Entrevista com George Guimarães
“Todos podemos ser porta-vozes da defesa animal: a dívida histórica para com eles é da espécie humana, seus escravizadores, algozes quase tão ancestrais quanto a própria existência da nossa espécie. É por nossas mãos que essa exploração precisa ser combatida, enquanto fronteira ética que devemos transpor.”
1º de novembro é o Dia Internacional do Veganismo. Uma data importante, celebrada desde 1994 pela organização The Vegan Society, que se soma ao fato de que cada vez mais pessoas no mundo têm aderido a um modo de vida que não compactua com o sistema de exploração animal. Mas quando se pensa na efetividade dos direitos animais num país como o nosso, onde muitas espécies costumam sofrer violência sistêmica nas linhas de produção do setor de agronegócio, nas bancadas de pesquisa científica e noutras tantas atividades cruéis movidas pela cultura da violência, não há motivos para comemorar. O que se faz necessário, nesta data simbólica, é pesquisar para ver, refletir para argumentar, agir para transformar.
O entrevistado do Jus Animalis não poderia ser outro, porque a história de sua vida confunde-se com a própria história do veganismo no Brasil. Estamos nos referindo a George Guimarães, nutricionista pioneiro de uma alimentação isenta de crueldade e que montou, na primeira década deste século, o VEGETHUS, inaugurando uma rede brasileira de restaurantes veganos. Mais do que isso, nosso convidado é fundador da ONG VEDDAS – Vegetarianismo Ético, Direitos Animais e Sociedade, além de ser organizador do ENDA – Encontro Nacional de Direitos Animais, que já conta com sete edições e uma legião de adeptos. Anos atrás George Guimarães embarcou no navio Steve Irwin, ao lado de Paul Watson, perfazendo uma ação direta contra a caça no santuário de baleias na Antártida.
Nesta entrevista ele fala um pouco disso tudo, desde a época em que cursou a faculdade de Nutrição, das inovações que levou ao meio acadêmico ao praticamente ensinar os professores sobre a dieta vegana e de um primoroso artigo seu que despertou muita gente para a causa animal. Fala também do ativismo com seu grupo voluntário nas ruas de São Paulo e noutras cidades do país, em protesto ao sofrimento dos animais que são tratados como objetos ou produtos de consumo. Ao criticar a mentalidade especista que ainda prepondera na sociedade, ele evoca algumas importantes ações do VEDDAS e reflete sobre os rumos do movimento abolicionista. O Jus Animalis agradece a participação de George Guimarães e convida os leitores a conhecer a trajetória deste que é o maior ativista brasileiro pelos direitos animais.
Jus Animalis – Sabe-se que as faculdades de Nutrição, em sua metodologia tradicional de ensino, enfatizam a necessidade humana no consumo de carne e derivados de origem animal para obter proteínas, embora em algumas culturas orientais tal regra não prevaleça. Fale sobre a época de sua iniciação nos estudos nutricionais e, depois de formado, do pioneirismo em abrir um consultório de nutrição vegetariana em São Paulo.
George Guimarães – Iniciei o curso de Nutrição em 1994, mesmo ano em que me tornei vegano. Cabe lembrar que eu já era protovegetariano (alimentação sem carne, mas mantendo leite ou ovos) desde os 4 anos de idade, por opção própria. Nos primeiros anos da faculdade todos os professores, sem exceção, desconheciam o conceito de veganismo, reduzindo a minha dissidência à ortodoxia do consumo de produtos animais a algo meio folclórico. Na realidade eu também desconhecia o conceito de veganismo: fui vegano por um ano e ainda não conhecia o termo. Apenas fui retirando os derivados (ovos e leite) do cardápio, conforme aprendia mais sobre as implicações éticas, ambientais e para a saúde, mas até então sem uma compreensão maior sobre a existência de um movimento ou uma ideologia por trás disso.
Ocorre que no crepúsculo dessa era pré-internet, o acesso a novos conceitos era bastante limitado, a não ser que se estivesse inserido em uma comunidade já formada (coisa que não existia no Brasil). Diante do rechaço dos professores à minha postura de confronto com as ideias vigentes, já no primeiro semestre da faculdade fui buscar informações sobre uma alimentação livre de produtos animais na literatura estrangeira. A abordagem voltada aos aspectos da saúde era o motivo dos embates, observando que os autores a quem tive acesso usavam o termo "baseada em plantas” ao invés de "vegana” para se referirem à exclusão dos produtos de origem animal da dieta. Por isso passei um bom tempo aderindo, mas ainda desconhecendo o termo.
Já no segundo semestre do curso universitário passei a redigir um pequeno jornal acadêmico com o objetivo de as minhas convicções alimentares ganharem visibilidade naquele meio ainda resistente à ideia de mudanças. Eu queria ter voz para desfazer a referida imagem folclórica com que a dieta vegana era vista. Esse jornalzinho, que batizei de "Segunda Opinião", eu fixava nos murais da faculdade e, também, entregava exemplares aos professores. Isso somado a uma maior abertura que foi sendo conquistada nos debates, no terceiro ano eu já havia alcançado respeito dos mestres, que me convidavam para falar do tema em outras turmas e até para responder a solicitações de entrevistas que recebiam sobre o assunto, o qual começava a despertar algum interesse por parte da mídia.
Mas nem por isso a opção por uma alimentação livre de produtos de origem animal era aceita, sofrendo no ambiente acadêmico os mesmos preconceitos e desafios que sofria fora dele. O que me levou a escolher o curso de Nutrição foi o propósito de me capacitar para poder orientar pacientes vegetarianos que, como foi o meu caso durante as duas décadas que antecederam, não encontravam informação ou orientação em lugar algum. Mantendo-me resiliente às barreiras encontradas, fui o primeiro nutricionista vegano a se formar no país. Se bem que os desafios perduraram mesmo depois de formado, porque ao me anunciar como "nutricionista especialista em dietas vegetarianas” fui questionado diversas vezes pelo Conselho de Ética do Conselho Regional de Nutricionistas por prescrever dietas baseadas em vegetais para gestantes, pacientes com anemia e todo tipo de caso.
