seus argumentos são lógicos. Ele cobra, dos cristãos, coerência moral entre o que se faz e o que se prega como certo fazer. Lembremos que, em 1776, sequer se havia dado os primeiros passos para a abolição da escravização de humanos; ela corria solta e fundava impérios na Costa do Magreb (Norte da África, Mediterrâneo) e na Costa Leste do Atlântico (Brasil, América do Norte e Caribe). O livro de Primatt, ao abrir os olhos do público para a aberração em se maltratar ou punir seres que não podem se defender, ampliou a compreensão do absurdo que era tratar os humanos escravizados dessa forma, embora o foco do seu texto sejam os animais. Se não se pode defender como direito um humano vilipendiar outro animal, como se poderia seguir defendendo que um humano vilipendiasse outro humano? A argumentação de Primatt laçou com força a ética ao ampliar o círculo moral para abrigar os animais das outras espécies. Ele foi à borda da comunidade moral para melhor mostrar as falhas morais de quem se posiciona no centro do círculo e acima dos outros. Com isso, Primatt ajudou na luta abolicionista humanista antiescravista e introduziu a questão da urgência de uma nova educação moral, no sentido do abolicionismo animalista. É um livro que defende os direitos fundamentais animais sem recorrer ao termo “direitos”. Na tradição ética anglo-saxônica, também seguida por Peter Singer, só podem ser sujeitos de direitos aqueles que respondem pelo que fazem. Isso exclui da categoria os bebês, os dementes e os outros animais, para citar alguns casos. Esses estão sujeitados ao direito, mas não são sujeitos deles. Sendo animais, fomos contemplados naquela argumentação de Primatt. Nos tempos em que ainda não se dispunha da Declaração Universal dos Direitos Humanos, recém havia sido promulgada a Declaração dos Direitos do Homem. Três décadas mais tarde, a primeira lei de proteção aos animais, aprovada em 1822 e conhecida como Martin’s Act, serviu para levar a julgamento pais que torturavam filhos. No Brasil, na ditadura de Getúlio Vargas, a lei de defesa dos animais foi usada para defender o prisioneiro político Harry Berger, em 1935. Quando o corpo e a mente são invadidos, escarnecidos e expostos aos dispositivos de tortura, não importa o formato da vítima, se igual ou diverso do formato do torturador; o que conta é o sofrimento, o tormento e a privação da liberdade. Sem ela não há dignidade em nenhum animal senciente ou ciente ambientalmente de si.

Jus Animalis – Os livros Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012) e Carnelatria: escolha omnis vorax mortal (Ecoânima, 2018), além de discorrerem sobre as práticas cruéis na criação animal para exploração e abate, falam dos impactos ao meio ambiente que tais atividades acarretam. Nossa Constituição Federal, paradoxalmente, dedica um capítulo exclusivo à tutela ambiental e veda a crueldade para com os animais, mas nem sempre o poder público e as pessoas cumprem esses preceitos, muito pelo contrário. Tendo em vista que a natureza sofre inimagináveis atentados e as demais espécies violações constantes a seus direitos fundamentais, qual sua opinião sobre a naturalização da violência? O esforço para revertê-la é possível em uma sociedade consumista que acredita sejam os bens ambientais propriedade humana e que não abre mãos de hábitos arraigados em nome do prazer?

