Entrevista com Fabio Feldmann
Formado em Direito (USP) e em Administração de Empresas (FGV), Fabio Feldmann foi um dos mais jovens deputados constituintes a participar dos trabalhos de elaboração da Constituição Federal de 1988. Coube-lhe, aos 32 anos de idade, o inovador capítulo do Meio Ambiente, tido como dos mais avançados do mundo e que serviu de referência para iniciativas semelhantes em outros países. Após cumprir três mandados como Deputado Federal e ser Secretário Estadual do Meio Ambiente em São Paulo, chefiou a delegação dos parlamentares brasileiros na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), exercendo um papel relevante na organização da sociedade civil. Fundou a SOS Mata Atlântica e contribuiu ativamente em outras iniciativas voltadas à proteção ambiental. Advogado, atua hoje como consultor ambiental e de desenvolvimento sustentável, com ênfase em temas relacionados a legislação ambiental, consumo consciente e mudanças climáticas.
Nestes tempos alarmantes de aquecimento global e desastres ambientais anunciados, que põem em risco a vida de todos os seres, torna-se imprescindível ouvir aquele que é reconhecido como um dos mais notáveis ambientalistas do país. Eleito membro da Academia Americana de Artes e Ciência, nosso entrevistado também leciona como Professor Visitante no Departamento de Antropologia da Universidade de Wisconsin, em Madison/EUA. Sua trajetória de vida fala por si, não apenas por ter participado do nascimento do direito ambiental no Brasil e contribuído com o aprimoramento legislativo de seus múltiplos temas, mas sobretudo pelos avanços obtidos no inovador capítulo constitucional inteiramente dedicado ao meio ambiente. O portal Jus Animalis sente-se honrado com a participação de Fabio Feldmann, agradecendo por tudo o que ele já fez em prol da legislação ambiental e pelo extraordinário impulso dado aos direitos animais.
Jus Animalis – Na época em que cursou a faculdade de direito, durante os anos 70, ainda não tínhamos o direito ambiental como disciplina autônoma e os atentados contra a fauna constituíam simples contravenções penais punidas com reprimendas irrisórias. A legislação ecológica brasileira era fragmentada e muitas vezes inócua. Em meio a esse cenário desfavorável, o que fez despertar seu interesse pela área que abraçou? Houve alguma motivação específica para lançar sua candidatura a deputado federal em 1986?
Fabio Feldmann – Meu interesse na área ambiental começou em meus tempos de estudante na Fundação Getúlio Vargas. Surgiu mais especificamente a partir do impacto que tive com a leitura do livro Limites do Crescimento, de Dennis Meadows, Jorgen Randers e Donella H. Meadows, que foi lançado em 1972 pelo Clube de Roma. A partir desse daí eu me engajei em muitas causas ambientais de grande repercussão na época, como o problema crônico da poluição em Cubatão, a destruição da fauna silvestre do Pantanal pela ação criminosa de coureiros, dentre várias outras. Essa minha atuação se deu através da Associação Paulista de Proteção à Natureza-APPN e da Oikos - União dos Defensores da Terra. A decisão de me candidatar a deputado federal, um ano antes da Assembleia Nacional Constituinte, surgiu de um debate relacionado à necessidade de considerar as questões ambientais na elaboração da nova Constituição.
Jus Animalis – É certo que na primeira metade dos anos 80 surgiram duas leis essenciais no país, a da Política Nacional do Meio Ambiente e a da Ação Civil Pública, que viabilizaram a efetiva tutela jurídica ambiental. No seu entender, após a promulgação da Constituição de 1988 quais os principais avanços obtidos em temas relacionados ao meio ambiente?
Fabio Feldmann - Como você mencionou, a década de 80 foi absolutamente inovadora na legislação ambiental brasileira. Em 1981 surge a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei federal nº 6.938/81) e, em 1985, a Lei dos Interesses Difusos (Lei nº 7.347/85), que mudaram o perfil do Poder Judiciário brasileiro, de modo radical, no trato desse tema. A partir das diretrizes dadas pela Constituição de 1988, importantes legislações ambientais surgiram no país, como por exemplo a de Controle de Poluição Veicular (Lei nº 8.723/93), a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/97), a Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98), a Política Nacional de Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei nº 9.985/2000), a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006), a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010). A Mata Atlântica, aliás, é o único bioma brasileiro que possui lei específica, conforme determina a Constituição, lembrando que o Congresso e o governo federal ainda não editaram as leis relativas à Amazônia, à Serra do Mar e ao Pantanal. No caso deste último, que abriga uma rica biodiversidade, o Supremo Tribunal Federal há pouco decidiu, de modo inédito, pela obrigação de o Congresso Nacional legislar a respeito, o que se mostra importantíssimo em face dos incêndios florestais que, recentemente, devastaram o bioma a ponto de afetar sua fauna e flora.