Acontece que todas as pessoas que me procuravam o faziam justamente para serem orientadas sobre uma alimentação na qual decidiram abolir de sua dieta os produtos de origem animal, já que eu deixava claro na divulgação de meu consultório que somente orientava os pacientes dentro desse espectro de isenção de consumo. Ainda assim, já nos anos 2000, o Conselho de Ética me interpelou sobre o fato de eu estar prestando a orientação pela qual me capacitei como profissional de Nutrição. Até mesmo o termo “especialista em dietas vegetarianas” fui proibido de usar, sob pena de suspensão de meu registro profissional. Para evitar problemas, troquei a palavra “especialista” por “especializado”. Quase 20 anos depois da reclamação ser formalizada, sigo aguardando o pronunciamento do Conselho de Ética sobre qual heresia eu poderia ter agora cometido com essa alteração semântica do anúncio de meus serviços, mas tudo indica que não houve. A Nutriveg Consultoria em Nutrição Vegetariana por quase duas décadas se manteve como a única especialista (digo, “especializada”) na área.
Jus Animalis - No ano 2000, foi publicado na Revista Super Interessante um impactante artigo seu intitulado “Vegetarianismo Radical”. O texto, bem escrito e fundamentado, levou muita gente a aderir à alimentação sem violência, proposta ali não só como possibilidade, mas sobretudo como urgência. Como era esse discurso no tempo em que a sociedade desconhecia o veganismo?
George Guimarães – De fato, naquela época esse artigo foi um instrumento que ajudou a furar a bolha do veganismo, ainda bastante pequena e desconhecida do público (éramos apenas cerca de uma centena de veganos em São Paulo). Websites de publicação própria eram uma raridade e o acesso da população à internet dava-se de modo bem limitado. Os únicos pontos de encontro do veganismo eram os festivais de música chamados "Verdurada”, organizados por pessoas ligadas à música hardcore (evento que teve muito valor para a época, mas que trazia em si um recorte que limitava o interesse do público geral) e a minha loja de produtos veganos, chamada VivaVegan, que abri no ano de 1998 em São Paulo. Sobre o artigo “Vegetarianismo Radical” (que pode ser acessado na internet), diz-se que sua divulgação pública feita por uma revista de prestígio, sobre um tema que era tanto pioneiro quanto era polêmico, representou um grande salto para o movimento de defesa animal.
O discurso sobre veganismo, vinte e quatro anos atrás, era sim visto como algo radical, não importando por qual viés fosse feito (e uma vez explicado o termo, porque a imensa maioria das pessoas simplesmente o desconhecia). Por isso mesmo optei por utilizar o termo "radical” já no título, abrindo com a descrição de uma cena de exploração animal que seria vista por qualquer pessoa como radical e repreensível, e em seguida vinculando-a ao que nos anestesiamos e assim aceitamos a ver, por pura dissonância ética, como sendo algo “natural” e moralmente aceito: o consumo de qualquer produto de origem animal. Busquei assim mostrar que o dito radicalismo não está nas pessoas que fazem uma opção pautada pela ética e pela compaixão aos membros de outras espécies, mas sim em quem fecha os olhos a isso. O termo radical, aliás, significa raiz, que se origina do cerne, que é tão completo quanto possível. Portanto, sinônimo de integridade e completude. Ainda que na época eu tenha feito referência ao vocábulo pelas lentes do seu entendimento cotidiano, de algo negativo, para mim hoje se trata de um termo de significado positivo, uma vez desveladas as camadas que o associaram seja a mim ou a um movimento.
Jus Animalis – Durante o período em que se iniciava nas atividades profissionais de nutricionista, algo fez com que você se atentasse a questões éticas relacionadas ao direito à vida e à dignidade animal. Poderia falar um pouco sobre esse seu processo de expansão de consciência e vontade de transformar realidades, contando de que maneira a nutrição o levou ao ativismo pelos animais e como isso se manifestou na prática?
George Guimarães - Sobre a minha motivação ao ativismo animalista, como mencionei há pouco, meu primeiro contato com o veganismo deu-se pelo viés da saúde e alimentação. Mas tão logo passei a conhecer outros argumentos em favor do não consumo de alimentos de origem animal, ao conceito mais amplo do veganismo pelas lentes da ética, justiça social e meio ambiente, estes passaram a ser, pela ordem, os argumentos fundamentais que nortearam minha escolha pessoal e minha atuação além do consultório. Ainda nos anos 90 passei a integrar pequenos coletivos (grupos de estudos presenciais) que se formavam e, também, desapareciam rapidamente. Mas me mantive sempre vinculado e ativo em pelo menos um deles ao longo do tempo, enquanto aprofundava (por meio da literatura, atuação e participação em congressos no exterior) a minha compreensão sobre os impactos e os desdobramentos dessa opção pessoal que afeta de maneira abrangente o coletivo.
Logo tornou-se nítido para mim que se tratava de um movimento e não apenas uma escolha pessoal. Algo muito além da mera busca por saúde ou de um olhar para os animais que sofrem, mas um movimento por justiça social, com todas as nuances e desafios de qualquer outra luta por justiça social. Incluo aqui no termo “social” não apenas os animais humanos que são impactados pelas doenças advindas do consumo direto de animais, mas também os desdobramentos advindos das consequências ambientais desse hábito, desde a poluição gerada que afeta a saúde humana e do planeta, até as disputas por terra, a escassez de água e principalmente todas as outras intersecções que o veganismo, enquanto movimento, faz com outras lutas sociais. Eu me refiro também à justiça devida pela nossa sociedade, historicamente e também no tempo corrente, aos bilhões de seres sencientes não humanos que têm suas vidas ceifadas após serem submetidos a uma quase-vida de privação e sofrimento.
Deste modo, aprimorando-se em mim um espírito crítico e sua maior compreensão de mundo, é que em 2006 fundei a ONG VEDDAS, cuja sigla significa Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos Animais e Sociedade, sendo ela a primeira organização não-governamental de direitos animais, e única até hoje no Brasil, a trazer em seu nome o termo "sociedade” com essa acepção (com exceção, é claro, do termo habitual que se refere apenas à figura jurídica que configura um tipo de associação, como “Sociedade Ambiental Vegetariana” e afins). Foi a partir daí que iniciei, de forma organizada, o ativismo pela defesa dos direitos animais, espírito esse que mantemos até hoje, agora com 18 anos de atuação.
Jus Animalis – Comemoramos este mês vinte anos do histórico Congresso Vegetariano Mundial, realizado em Florianópolis e, também, do lançamento, pelo Instituto Nina Rosa, do documentário “A Carne é Fraca”, que impulsionaram o veganismo no país. Recorda-se qual a contribuição que deu nessas importantes iniciativas animalistas de 2004? Fale sobre isso.