Sônia Felipe –  Enquanto concebermos os animais das outras espécies como separados de nós, e nós separados do ambiente, que só existe por conta da atividade dos outros animais, não da nossa, que costuma ser extrativista; enquanto seguirmos pensando que os animais são como turistas que invadem os cenários naturais – oceanos, florestas, campos, geleiras, desertos –  e deles extraem tudo sem darem nenhuma contribuição; isto é, enquanto desenharmos os animais à nossa imagem e semelhança, estaremos estacionados na moral tradicional, no direito tradicional, na política, na ciência e na ética tradicionais, extrativistas. Os animais não são objetos alocados em cenários alheios a eles; tampouco sujeitos oportunistas que se servem desse cenário sem responder por sua manutenção. Soa estranho, para toda gente, ouvir que os oceanos só estão vivos por conta dos animais que os habitam; que a densa floresta amazônica, o Pantanal, a Mata Atlântica só existem por conta dos animais que os habitam. É que são trilhões de criaturas ativas dia por dia por milhões de anos, mas em um ritmo que a nós parece desarticulado e sem propósito, embora não o seja, que nós esquecemos que em nada resulta defender “o meio ambiente” como algo separado dos “animais”; ou defender “os animais” como algo separado dos ambientes configurados por eles. Só existem animais separados de seus ambientes naturais específicos quando nós os sequestramos e os mantemos aprisionados. E a imagem que temos dos animais espelha animais aprisionados. Mas esses são os animais criados por nossa mente. Esses são animais desfigurados de suas faces, por isso é tão difícil vê-los como pessoas, pois só os conhecemos como coisas manejadas para o descarte. Para deixar tudo mais confuso, defendemos nosso direito de nos apropriarmos do ambiente que jamais edificamos, e, de quebra, devastar o que estiver pela frente, saqueando o que, por direito, pertence aos outros animais, não a nós: seus corpos e seus ambientes naturais específicos. Enquanto mantivermos essa moral, essa ética e esse direito, extrativistas, para nada terá servido nos dedicarmos à causa animal. Nossa tarefa é educar a humanidade para que reconheça a expressão da anima em cada oikos: ecoânima. Precisamos pôr fim ao dualismo cartesiano, separatista do corpo como destituído de espírito, e do ambiente como destituído de mente. O corpo vivo senciente é espírito. O espírito senciente é corpo em ação, respiração, troca entre o céu (alma) e a terra (matéria viva), entre o mundo externo e o interno. Simbiose entre desenho (bagagem genética) e desígnio (bem próprio). Expressão.

Jus Animalis – Outras duas obras suas se tornam fontes de consulta obrigatória àqueles que se propõem a questionar temas considerados tabus na área jurídica: Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Ed. UFSC, 2007) e Acertos abolicionistas: a vez dos animais, crítica à moralidade especista (Ecoânima, 2014). O primeiro avança sobre uma das áreas mais difíceis de enfrentamento judicial, por desafiar os mitos do cientificismo. Já o segundo reflete sobre temas diversificados, como os sistemas de produção, o flagelo da tração, as diversões públicas perversas e outras tantas situações em que se verifica o descaso pela vida animal. Ambos trazem como fundamento central o abolicionismo. Concorda com aqueles que alguns costumam denominá-la “filósofa ativista abolicionista”? Por quê?