Jus Animalis – Na Assembleia Nacional Constituinte, transcorrida no biênio 1987/88, um dos grandes nomes que lhe assessoraram tecnicamente na redação do capítulo do meio ambiente foi o do professor Paulo Nogueira Neto, cuja larga experiência na área de gestão ambiental parece ter contribuído para essa escolha. Poderia falar um pouco sobre ele e a importância que teve para nortear a redação do capítulo do meio ambiente?
Fabio Feldmann – A contribuição do Dr. Paulo Nogueira Neto, então professor titular de Ecologia e fundador do Departamento de Ecologia Geral no Instituto de Biociências da USP, foi, sem dúvida, muito importante nos trabalhos técnicos da Constituinte. Naquela época, ainda sem existir fax ou e-mail, eu enviava a ele versões atualizadas do texto que estava sendo construído e, poucas horas depois, já vinham seus comentários precisos e claros sobre cada tema tratado. Devo dizer que o texto da Carta Constitucional promulgada em 5 de outubro de 1988 é de autoria coletiva, por envolver pessoas com visão de futuro e preocupadas, sobretudo, com o que se pode chamar de cidadania planetária. O Dr. Paulo Nogueira Neto, pela assessoria técnica dada para a melhor redação do capítulo do meio ambiente, inclui-se dentre essas pessoas.
Jus Animalis – No texto da CF de 1988 foi inserido um dispositivo que se tornou o principal fundamento jurídico para o direito dos animais no Brasil, por vedar “as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam animais a crueldade” (artigo 225 º 1º, VII). Durante os trabalhos constituintes, como surgiu a ideia de proteção ampla aos animais, incluindo os domésticos? Lembra se a matança das baleias no litoral da Paraíba ou a farra do boi em Santa Catarina repercutiram a ponto de mobilizar algum segmento da sociedade civil, ONGs, a imprensa e, consequentemente, o Parlamento?
Fabio Feldmann – Sobre os dispositivos do artigo 225, § 1º da Constituição Federal mais uma vez devo lembrar que a autoria dessas iniciativas é fruto de uma construção coletiva. No que se refere especificamente ao inciso VII, que trata da proteção da fauna e vedação da crueldade aos animais, vale aqui mencionar duas pessoas: a jurista mineira Edna Cardozo Dias, grande referência em Direito Animal no Brasil e o jornalista Dagomir Marquezi, principal mobilizador da campanha a favor das baleias numa coluna publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo chamada “Recado Ecológico”. Lembro ainda que no decorrer da Assembleia Nacional Constituinte conseguimos aprovar a proibição da caça das baleias no litoral brasileiro, que havia sido uma iniciativa do deputado federal Gastone Righi. O projeto até então vinha sendo obstruído pelo Senado, cujo parlamentar presidente era do estado da Paraíba. O apoio da imprensa e da sociedade civil foram fundamentais nesse percurso, lembrando que Dagomir Marquezi também foi a primeira pessoa a me alertar sobre a Farra do Boi. Com a repercussão da Farra do Boi em Santa Catarina, conseguimos proibir a crueldade contra os animais no texto constitucional, tornando a nossa Constituição uma referencial mundial no Direito Animal. Não conseguimos, entretanto, proibir a Farra do Boi por meio de projeto de lei, que acabou derrotado no Senado por força da bancada catarinense. Tal prática cruel somente foi considerada inconstitucional por decisão do Supremo Tribunal Federal, em 1997.
Jus Animalis – Consta de seu currículo, em 2000, a criação do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, que o governo federal inaugurou para tratar de um tema que já causava preocupação. Depois, em São Paulo, esteve à frente da Secretaria Executiva do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas e de Biodiversidade, função esta que desempenhou até 2010. Como vê o flagelo ambiental que acontece hoje, com significativa perda da biodiversidade e tanto sofrimento animal, advindos dos desastres naturais que ocorrem em todas as partes do país?