George Guimarães – O início dos anos 2000 foi, de fato, um período muito rico em iniciativas que deram visibilidade ao veganismo, sendo que em muitas delas eu tive participação ativa. Cabe lembrar que, em 2004, eu era o nutricionista responsável da associação organizadora do referido evento em Santa Catarina, além de ser seu coordenador em São Paulo. Deste modo, tive um papel de co-organizador do 36º Congresso Vegetariano Mundial, tanto em funções administrativas quanto de contato com os palestrantes e convidados. Também realizei parte da coordenação desse evento que transcorreu há exatos 20 anos, o que possibilitou a vinda ao Brasil de uma quantidade inédita de participantes internacionais para falar sobre veganismo e demonstrá-lo na prática culinária e na moda, além da sua validade científica.
Quanto ao importante documentário A Carne É Fraca, lançado quando eu já somava uma década de veganismo, posso dizer que tinha em meu poder uma boa coleção de livros e filmes (em fitas VHS) sobre a temática, época em que não havia ainda no mundo o mais famoso serviço de vídeos da internet. Participei de reuniões a convite da idealizadora do trabalho, Nina Rosa, que me pediu referências sobre algum documentário estrangeiro que estivesse alinhado com o objetivo do filme a ser produzido no Brasil (a pesquisa por vídeos nessa época era muito difícil, porque esse material existia disponível apenas em VHS). Entreguei a ela uma cópia do documentário “Diet for a New America” de John Robbins, mas já dublado em português mediante colaboração minha com a memorável Hildegard Bromberg Richter, ou "Dona Higa”, figura pioneiríssima no vegetarianismo no Brasil e fundadora da biblioteca TAPS em São Paulo, da qual eu fazia parte do corpo diretor.
Em suma, traduzimos e dublamos a obra com autorização dos produtores nos EUA, mas a distribuição era muito lenta, sendo relativamente desconhecida até mesmo por pessoas que estavam trabalhando em produções nacionais. Recordo-me, inclusive, que acabei cedendo à Nina Rosa uma cópia com defeito no áudio, ao que nos encontramos novamente para a entrega do material íntegro. O resultado da minha singela contribuição na forma de conversas e sob o formato do trabalho estrangeiro, pode ser visto no filme brasileiro, cujo roteiro é em grande parte inspirado no documentário norte-americano, mas que contou com um excelente trabalho da roteirista e diretora para adaptá-lo e reinventá-lo para a realidade brasileira. A minha contribuição para o célebre A Carne é Fraca, portanto, deu-se sobretudo nos bastidores.
Jus Animalis – Seu nome é uma referência obrigatória quando se pensa em ativismo animal brasileiro. Ele costuma ser associado ao VEDDAS e ao trabalho de campo que realiza desde 2006, época das grandes passeatas e intervenções ativistas na Avenida Paulista. Qual é a história desse grupo ativista que busca conscientizar as pessoas da existência dos direitos animais? Sinta-se à vontade para discorrer sobre os projetos realizados, sobre a capacitação dos voluntários e sobre o propósito do Encontro Nacional dos Direitos Animais.
George Guimarães - Como falado há pouco, o VEDDAS iniciou as suas atividades em 2006, a partir do desejo de um grupo de ativistas em São Paulo que não se identificavam mais com os grupos e iniciativas até então existentes, somado ao aprendizado que eu vinha adquirindo na participação de conferências no Exterior sobre direitos animais. A primeira década do novo século, no mundo todo, mostrou-se fértil para a expansão do movimento abolicionista pró-animal e foi nessa onda que me “formei” e me aprimorei como ativista. Era a hora para dar uma guinada no que fazíamos e em como fazíamos as coisas por aqui, tendo eu contado com a confiança de pessoas incríveis que se juntaram a mim na busca dessa inovação. Mas sem deixar de contar, evidentemente, com o apoio e os ensinamentos de quem já atuava no Brasil desde os anos 90 (e até mesmo antes disso) na área da mais antiga proteção animal, geralmente focada em animais domésticos e domesticados, mas que já reunia grande conhecimento sobre os trâmites do legislativo e judiciário brasileiros. Esse engajamento coletivo, enfim, se deu partir da convergência do pensamento de muitas pessoas idealistas que lutavam para obter efetividade dos direitos animais.
Afora São Paulo, onde está sediada a ONG VEDDAS, tivemos unidades formais da ONG com coordenadores locais em todas as cinco regiões brasileiras. Só para citar algumas cidades, menciono aqui Belém, Natal, Recife, Brasília, Ribeirão Preto, Sorocaba, Araraquara, Mogi das Cruzes, Caxias do Sul e outras tantas. Em determinado momento, chegamos a realizar pelo país ações concomitantes que somavam mais de uma dúzia no mesmo final de semana. Somente na capital paulista, havia ocasiões em que se realizaram seis ou mais ações ativistas no mesmo fim de semana, chegando às vezes em torno de 350 por ano pelo país. Todo o nosso trabalho sempre foi voluntário, inclusive o meu. Jamais tivemos um funcionário remunerado, mesmo porque o grupo, e mais adiante a ONG, nunca receberam qualquer benefício de origem pública. Quando fazemos alguma campanha de arrecadação, ela é voltada para algum objetivo específico: compra de equipamentos, impressão de folhetos, etc. Mas já faz alguns anos que não fazemos tais arrecadações.
Iniciamos as atividades de campo com manifestações, protestos e intervenções públicas. Logo acrescentamos ações objetivamente educativas, como o BAR VEDDAS, que consistia na instalação em via pública de uma mesa dobrável (como as mesinhas de bar), com alguns cartazes, folhetos e ativistas voluntários que se propunham a conversar com os transeuntes. Esta iniciativa evoluiu em 2008 para o VEDDAS-MÓVEL, consistente em uma pequena van com um televisor na janela lateral, destinada à exibição de vídeos curtos em locais movimentados, sem narração, cujo impacto fazia com que muitas pessoas parassem para assistir ou debater o tema com os ativistas ali presentes. Tal veículo operou nesse formato por cerca de dois anos, e em 2010 partimos para o projeto VEDDAS-CARTE, sua versão mais compacta e não motorizada. Trata-se de um caixote de madeira ou plástico montado sobre carrinhos de carga que, quando posicionados, acionam o televisor, a caixa de som e outros materiais de apoio. Chegamos a ter sete unidades operando em diferentes cidades. Com isso, o VEDDAS-MÓVEL tornou-se um projeto mais itinerante, passando a visitar diferentes cidades pelo Brasil, onde voluntários locais recebiam nossos ativistas por alguns dias, antes de seguirmos viagem para a próxima cidade. Bruno Azambuja, que coordenou essa fase do projeto, chegou a morar na van enquanto viajava para outras cidades, levando a mensagem abolicionista para além do nosso alcance habitual.