Sônia Felipe – Sim. Porque o abolicionismo não é um tipo de luta com final marcado, como se fosse uma partida de futebol, ou uma competição olímpica, onde apenas uma parte sobe ao pódio vitoriosa. O abolicionismo vegano é uma forma de educação que requer mergulho na totalidade da trama dos valores prezados pelas diferentes culturas ao longo de milênios nos quais os outros animais foram desprezados. O abolicionismo é levado a efeito em dois planos que se retroalimentam: no plano externo, pensamos no fim das práticas institucionalizadas de criação, usança, matança e comilança de animais. Mas abolir essas práticas por uma canetada, como o fizeram com a Lei Áurea, não resulta no desmanche da trama mental, cognitiva, emocional e moral que ressoa aquelas práticas. Nada pode ser eliminado por um ato de lei. Vemos que a escravização não teve fim, ainda. Mas vemos também que, desde o segundo quartel do século XIX até o presente, a ideia da abolição da escravização de humanos foi disseminada por todos os continentes e em todas as culturas, embora umas tenham se mantido mais reticentes do que as outras em suas ações para viabilizar a abolição da escravidão. A ideia de ter o serviço mais duro, bruto, imundo ou monótono sendo feito por outro – não importa se pela força animal ou mecânica – é uma ideia que não foi abolida; talvez nunca o seja. Por isso mesmo corremos o risco de nos mantermos apegados à ideia da escravização. Mas podemos abolir a ideia de que os outros sejam dispositivos dos quais podemos nos servir à vontade para ver essas duras tarefas concluídas. Estão aí as invenções que deram alívio a todo tipo de trabalho, da máquina de lavar à de assar, da máquina de tracionar à de conversar a distância. Com a tecnologia, sabemos que é possível abolir todos os usos de animais para a satisfação de propósitos humanos, da tração à gastronomia. Entretanto, do mesmo modo que ocorreu com a abolição da escravatura, por uma canetada, essa não basta para se abolir da mente humana a modelagem que ensejou classificar os animais como “de nenhum valor moral, mas de rico valor proteico ou tracional” e os humanos como “de valor ou dignos de usarem e comerem aqueles”. A abolição precisa visitar um segundo plano, o mental, linguístico e emocional, a trama de nós em nós que nutre aquela trama institucional que enseja a violência humana contra os seres indefesos de outras espécies, ponto por ponto, até desenlaçar os fios que a sustentam. A abolição requer uma educação vegana, o entendimento de que não é por mero acaso ou simples costume que fazemos o que fazemos aos outros animais; é porque cremos que somos mais do que eles. Não somos mais. Não somos menos. Somos iguais. Há tanta diferença entre a vida de um elefante e a de uma borboleta quanto há entre a da borboleta e a humana. Nenhuma dessas vidas é “mais do que a outra”. Suas dimensões são diversas. E o contentamento de viver da borboleta, do elefante, do porco e do peru é tão importante para cada um deles quanto o é, para cada um de nós, o contentamento em viver. Os animais das outras espécies não são “menos iguais” do que os humanos, tampouco um animal pode ser “menos igual” do que outro animal. Somos igualmente diferentes uns dos outros e é justamente por via da singularidade que nos igualamos uns aos outros no contentamento do viver; cada um a seu próprio modo, buscando o bem que lhe é apropriado e criando as condições para que os que vêm depois possam seguir buscando o seu próprio bem. 

Jus Animalis – Em 2004, pelas mãos de Marly Winckler, a Sociedade Vegetariana Brasileira promoveu um congresso internacional realizado em Florianópolis. Ao mesmo tempo, em São Paulo, a ativista Nina Rosa lançava o documentário A Carne é Fraca, denunciando as mazelas do setor agropecuário. A partir daí muita gente passou a ter contato com os direitos animais e, conhecendo mais de perto o veganismo, aderiu a uma alimentação isenta de crueldade. Não tardou para que a jornalista Silvana Andrade colocasse na internet a Agência de Notícias sobre Direitos Animais (ANDA) e o publicitário Maurício Varallo lançasse seu Olhar Animal, sites estes que se tornaram referência na área animalista. Em vista desses marcos históricos, pode contar um pouco de sua participação no célebre congresso da SVB, da importância da coluna que tinha na ANDA e dos artigos que publicava na revista eletrônica Pensata Animal?