Fabio Feldmann – Em 1988 participei da 1ª Conferência Mundial sobre o Clima, em Toronto/Canadá, quando se alertou para a necessidade de redução dos gases do efeito estufa. Essa reunião referente ao clima do planeta se tornou um marco, porque ali decidiu-se criar o IPCC-Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, entidade criada pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), com o objetivo de elaborar relatórios de avaliação e contribuir para a redução de emissões. Posso afirmar que o IPCC é uma das mais importantes instituições que nós temos sobre o tema, representando um pilar do século 21. Também estive na 3ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada no Japão, em 1997, quando foi aprovado o famoso Protocolo de Kioto (ratificado pelo Brasil em 2002) e, a partir de então, fiquei convencido da importância de enfrentarmos as mudanças climáticas. Acima de qualquer coisa, é preciso enfatizar o protagonismo brasileiro nas negociações internacionais e preparar o país para tratar deste gravíssimo problema que assola o mundo.
Jus Animalis – Falar em defesa do meio ambiente é falar sobre a defesa da vida como um todo. Qual é a sua contribuição para a área da educação ambiental e como vê a importância do tema para as presentes e futuras gerações? Acredita que a legislação existente no Brasil é suficiente para assegurar resultados voltados ao respeito pela natureza e, também, por todos os animais, com o objetivo comum de ensinar para despertar consciências?
Fabio Feldmann – Educação ambiental é obrigatória desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, conforme previsão expressa no artigo 225 § 1º, VI, que incumbe ao poder público “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. Na década seguinte propusemos e foi aprovada a Política Nacional da Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99), que define seus parâmetros básicos. Mais recentemente, em 2022, houve uma alteração na Lei de Educação Ambiental para incluir o tema das mudanças climáticas e biodiversidade (inciso IX – “Debate sobre as mudanças climáticas e seus impactos nas cidades e no meio rural, com a participação dos Poderes Legislativos estaduais, distrital e municipais”), haja vista a necessidade do estudo desses assuntos para alcançar os objetivos da educação ambiental nacional. Apesar de possuirmos no país uma lei de educação ambiental, o fato é que não fomos bem-sucedidos na sua operacionalização e a prova cabal dessa realidade é bastante clara. Se tivéssemos investido para valer na educação ambiental teríamos um outro país, com uma sociedade mais sustentável, mais justa e com capacidade de estabelecer um compromisso ético com as futuras gerações. O grande desafio do Brasil reside na implementação: temos de modo geral boa legislação, mas ao longo do tempo assistimos a uma preocupante fragilização das instituições governamentais responsáveis pela sua aplicação. Isso se faz “democraticamente e sem distinção partidária”. Para mostrar a gravidade da crise ambiental no mundo, observo que a extrema direita americana resolveu negar a crise climática e está questionando até o papel das empresas no campo inovador do ESG, cujo conceito é o equilíbrio dos aspectos ambiental, social e de governança na gestão dos negócios. Para se ter uma ideia desse movimento, basta dizer que estão organizando um evento paralelo a COP 30, em Manaus, com esse objetivo. Tais movimentos estimulam a polarização política em torno dos nossos temas, exigindo que não caiamos nessa armadilha. Voltando os olhos à nossa Constituinte, podemos concluir: o que garantiu o capítulo do meio ambiente, da mesma forma que os direitos indígenas, foi a existência de uma frente suprapartidária e plural.
Jus Animalis - Trinta anos depois de o direito ambiental surgir e ser implementado no país, um outro importante campo de estudo vem ganhando espaço no meio acadêmico e forense. Estamos falando do direito animal, cuja repercussão na sociedade é cada vez maior. Qual a sua visão a respeito da nova disciplina jurídica, que se volta a todos os animais considerados sencientes, e até que ponto ela também pode contribuir para a conscientização ambiental e o aprimoramento ético das pessoas?
Fabio Feldmann - O Direito Ambiental é um reflexo de uma mudança importante no mundo sobre a nossa relação com os animais. Trata-se de uma das mais importantes e, a meu ver, irreversível, à medida em que exige uma nova postura do ser humano com a natureza, em todas as suas dimensões. Hoje vários países aprovam dispositivos constitucionais que passam a reconhecer os direitos dos animais, avançando em relação àquilo que fez nossa Constituição Federal em 1988. Além da proteção por lei dos animais sencientes, é interessante notar que essa pauta está presente em vários ramos do direito, inclusive no direito de família, onde já existe jurisprudência sobre guarda compartilhada dos animais, pensão alimentícia, dentre outros tópicos. Nos desastres naturais, atualmente se vê com clareza a preocupação também com o resgate dos animais, como ocorreu este ano nas inundações que devastaram o Rio Grande do Sul. O movimento pelos direitos animais é um sopro de esperança face à crise climática e da biodiversidade, simbolizando, igualmente, a pactuação de um compromisso ético do homem para com a Natureza.
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