Todos esses projetos foram ideias originais para as quais eu buscava uma solução de design e tecnologia para torná-las praticáveis, modificando-as conforme apareciam equipamentos mais compactos e eficazes. O único que não deu muito certo, ao que me lembro, foi uma tentativa de tornar ainda mais compacta e multiplicável a mensagem audiovisual: a Mochila VEDDAS, que era uma mochila com uma "janela” onde estava inserido um tablet. Testamos o novo sistema com os voluntários usando-a no metrô em seu trajeto diário habitual, concluindo que as pessoas não se sentiam à vontade para iniciar uma conversa em ambientes mais fechados como as estações do metrô, tampouco no espaço apertado dos vagões (que não permitia uma boa visualização das imagens projetadas).
Também em 2010, o formato da nossa intervenção de rua no DIDA (Dia Internacional dos Direitos Animais), a qual começamos a realizar como passeata desde 2006, foi alterado para um formato mais impactante. De maneira inédita no Brasil, em termos de protestos e intervenções, começamos e levar à rua corpos de animais vítimas de exploração (obtidos do descarte da indústria ou provenientes de óbitos em clínicas veterinárias e santuários de animais), como meio de aproximar o público das próprias vítimas da violência humana. Ainda que tivesse sido com apenas alguns representantes de cada espécie ou de cada forma de exploração (alimentação, vivissecção, desmatamento, moda, entretenimento), a manifestação anual ainda causa muito impacto. Por três horas seguidas, na avenida, dezenas de ativistas sustentam em seus braços, de maneira respeitosa e silenciosa, os corpos desses animais mortos, enquanto outros voluntários do VEDDAS permanecem à disposição das pessoas para conversar sobre a razão do protesto.
Já em 2013, iniciamos uma nova forma de dialogar com o público, que foi por meio do Teatro VEDDAS, intervenção de rua dirigida pela atriz Christiane Cordovil. De forma similar ao que se via com a exibição dos vídeos, a representação cênica em via pública também ajuda a prender a atenção do público e, a partir daí, motivar um diálogo aberto sobre o tema apresentado. Muitas performances por ela apresentadas, aliás, foram inspiradas em textos escritos pela filósofa vegana abolicionista Sônia Felipe. Outro importante projeto desenvolvido é o CINE VEDDAS, onde levamos a espaços públicos, com objetivos pedagógicos e de conscientização, filmes por vezes inéditos no Brasil sobre a temática animal. Esclareço que já traduzimos e exibimos na rua, em primeira mão, produções australianas, europeias e estadunidenses, levando-os até mesmo a salas de cinema, inclusive em shopping centers.
Também faz parte da nossa lista de frentes de ação muitos cursos, palestras, seminários, proposituras judiciais, lobbys junto ao poder legislativo, intervenções disruptivas em eventos e em ambientes de exploração animal e até mesmo desobediência civil (temos o orgulho de computar, certa vez, o recorde de ativistas animalistas detidos de uma só vez: mais de vinte). Cabe ainda dizer que no espírito do entendimento de que as causas que lutam por justiça social gozam de inegável interconexão (interseccionalidade), sempre participamos, colaboramos, co-organizamos algumas ações em parceria com grupos que têm enfoque em causas ambientais, indígenas, LGBTQIA+ e outras por direitos de minorias.
Para capacitar voluntários em número suficiente, especialmente para as ações de contato direto com o público na rua, realizamos as Oficinas de Capacitação de Voluntários, que já contam com mais de 30 edições realizadas. Temos uma forma de abordar, de conversar, de debater. Não que seja uma cartilha ou manual a ser seguido rigorosamente. Mas com o tempo, fomos desenvolvendo técnicas de abordagem sobre o que fazer e falar, e o que não fazer ou falar, muitas vezes com amparo em técnicas de psicologia, mas sobretudo na nossa própria experiência com o ativismo. Isso tudo serve como guia para estabelecer uma comunicação mais eficaz com as pessoas na rua, onde podem ser inseridas as vivências e a formação de cada ativista voluntário. Foi a partir dessa experiência prática e relacionada ao aprimoramento das ações ativistas que brotou a semente do evento que me dá mais satisfação: o Encontro Nacional de Direitos Animais (ENDA).
A primeira edição do ENDA ocorreu em 2008, ainda nos primórdios da nossa existência enquanto grupo. Embora o projeto de um encontro nacional tenha sido complexo e ambicioso, ele se mostrava necessário em face do momento histórico que vivenciávamos, onde os direitos animais entravam cada vez mais em pauta. A intenção era a de gerar uma melhor capacitação do movimento como um todo e, mais do que isso, aproximar as pessoas empenhadas na defesa animal, estabelecendo uma salutar troca de experiências entre grupos e indivíduos que compõem o movimento animalista no Brasil. Logo na primeira edição, reunimos 200 pessoas das cinco regiões do país. Foi um evento marcante tanto pelo conteúdo das apresentações como pela interação entre convidados e participantes, lembrando que as trocas informais e espontâneas que ali ocorrem, gerando conexões mais profundas, é para mim a parte mais rica do evento.
Explico: o evento é idealizado de ativista para ativista. Não se trata de um espaço para quem quer apenas saber mais sobre veganismo ou para quem busca informações ou mudanças em seus hábitos alimentares. É um espaço essencialmente de debate, tanto que o slogan do ENDA é: "Discutindo o movimento, nutrindo-se nas diferenças e capacitando nossos ativistas". Afora as palestras que compõem a programação, com figuras exponenciais do movimento, a maior parte do evento é composta por exposições individuais dos participantes. Logo na abertura, os grupos presentes têm a oportunidade de falar o que pensam e o que fazem em suas comunidades de origem, possibilitando a aproximação de gente que até então não se conhecia e que passa a ver o trabalho de outras pessoas. Há também as "sessões espontâneas", em horários reservados, para que cada participante anuncie suas propostas de palestra ou oficina, que são então distribuídas pelos múltiplos espaços ali disponibilizados, mesmo porque o próprio local de realização foi pensado para promover essa integração. Cabe observar que o ENDA é sempre realizado em ambiente rural, sob clima de retiro, onde todos convivem, comem e dormem na mesma ecovila, em um ambiente favorável às finalidades propostas pelo evento, sobretudo a integração.