Sônia Felipe – Estávamos ali, em todas essas realizações, formando a trama da nova abolição. Éramos algumas dezenas de ativistas vindos de diferentes direções. Cada qual com sua formação, mas todos com um só propósito, com um mesmo sentido: pôr fim à naturalização da violência contra os animais. Havia grandeza em cada uma delas, porque todos éramos principiantes. Não se buscava comandar ou coordenar o trabalho dos outros; pelo contrário, ajudávamos uns aos outros a dar corpo aos projetos animalistas. Lembro a alegria que tive ao encontrar o livro Direitos dos Animais, de Laerte Levai, em 2003, em uma banca de revista na Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Eu me senti apoiada, ao saber que a questão dos animais também começava a ser levantada na área do direito. Por isso, o movimento animalista brasileiro pôde florescer. Essa parte da história está minuciosamente registrada no livro mais recente de Laerte Levai, Direito dos Animais: a teoria na prática, publicado em 2023. Cada pessoa fazia o que melhor sabia fazer. No conjunto dessas excelências formou-se a primeira geração que trouxe para a cena política os animais, mostrando ao Brasil que não somos os seres compassivos que dizemos ser, pois se comemos ou usamos algo extraído dos animais, isso significa que os matamos para nos satisfazer. A entrada do milênio foi mesmo muito forte. Tínhamos ainda a força da luta da bióloga Paula Brügger, dos biólogos Thales Tréz e Sérgio Greif, do nutricionista e empresário George Guimarães, criador do VEDDAS.  A criação da ANDA e do Olhar Animal foram de importância até hoje inestimável, além dos documentários do Instituto Nina Rosa e da tradução para o português dos livros de Peter Singer, Ética Prática, em 1994, e Libertação Animal, em 2005. À época, havia apenas dois livros tratando dos direitos animais: o de Laerte Fernando Levai; outro, o da advogada Edna Cardozo Dias, além dos livros, artigos, palestras e cursos em ética animal que publicáramos entre 1992 e 2004. O estudo e a reflexão ética foram propagados por conta da rede de ativistas animalistas que se formou com nossos trabalhos. Na última década do século XX e na primeira do século XXI, mudamos aquela concepção tradicional supremacista, separatista e especista em nós e fora de nós. Há trabalho para mais um milênio. Há lugar para toda gente que tenha boa vontade em redesenhar a noção de si mesmo como ser animal dotado de dispositivos capazes de estender a ética para muito além do próprio umbigo. Ao se romper o cordão umbilical ou a casca do ovo pelos quais os animais são alimentados em seu estágio embrionário e fetal, não há como cortar sua vinculação ao campo mórfico no qual vibram todas as mentes animadas, o campo que se forma em ecossistemas ou habitações criadas pelos animais de todas as espécies.

Jus Animalis - Em meio às múltiplas possibilidades pedagógicas de conteúdo transdisciplinar, voltadas à conscientização popular sobre questões sérias e nem sempre discutidas, sabe-se que desde sempre a literatura exerceu um papel fundamental. Considerando, ainda no campo da arte, o inusitado caminho que se abre pela representação cênica, poderia comentar sobre o grupo Teatro Veddas, dirigido pela atriz Chris Cordovil, que apresenta nas ruas episódios inspirados em seus ensinamentos sobre Ética Animal, como se vê nas performances “A Partitura”, “A Vaca”, “Mentes Engaioladas” e “Quanto vale seu especismo?”.

Sônia Felipe – No ativismo em defesa dos animais e de todos os seres vilipendiados dos quais se extrai o valor que, uma vez agregado nas mãos dos opressores, constituem sua “mais-valia moral” – essa moeda de troca com a qual o dominador se impõe no mundo, anunciando que o poder está nele, e disfarçando-se na máscara do ser cuja vida vale uma imitação – há espaço para a teatralidade que desfaz a potência criadora de mundos morais humanocêntricos ilusórios. Ao encenar, o teatro VEDDAS, dirigido por Chris Cordovil, põe um espelho na frente do espectador. Ao ver-se no espelho, a imagem que o sujeito tem de si mesmo se quebra. O teatro rompe a ilusão. Podemos descontruir qualquer narrativa usando a literatura em suas diversas formas de expressão; podemos usar a arte para desvelar o cenário no qual a dominância se impõe sobre os animais vulnerabilizados. Quando o coletivo Teatro VEDDAS vai à rua e encena, a moral supremacista, separatista e especista é desnudada, os véus são puxados, os sujeitos “desmascarados”. No panteão hinduísta, Maia é a força criadora de ilusão, uma força poderosa e perigosa que pode levar os humanos a seguirem por uma trilha que os conduz à malevolência, à himsă. No teatro VEDDAS, a arte é a força que grita alertando os transeuntes na Avenida Paulista, há anos, sobre o desvio que a ilusão de superioridade de uns sobre os outros pode acarretar na trajetória dos humanos por esse planeta afora.  A arte não tem o dever de dizer por onde devemos ir, mas ela tem o poder de mostrar por onde não seguir. A arte do Teatro VEDDAS tem essa força. Ela enfrenta o viés enganoso da potência que se instalou como realidade gastronômica da qual, apregoa-se na propaganda de proteína animalizada, nenhum comedor poderia escapar. É certo que nós escapamos.

Jus Animalis – Sobre o tema da justiça, especificamente, verifica-se em seus escritos um texto intitulado Justiça como eqüidade: fundamentação e interlocuções polêmicas (Kant, Ralws, Habermas). Estes três filósofos, aliás, são nomes obrigatórios em qualquer curso de Filosofia do Direito. Do ponto de vista prático, voltado ao objetivo de contribuir para as transformações sociais em um mundo violento, injusto e repleto de desigualdades, como vê a contribuição da filosofia para os profissionais do direito?

Sônia Felipe – Os três autores citados são o que a filosofia moral, emoldurada pelo véu ou viés supremacista especista e extrativista, conseguiu produzir de modo melhor elaborado. Por isso, são autores fundamentais na formação de qualquer operador do direito. O direito é fruto dessa moral. Contudo, nenhum desses filósofos propôs qualquer mudança nas instituições que estruturam conceitual, emocional e linguisticamente nossa moralidade. Eles percebem que algo está em falta. Suas teorias são poderosas porque foram elaboradas com empenho para preencher as fissuras da edificação moral, sem sair de sua modelagem. De certo modo, eles sentiram a dissonância entre o que a moral propaga e o que resulta dessa propagação que não mexe nos fundamentos de si mesma. Obviamente, para demolir ou implodir um edifício, é preciso evacuá-lo e tomar distância dele, examinar cada ponto ou fissura por onde se vai fazer passar o impacto de seu desmonte; e, principalmente, examinar o entorno para prevenir danos quando os estilhaços forem engolfados. Kant, Rawls e Habermas jamais saíram do edifício, razão pela qual suas teorias não o podem implodir. Nenhum deles se ocupou da moralidade que se diz tão compassiva e humanista com os animais; nenhum deles apontou que havia na ética e no direito um separatismo biológico a ser ultrapassado, a necessidade de se repensar os humanos não como seres supremos e mais perfeitos da criação, o que lhes constitui com a dignidade que não pode ser violada, mas como seres cientes ambientalmente de si e dos desdobramentos nefastos que suas escolhas dietéticas acarretam para todos os seres vivos do planeta Terra. O legado desses autores deve ser respeitado como o marco que indicou o último esforço para manter de pé uma moralidade fissurada pelo separatismo especista em todas as suas nuanças.

Jus Animalis – Acredita que a evolução do Direito Animal nas duas últimas décadas, após a incorporação na doutrina jurídica de expressões antes proibitivas ou ridicularizadas, como “sujeitos de direito, “seres sencientes” ou “princípio da dignidade animal”, somada à superveniência de múltiplos ramos especializados de tutela jurídica, já é suficiente para autorizar a criação, no âmbito do Ministério Público Estadual, de Promotorias de Defesa Animal, voltadas exclusivamente a resguardar os direitos e interesses dos animais não humanos?

Sônia Felipe – Se essas promotorias forem criadas com outra moldura, por exemplo, como centros de educação continuada para a abolição de todas as formas de violência e matança dos animais, acredito que podem ser de grande valia, porque o direito tem um poder simbólico central em nossa cultura. Todavia, se forem apenas para passar um verniz nas ranhuras e enfeitar a vitrine, preservando nos porões e nos sótãos todas as formas de defesa dos animais que não os resgatam de sua condição de aprisionados e torturados para servirem a propósitos extrativistas, de nada valerão essas promotorias. Vai depender do espírito que as desenhar, e da vontade determinada de quem responderá por elas pelo país afora. Se forem criadas para defender apenas cães e gatos, será uma facada na jugular de todos os outros animais levados à degola para comilança humana, e de todos os estropiados nos experimentos biomédicos, bélicos e farmacêuticos; dos torturados em espetáculos, dos usados para monta e tração. Elas nascerão marcadas pelo especismo elitista, eletivo e exterminista; elas terão tanta serventia no projeto de libertação dos animais quanto a têm as atuais leis bem-estaristas que nunca abolem nada, apenas maquiam as práticas para agregar mais-valia ao produto final a ser comercializado.