Eu costumo brincar que o ENDA é o único lugar onde é possível encontrar o seu ídolo do movimento, até então mítico, segurando a toalha de banho na fila do chuveiro enquanto você escova os dentes ao lado. Assim todos ficam sabendo que ali somos iguais, derrubando as supostas barreiras hierárquicas que possam ter existido até então e aumentado a possibilidade de convívio e interação entre as pessoas, tanto ali quanto no futuro. Nesse espaço salutar de debates pela causa comum reduz-se, naturalmente, a possibilidade de divergências motivadas por ego, ciúmes ou outros sentimentos, atitudes essas que são comuns e ao mesmo tempo nocivas para o movimento. Não que todos tenham que ser amigos ou pensar igual, pois o nosso movimento é diverso. Mas que todos possam agir com admiração e respeito pelo outro, apesar das diferenças. Acredito na importância de termos mais ENDAs e eventos com propósito semelhante. Na verdade, por ter participado de tanta coisa nessa área, dentro e fora do país, estou convicto que todo movimento pode se beneficiar de mais encontros que visem a capacitação, a integração e a possibilidade de debater as diferenças.
Jus Animalis -Você fundou o primeiro restaurante vegano do país, em São Paulo, inicialmente na Rua Padre Machado, depois em Santo André e em seguida na Rua Haddock Lobo, formando assim a primeira rede brasileira de restaurantes veganos. Afora a culinária diferenciada, o VEGETHUS servia também de ponto de encontro ativista. Ali nasceram ou foram debatidas muitas ideias e projetos, como a ANDA (Agência de Notícias sobre Direitos Animais), os GEDAs (Grupos de Estudos de Direitos Animais), temas para palestras e seminários, dentre outras coisas. Foi lá que tudo começou, muita gente se envolveu. O que se pode dizer mais sobre esses memoráveis encontros gastronômicos e ativistas?
George Guimarães – A primeira unidade foi aberta em julho de 2003, depois em 2006 e a última em 2009, alcançando uma longevidade de 10 anos. Lembro-me bem quando, por ocasião da inauguração da unidade da Rua Haddock Lobo, encontrei o amigo ora entrevistador parado na calçada e contemplando, com surpresa e felicidade, a fachada do novo estabelecimento que trazia a seguinte inscrição: "VEGETHUS Restaurante Vegano”. Sua fala não me esqueço: "Nunca achei que fosse ver isso na minha vida". Não questionei a motivação, apenas absorvi a frase como um eloquente elogio feito por alguém que eu admirava no movimento, tendo tal comentário sido o mais valioso que recebi durante o evento de inauguração. Digo isso, em tom memorialista, para mostrar que percorremos um longo caminho onde, a partir desse pioneirismo, hoje podemos ver (em uma única vida, meu caro) o mesmo termo - Restaurante Vegano - estampado em muitas centenas de fachadas pelo país.
Desde o início em 2003, a culinária era apenas o pretexto para a existência de um lugar de encontro e articulação do movimento (e, é claro, uma forma de manter economicamente o espaço). Apesar de todas as alegrias e dificuldades que o empreendimento passou, o ativismo continuou sendo o cerne das decisões e caminhos que então foram tomados. De fato, o VEGETHUS foi muito importante para o crescimento do veganismo no Brasil, promovendo palestras com expoentes nacionais e internacionais da área, eventos culinários, servindo de sede de reuniões e grupos de estudos que ali nasceram, lançamentos de livros e, o que era mais belo, para o encontro de ideias e debates que aconteciam espontaneamente ali, por ser um espaço onde veganos tinham a certeza de encontrar outros veganos e outros ativistas.
Isso tudo perdurou durante algum tempo em São Paulo, já que se tratava do único espaço aberto regularmente e comprometido com o ideal vegano. Mesmo com o surgimento de outros restaurantes similares, que na época eram abertos sempre por ativistas, o VEGETHUS permaneceu sendo a principal referência na capital paulista. Os próprios donos de outros espaços frequentavam o restaurante nos eventos especiais, o que era algo inédito para o setor gastronômico. Também promovíamos eventos em sistema de parceria, onde outros estabelecimentos veganos traziam a sua equipe e culinária para o nosso espaço. O VEGETHUS também ensejou, literalmente, centenas de entrevistas e matérias jornalísticas que deram enorme visibilidade ao tema, tornando-se ponto central àqueles que se interessavam em saber mais sobre a possibilidade de uma alimentação sem violência.
Eu acredito que, quando se trata de iniciativas pioneiras, seja impossível mensurar o impacto e alcance que têm. Não é incomum eu ser abordado por alguém para dizer que aderiu ao veganismo em razão de uma palestra, uma entrevista, algumas vezes de anos atrás quando a pessoa era ainda pré-adolescente e que foi graças àquilo que seus pais aceitaram com segurança a sua opção pelo veganismo, e que hoje têm filhos sendo criados veganos. Dias atrás, retornando de minha pousada vegana Casinha Amarela, na ilha de Boipeba, na Bahia, parei para almoçar em Salvador em um restaurante chamado Rango Vegan pela primeira vez. Aguardando o meu pedido, fui abordado: "Professor George? Eu trabalhei com o senhor no seu primeiro restaurante há 20 anos”. Tratava-se de uma das sócias, que declarou que a inspiração para o seu restaurante havia sido essa experiência anterior como funcionária do VEGETHUS em São Paulo. Eles são o primeiro estabelecimento vegano de Salvador, a partir do qual iniciativas semelhantes já se expandem pela cidade. Relatos desse tipo já ocorreram em encontros espontâneos em visitas a outros restaurantes veganos pelo Brasil, inspirados e agora inspirando outros do gênero.
A própria revista Veja São Paulo, que durante décadas foi a principal fonte de referência para a busca de pontos gastronômicos na cidade, ainda fazia referências ao VEGETHUS mesmo anos depois de seu encerramento, referindo-o como parâmetro de comparação com outros estabelecimentos desse tipo. O "The Vegan Guide to New York City", pequeno livro que era publicado anualmente por Rynn Berry (historiador estadunidense que residia em Nova Iorque, até o seu falecimento), trouxe algumas vezes comparações e referências ao VEGETHUS, a 8.000 km de distância do local abrangido pelo guia de restaurantes, o qual ele conheceu durante visitas ao Brasil, traçando uma análise sobre o cardápio ou a veia ativista de um novo lugar em Nova Iorque, inclusive o considerando estar entre os três melhores do mundo.