Jus Animalis – Há quem diga que o direito, para alcançar seu propósito de realizar a justiça, precisa se expandir e beber na fonte de outros importantes saberes. A filosofia é uma das áreas fundamentais em que todo jurista precisa, de algum modo, transitar, caso contrário sua atuação corre o risco de se tornar míope. Comente.

Sônia Felipe – Na Grécia antiga, a filosofia colocava em pauta as questões do seu tempo. Ela também era um método de crítica às respostas já dadas, além de um método de mostrar as questões silenciadas. De certo modo, a filosofia é um método de romper o silêncio, quer dizer, desassinar o contrato moral tácito de exclusão de certas questões para assegurar a preservação do status quo. Filosofar era a atividade de apontar as lacunas do pensamento que precisavam ser preenchidas, e isso era feito com a elaboração de conceitos para ordenar o pensar sobre algo antes não pensado ou pensado de modo enviesado. Além disso, filosofar era criar e expor para o outro imagens mentais que permitissem aos muitos se moverem de modo coordenado, de modo político. De certo modo, sou herdeira da filosofia grega, o que pode parecer uma contradição nos termos, porque filosofar era atividade reservada exclusivamente aos homens. Às mulheres estavam reservadas as atividades de administrar a domus, a casa onde os bens dos homens eram armazenados. Acontece que, passados dois milênios e meio, resta às mulheres apontar as fissuras do pensar másculo, do mundo edificado para a serviliência aos interesses dos dominadores. Resta-nos ocupar o lugar de fala que aos animais das outras espécies não é dado ocupar, porque, embora eles sofram as consequências das decisões dos humanos, delas eles não podem se defender. Quanto ao direito, se os estudantes forem impedidos de estudar as teorias que questionam os fundamentos sobre os quais o próprio direito assenta, eles terão vertigens, pois terão que se mover na linha de um círculo viciado. A moldura jurídica é, por sua própria finalidade, uma camisa-de-força, uma saia-justa. Quando há pressão para que o que se definiu como pessoa há dois séculos seja revisado, pois tal definição está obsoleta, por servir para discriminar em vez de fazer justiça, o jurista ciente ambientalmente de si, compreenderá que suas práticas servem àquele modelo de poder, não aos animais, tampouco aos ecossistemas naturais criados e mantidos pelos animais. Quando a pressão se torna insuportável, abre-se uma fresta no portal que impede a entrada dos animais das outras espécies no círculo da moralidade e dos direitos. Por essa fresta, deixa-se entrar um ou dois tipos de animais, aqueles que apresentam as três credenciais apontadas por David Hume ao criticar os vieses da moralidade que ordena o respeito aos outros apenas se esses “se parecerem conosco”, “viverem nas proximidades” ou nos forem “familiares, conhecidos”. Os passos dados no direito são pesados, carregados de cautela, quiçá, timidez e hesitação. A sociedade se arrasta para não alcançar o final da linha, onde aparecem com nitidez os animais das outras espécies como sujeitados há milênios a todo tipo de extorsão, vilipêndio e zoocídio. Deixando entrar um ou dois tipos de animais na categoria de pessoa com o passaporte de sujeito de direitos, faz-se parecer que se avançou juridicamente na defesa dos animais. Não há avanço algum. As primeiras leis de proteção aos animais, na terceira década do século XIX, na Inglaterra, já propunham a punição para quem, não sendo “dono” do animal, o maltratasse. Hoje, os “donos” de dois ou três tipos de animais querem a punição para quem maltrate aqueles “animais eleitos para estima”. Onde é que avançamos? Ainda precisamos desfazer uma trama de nós em nós, para que, livres dela, possamos enxergar os animais que ali estão aprisionados e possuem outros formatos e desígnios. Os outros animais não têm que servir a nós e a nossos propósitos, sejam esses os da estima, da guarda, da reprodução, da diversão, da linguagem estereotipada, da alimentação ou da experimentação. O direito precisa da filosofia como teoria que aponta as lacunas. Quem as elabora é a filosofia crítica. Por isso mesmo ela se torna importante no movimento jurídico de defesa dos animais como sujeitos de direitos. E ainda nos falta abordar a obsolescência do próprio conceito de pessoa como fundamento dos direitos, pois tal conceito foi desenhado para se ajustar à máscara do patrão, no padrão de valores que não é do interesse dos animais satisfazer. A filosofia segue imprescindível aos juristas, mas não a filosofia tradicional, e sim a que aponta as lacunas e as fissuras do modelo imposto como padrão da justiça, um modelo que desde a partida foi separatista, supremacista e especista. E o direito segue imprescindível à filosofia por ser o meio pelo qual as decisões morais são disseminadas “pra valer”.