Para mim isso diz mais sobre o alcance do pioneirismo do VEGETHUS, mesmo passados 20 anos, do que qualquer análise objetiva que eu pudesse fazer em termos de números, público, faturamento, quantidade de eventos especiais (mas posso assegurar que foram mais de 500) ou quaisquer outros índices geralmente citados quando se avalia um estabelecimento comercial. E para mim vale a lição e a constatação de que quando objetivamos fazer algo cuja viabilidade e sucesso carecem de referências ou possibilidade de análises objetivas de prospecção de resultados, o que podemos fazer é apenas fazer. Seja para um empreendimento com característica comercial, mas de cunho ativista ou social, ainda mais para iniciativas que são difíceis de colocar dentro de uma perspectiva definida de objetivos e resultados esperados. O resultado apenas se mostrará. Algumas vezes de maneira totalmente inesperada. Muitas vezes apenas com o tempo. Outras vezes apenas quando o tempo de existência daquela iniciativa já tiver se encerrado. E mais raramente, mas que são as mais especiais, somente quando já tiver passado o nosso próprio tempo de vida.
Jus Animalis – Dentre as principais ações realizadas pelo VEDDAS consta um caso emblemático de grande complexidade, que remonta a junho de 2007, alusivo à vivissecção de cães que ocorria em um curso de Medicina em Anápolis/GO. Em 2009, o VEDDAS obteve CNPJ e se tornou ONG, adquirindo legitimidade para ingressar com ações judiciais. Como avalia o embate de 17 anos atrás? Que dificuldades costumam surgir na propositura de demandas judiciais pela ONG?
George Guimarães – O referido enfrentamento em 2007 foi nossa primeira campanha que envolveu a necessidade de ação judicial. Atuamos em três frentes: pedido de liminar para impedir a realização do curso com fulcro em leis federais e no código sanitário municipal, acionamos o IBAMA e fizemos protestos diários na porta do estabelecimento, o que naquela pequena cidade mobilizou bastante a mídia por vários dias. Foi a primeira vez que entrei na sala de um juiz, em razão do pedido de liminar. Entreguei em mãos a peça que continha algumas dezenas de páginas, escrita pela advogada Renata Martins, de São Paulo, e assinada por uma ONG parceira, já que até então não tínhamos qualificação para isso. O juiz folheou, me escutou por menos de 5 minutos e assim que eu deixei o gabinete (tempo insuficiente para ter lido o texto) veio a notícia do indeferimento, condenando ali cerca de 200 cães que aguardavam para serem submetidos, sem necessidade alguma, a diversos procedimentos médicos naquela semana, até receberem eutanásia. Havia denúncias na cidade de que animais estavam sendo subtraídos das casas e que o Centro de Controle de Zoonoses fazia o transporte irregular até o local, cujas condições sanitárias eram inadequadas, isso em desconformidade ao dispositivo da Lei de Crimes Ambientais, que preconizava a adoção de métodos alternativos na vivissecção.
Tal episódio deixou claro para mim que muitas decisões judiciais, especialmente em municípios pequenos, nem sempre correspondiam àquilo que se espera dos aplicadores da lei. Aprendi com isso que se devia obter mais conhecimento dos trâmites jurídicos processuais, para que as normas vigentes pudessem ser efetivamente observadas e aplicadas. Foi por isso que decidimos nos tornar uma ONG legalmente constituída e com legitimidade para a propositura de ações judiciais. Nos anos seguintes, ingressamos com algumas ações em todas as esferas, de ACP (Ação Civil Pública) a ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), inclusive perante as Cortes Superiores, envolvendo temas que vão desde a proibição de rodeios e vaquejadas até o fim da exportação de animais em navios cargueiros.
Apesar da decepção com a primeira experiência, o caminho judicial é sim um caminho factível, porque em nosso país há leis que embasam a proteção dos animais e conferem a eles alguns direitos. No caso de Anápolis, depois que o juiz indeferiu o pedido liminar, alguns ativistas anônimos expressaram a sua indignação com a decisão judicial por meio da invasão da propriedade para libertar os animais, em uma atitude que se chama ação direta. Tal atitude pode ser considerada criminosa aos olhos da lei, não cabe a mim julgar isso, mas considero compreensível que um grupo de pessoas, após ver esgotadas as vias legais, decida agir por conta própria para salvar dezenas de seres vivos com os quais conseguem estabelecer uma relação de empatia e sentir o seu sofrimento. Não foi diferente quando no passado se tratou da opressão de vidas humanas, fosse por racismo, xenofobia ou outros sentimentos que separaram alguns seres humanos dos demais. E não será diferente hoje quando se trata daqueles que são capazes de enxergar para além do especismo: discriminação entre espécies, tomar membros de outra espécie como inferiores pelo simples fato de serem de outra espécie.
Alguns cães destinados aos experimentos científicos, no entanto, não escaparam do cativeiro e com isso prosseguimos a campanha no local. Fui pessoalmente ameaçado pelo médico responsável pelo curso, que me convocou ao interior do estabelecimento para supostamente negociar uma solução, pedindo que eu entrasse sozinho. Assim que cheguei em sua presença um funcionário tomou minha câmera e, sem saber que eu tinha no bolso um gravador (eu era novato em ações judiciais, mas não em campanhas ou no enfrentamento de exploradores de animais), proferiu suas ameaças. Ao que atuei como intimidado para poder sair em segurança e imediatamente lancei mão do recurso que ainda faltava. Não contra as ameaças dele, porque essa não era a prioridade, mas contra o curso vivisseccionista que iniciaria em 2 dias.
Foi então que acionei o IBAMA, cujos agentes Roberto Cabral e Alexander Noronha deslocaram-se de Brasília no mesmo dia e, com base no mesmo artigo de lei que foi desconsiderado pelo juiz de Anápolis, Cabral anunciou no portão de entrada: "Abra o portão porque vamos entrar, o IBAMA vai entrar”. O curso foi embargado e na noite seguinte os 122 animais que ali estavam foram acolhidos por uma ONG local. Alguns deles retornaram aos seus lares originais, já que as denúncias de que estavam sendo furtados dos quintais das residências eram verdadeiras. Um dos animais era um cachorro com o qual tive contato durante o reconhecimento de campo logo no primeiro dia da campanha, tanto que fiz a ele a promessa de que todos seriam resgatados. Batizado de Promessa, ele foi adotado por uma ativista que esteve conosco durante toda a campanha e viveu feliz por muitos anos na companhia de outros companheiros caninos. Um destino bem diferente daquele que aguardava ele e os outros 199 cães destinados à experimentação. Não fosse o empenho de ONGs, ativistas e juristas de várias partes do país, e em especial dos agentes de fiscalização que tiveram a coragem de tomar as medidas necessárias, todos os animais estariam condenados a uma morte horrível.
Observo que em data mais recente, já na condição de organização não-governamental com legitimidade postulatória, o VEDDAS ingressou com ação civil pública na tentativa de impedir a saída, do porto de Santos, de um navio carregado com milhares de bovinos destinados ao abate no Exterior, o que representa incomensurável martírio aos animais durante a longa travessia do oceano Atlântico. A ação subscrita pela advogada Fernanda Tripode foi a primeira, pois agimos já na primeira notícia sobre o propósito do navio. Realizei uma investigação com drone no mesmo dia para registrar a denúncia de maus-tratos que estavam ocorrendo durante o embarque dos animais para assim subsidiar a nossa ação.
Também fui pessoalmente ao Ministério Público Estadual e Federal na cidade litorânea, em caráter de urgência. Nessa primeira ocasião, no mês de dezembro de 2017, essas foram as únicas ações possíveis de serem tomadas já que não houve tempo para a mobilização de nenhum grupo no curto espaço que tivemos e o navio seguiu viagem com seu carregamento de vidas. Já no seu próximo retorno ao Porto, em janeiro de 2018, pudemos nos organizar melhor e trazer uma campanha usando todo o nosso cardápio, desde mobilização da mídia e mais ações judiciais até a colocação de nossos corpos em frente aos caminhões na tentativa de impedir o embarque. Depois de algumas horas sofrendo violência física por parte da polícia portuária e com duas ativistas por muito pouco não tendo sido atropeladas pelos pesados caminhões, a nossa intervenção atingiu alguns dos nossos objetivos: frear os caminhões por alguns segundos e gerar imagens impactantes para a mídia que estava no local, inclusive as subsidiárias das duas maiores emissoras do país.
Concluindo sobre o tema das ações judiciais nesse caso, outras ações de outros grupos vieram a somar e diante da motivação comum entre elas, ocorreu a reunião de processos. O navio novamente seguiu viagem, porque a liminar que havia sido concedida pela Justiça Federal em Santos contra a empresa responsável pela exportação intercontinental, foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, julgamento no qual estive presente com outros ativistas da ONG, restando frustradas as expectativas daqueles que organizaram protestos no litoral. Seguiu-se a isso uma intensa mobilização pela proibição da exportação de animais nos portos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, cuja presença diária, nossa e de outros grupos e indivíduos, alongou-se por meses.
Jus Animalis – Sabemos que em nosso país milhões de animais são submetidos à violência institucionalizada, destinados à produção de carne, leite e ovos. Na maioria dos municípios brasileiros ainda há veículos de tração animal em circulação. Espécies silvestres vivem cativas em zoológicos. A criação de passeriformes, para fins de lazer, é legitimada. Nas arenas dos espetáculos, rodeios e vaquejadas ainda prevalecem. Diante desse cenário desolador que até já motivou ações diretas pela libertação animal, qual a sua proposta para reverter a situação?
George Guimarães – Quem dera fosse possível haver uma proposta objetiva para isso. Quando olhamos para o cenário da exploração animal de maneira ampla, em todas as suas variações e dimensões estonteantes, a firmeza do quanto ela é estruturalmente arraigada nas atividades humanas, e como a direção natural das coisas caminha no sentido oposto da redução da escravidão animal, a resposta é: nenhuma, não há proposta alguma que possa reverter ou solucionar o problema. Mas é nessa hora que não posso deixar de pensar o quanto desesperançosa e desoladora já deve ter sido, no passado, qualquer semente de libertação de pessoas oprimidas por sistemas cruéis institucionalizados, mas que por fim levantaram-se súditos contra reis, colônias contra impérios, democratas contra déspotas, minorias contra maiorias opressoras. Essas lutas prevaleceram e hoje desfrutamos de tais conquistas enquanto sociedade. A grande diferença é que nas situações ora exemplificadas, ainda que não tivessem voz plena, as vítimas tinham alguma voz. Mesmo assim, precisaram contar em grande parte com a voz de quem gozava de alguma liberdade.
No caso da exploração animal, os sujeitos de direito vítimas da opressão humana (animais sujeitos, sim, que têm direitos do ponto de vista moral, mesmo que ainda não os tenham sido concedidos à luz do direito positivo) não têm voz e nem como reagir contra o sistema que os mantêm subjugados. Por um lado, isso torna sua luta menos esperançosa. Mas por outro lado, quase todos nós podemos ser porta-vozes da defesa animal, porque essa luta é nossa: a dívida histórica para com eles é da espécie humana, seus escravizadores, algozes quase tão ancestrais quanto a própria existência da nossa espécie. E é justamente por nossas mãos que a exploração dos animais precisa ser combatida, enquanto próxima fronteira ética que devemos transpor. Isso será uma conquista tanto para os animais não humanos quanto para nós, animais humanos, por ser representativa tanto do estágio ético e civilizatório que fomos capazes de atingir (mas já é representativa, porém atualmente atestando para isso de maneira negativa), como também do grau de consciência coletiva sobre como a manutenção da exploração animal, diante do impacto ambiental por ela causado, é um dos principais fatores que põem em risco a própria continuação da existência humana no planeta.
É preciso estarmos alertas a iniciativas que trazem soluções incompletas que buscam apenas tranquilizar nossas consciências com soluções “tecnológicas” ou "humanitárias”, a exemplo das fórmulas do “abate humanitário”, dos ovos de galinhas "criadas soltas", tal dia da semana sem consumir carne e de outras tantas soluções paliativas que se podem chamar de bem-estaristas, cujo objetivo primordial é a de melhorar um pouco a condição dos animais e não abolir o seu uso. Tais práticas bem-estaristas, que constituem uma falácia, contribuem para a libertação animal tanto quanto a redução no número de chibatadas contribuiria para a libertação de pessoas escravizadas, ou quanto o uso da câmara de gás contribuiria para tornar menos abjeto o horror do holocausto. Não tornam. Assim como não torna menos escravizante ou angustiante designar a galinhas um espaço maior de movimento. Isso não as liberta da sua exploração, mas apenas apazigua a consciência de quem poderá agora ver um tal selo na embalagem e seguir contribuindo para a exploração delas, comprando o mesmo produto ao qual já estava habituado.