Jus Animalis – O filósofo brasileiro Leon Denis, ao escrever a seu respeito, disse certa vez que “sem a menor sombra de dúvida, Sônia pode ser denominada filósofa do direito, filósofa da educação, filósofa das ciências, filósofa da linguagem, eticista, pensadora política... A vastidão dos campos que ela percorre forma uma rede de leituras e interpretações das condições de expressões de vida humanas e não humanas”. O que ele quis mostrar, com isso, é o perfil de uma mulher à frente de seu tempo, que nunca se calou diante da opressão e dos preconceitos, fazendo-o em defesa das vítimas independentemente da aparência física ou da condição biológica. Quem dera as pessoas pudessem mudar seus hábitos cruéis e os poderes constituídos tivessem vontade política para coibir tantos abusos. Em meio a esse contexto de renovadas perplexidades, uma pergunta não quer calar: o mundo é uma causa perdida ou ainda podemos ter esperanças de que surja uma educação verdadeiramente transformadora e que seja capaz de redimir os homens perante os animais e a natureza?

Sônia Felipe – Se pensarmos a educação abolicionista vegana como um campeonato com desfecho agendado, no qual uma parte dos envolvidos vence e sobe ao pódio como vencedora, e a outra perde um degrau de altura, o mundo não tem como ser redimido mesmo. Na verdade, a tarefa da abolição não tem hora marcada para terminar, pois ela precisa ser assumida individualmente; são decisões que implicam uma mudança radical na rotina alimentar, na rotina do pensar e do consumir. Quando se desdobra uma de suas múltiplas pregas, outras rugas vêm à tona e entram na pauta. Abolir uma prática má é o mesmo que atuar em meio a um redemoinho que a todos engolfa. Não há quem saiba de antemão como se sai do redemoinho. Em se tratando de uma abolição, significa que antes ninguém a ousou. Sabemos o sentido para onde não queremos mais seguir, quando experimentamos em nossa rotina diária viver sem levar à morte qualquer animal. Cada sujeito assume esse propósito como traço fundamental de sua curta existência, um formato que o nascer na espécie humana permite desenhar. A defesa dos animais e o modo de vida vegano são escolhas deliberadas. Leon Denis investigou esse conceito aristotélico em seu doutoramento, do qual resultou o livro Veganismo: uma escolha deliberada, publicado em 2022. Hoje sabemos que a educação abolicionista vegana precisa mergulhar na ciência dos fios que formam a trama moral extrativista carnivorista. São fios de cores diversas. Eles passam pela neurociência, pela economia mundial, pela psicologia política, pela psiquiatria bélica, pela antropologia, pela filosofia, pelo direito, pelas religiões, pela arte e pela educação. O mundo tem cura, desde que tratemos de curar, mental e emocionalmente, os conceitos que nos legaram sobre o valor supremo da nossa vida e o nenhum valor da vida dos outros animais. O estudo em várias frentes do conhecimento leva-nos a entender que, se não mudarmos o mundo que levamos dentro de nós, não teremos dignidade nem autoridade para propor a abolição das práticas que estão institucionalizadas fora de nós. A educação abolicionista vegana, em pouco mais de meio século, já mudou o mundo de milhões de humanos. Ela mudará a vida de bilhões de animais quando tivermos aberto os caminhos por onde nos conduziremos não mais como matadores e comedores de seres cientes ambientalmente de si, mas como responsáveis pela preservação de sua vida no planeta Terra.

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LAERTE F. LEVAI

Jornalista ambiental (DRT n.º 96682/SP). Realizou essa entrevista exclusiva para o portal Jus Animalis.

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