Assim como uma morte não torna-se algo diferente do que aquilo que é (a subtração da vida) somente porque essa vem acompanhada da intenção de proporcionar uma morte precedida de perda de consciência (raramente eficiente e comumente causadora de mais dor na velocidade frenética das linhas de produção) a um boi ou a um porco, seres dóceis e mais inteligentes do que muitas espécies caninas, que assim como todas as outras espécies animais, inclusive a nossa, são capazes de sentir medo, frio, dor, proteção e prezam pela sua liberdade e pela sua vida como sendo seus bens mais valiosos.
Dito isso, a proposta para reverter a situação dos animais é algo que coincide com os objetivos de se conseguir deter também a nossa situação climática e existencial. Ela precisa buscar soluções a cada passo, mas sem nunca perder de vista que seu alcance tenha um caráter abolicionista. Os avanços pelos quais cada região e cada cultura precisam alcançar esse objetivo muitas vezes dependem de mecanismos legislativos e administrativos que estejam à disposição da sociedade e, não estando, que se lute para criá-los. No entanto, não há instrumento legal que possa ser implementado se mentes e corações não tiverem sido mudados. Portanto, todas as propostas de transformações devem considerar a sensibilização do indivíduo (educação, conscientização, respeito), gerando mudanças de consciência no nível individual. Instrumentos legais não são instrumentos geradores de mudanças. Eles têm como alvo a minoria que não foi capaz de aderir às mudanças de moral e de consciência que o restante da sociedade já atingiu. Em síntese, toda proposta que se disponha a mudar algo tão essencial e urgente quanto a maneira como nós nos relacionamos com outros seres vivos ao longo de milênios, precisa contemplar sempre o objetivo da mudança individual.
Jus Animalis - A caça das baleias no Brasil perdurou até o início dos anos 80, na praia do Costinha, em Lucena/PB, quando o ativismo da primeira associação ecológica do Nordeste (APAN) conseguiu sensibilizar a opinião pública acerca da insensatez de tal prática. O apoio dado pela imprensa e a adesão de artistas, no sentido de que fosse abolida a atividade cruel, gerou a aprovação da Lei dos Cetáceos em 1987. Atualmente, diante de desafios com tamanha complexidade, que envolvem questões políticas e até normas de direito internacional, como você enxerga a prisão de Paul Watson? Comente.
George Guimarães – Conheci pessoalmente o já lendário Capitão Paul Watson em 2005, quando fui palestrar com ele em uma conferência de direitos animais nos EUA e seguimos compartilhando desse mesmo espaço como palestrantes nos anos seguintes. Até que no final de 2010 tive o privilégio de integrar a tripulação de um dos navios capitaneados por ele, o Steve Irwin, na campanha contra a caça de baleias dentro do Santuário de Baleias na Antártida, atividade que é ilegal e vem sendo realizada à revelia de normas internacionais por uma empresa estatal pertencente ao governo japonês. Essa edição da campanha, que durou de dezembro de 2010 a fevereiro de 2011, foi a mais bem-sucedida até hoje, tendo impedido a matança de mais de 800 baleias nesse período.
Todo ativista ambiental coleciona inimigos a cada campanha. Eu posso dizer isso também por experiência própria. Já Paul Watson coleciona inimigos poderosos em todo o mundo, como os próprios governos dos países que realizam a caça de baleias, notoriamente o Japão, a Dinamarca e outros. No caso da Dinamarca, isso se dá em razão do combate que o referido ativista faz da matança brutal das baleias nas Ilhas Faroe. Em agosto de 2024, Paul Watson foi preso na Groenlândia (território autônomo da Dinamarca) com base em um alerta vermelho da Interpol emitido pelo Japão e baseado em acusações fracas e distorcidas. No entanto, se o pedido de extradição for aceito, o julgamento ocorrerá no Japão, país que tem uma taxa de condenação de 99% dos acusados. Em se tratando de um inimigo declarado do Estado, a sua condenação é praticamente certa. A pena é de até 15 anos, o que, considerada a idade do acusado (74 anos), equivaleria, na prática, à prisão perpétua.
A expectativa é a de que a Groenlândia recuse o pedido de deportação e liberte Paul Watson, mas em todas as audiências realizadas sobre a sua deportação até o momento, o juiz simplesmente recusou-se a escutar a defesa, negando até mesmo o pedido para exibição de um vídeo curto que desmente de maneira cabal a versão do governo japonês sobre o suposto crime, que teria sido ordenar que um dos tripulantes do seu navio invadisse o navio de caça japonês, coisa que o tripulante fez contra o conselho de Paul Watson e pelo qual esse tripulante já foi preso e já cumpriu a pena.
Tal prisão, de um ativista que dedicou toda sua vida à defesa do meio ambiente, é um sinal alarmante dos tempos em que vivemos. O Brasil é o país com maior número de assassinatos de ativistas ambientais, em especial na região Norte do país, portanto é com dificuldade que podemos gritar "violência” diante de uma repressão sendo realizada de maneira institucional e seguindo ritos aparentemente civilizados. Mas talvez essa seja uma forma ainda mais alarmante, porque é feita à luz do dia em trocas entre governos de países que desfrutam de grande prosperidade econômica e altos índices de desenvolvimento humano. Logo, se até mesmo nesses lugares e sob holofotes mundiais há a tentativa de aprisionar e usurpar os direitos de defesa de alguém que é mundialmente conhecido, o que dizer do risco que correm os ativistas que desfrutam de menor visibilidade?
Isso tudo nos leva, irremediavelmente, à seguinte reflexão indagativa: para onde estamos caminhando enquanto sociedade humana, em meio a catástrofes climáticas sem precedentes na história da civilização, quando deveríamos estar protegendo o meio ambiente e todos aqueles que se insurgem contra sua destruição? O cárcere já prolongado e a possível extradição e condenação do Capitão Paul Watson é um ultraje a todas as pessoas que saem de sua zona de conforto para dedicarem seu tempo ou até mesmo suas vidas para tornar o planeta um lugar melhor para todos os seres que habitam este que é o único planeta que nós (e todas as outras espécies) temos para habitar.
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