Entrevista com Dagomir Marquezi

O entrevistado, jornalista profissional há mais de 50 anos, atuou na capital paulista em diversos jornais e revistas. Como roteirista contribuiu em gêneros textuais diversificados, como curta-metragem, telenovela, peça de teatro, musical e programa infantil.  Também escreveu ensaios (“Auika!” e “Eu Sou Animal”), ficção (“O Caso da Mulher Dragão”, “O Ocidente é Vermelho”, “O Último Tiro”, “Carro de Paulista”, “Dores e Amores” e “Intervalo”), não-ficção (”Guerra Nuclear”) e história em quadrinhos (”Inter! Quadrinhos”, “Contos Bizarros” e a adaptação de “O Diário de um Mago”, de Paulo Coelho). Foi distinguido com o Prêmio Abril de Jornalismo (1998) e obteve o primeiro lugar no Concurso de Dramaturgia da Funarte (2004). No início de sua trajetória profissional foi responsável pela coluna ecológica do jornal O Estado de São Paulo e, mais à frente, pela célebre reportagem que realizou trancafiado na jaula de um zoológico. Planeja, em breve, concluir e divulgar outro projeto artístico voltado à causa animal. Dagomir Marquezi concedeu entrevista exclusiva ao Jus Animalis.  

 

Jus Animalis: Sua carreira no jornalismo começou nos anos 80, época em que o Brasil começa a implementar as diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente, aprova Lei da Ação Civil Pública e promulga a Constituição Federal de 1988, cujo artigo que vedava a crueldade aos animais passa a ser desafiado por uma prática cultural perversa denominada farra do boi.  Acaso essa década em que surgiu o Direito Ambiental projetou em você alguma motivação especial relacionada aos novos direitos, sobretudo o dos animais?

 Dagomir Marquezi: Sim, eu estava saindo de uma militância política convencional e procurando novos caminhos. A luta contra a caça às baleias no Brasil foi determinante. Nessa época eu conheci o deputado Fabio Feldmann, que era praticamente o único ambientalista na Assembleia Constituinte de 1988. Ficamos muito amigos e trabalhamos em vários projetos. Então eu, modestamente, considero que tive uma participação na criação desse Direito Ambiental e no próprio capítulo ambiental da Constituição. Sempre que pude eu procurei distinguir o ambientalismo dos direitos animais, que era minha verdadeira causa. Desde a infância o sofrimento dos animais me causava muito mais incômodo e revolta do que o sofrimento dos humanos. Soube da Farra do Boi quando trabalhava no jornal O Estado de São Paulo e denunciei esse espetáculo fútil e sádico. A repercussão foi enorme. Dei uma entrevista no programa da Hebe Camargo que provocou a ira do governador de Santa Catarina. Mas a Farra é indefensável sob qualquer aspecto. Infelizmente ela continua a ser praticada por hordas de bêbados ignorantes no litoral do estado, mas hoje ela não é mais aceita como uma “herança cultural”. É apenas um espetáculo de covardia, hoje reprimida pela polícia. Infelizmente é difícil erradicar essa vergonha de vez, assim como é difícil acabar com as touradas e com rituais festivos cruéis envolvendo touros na Espanha. Me orgulho de ter uma Constituição que registra a proteção dos direitos dos animais. Era importante marcar esse princípio jurídico e moral. Mas, como em muitos outros aspectos, essa Constituição não é respeitada.

 

 Jus Animalis: Na coluna Recado Ecológico, publicada pelo jornal O Estado de São Paulo no ano de 1986, você foi considerado o jornalista porta-voz contra a caça das baleias que vinha ocorrendo no litoral paraibano, isso um ano antes da superveniência da lei federal que proibiu de modo definitivo o molestamento de cetáceos em águas territoriais brasileiras.  Como avalia o papel da imprensa diante de questões tão graves como a que acontecia impunemente em Lucena, quando as baleias arpoadas eram conduzidas pela embarcação até a praia do Costinha, sendo ali retalhadas em espetáculos macabros abertos ao público?

 Dagomir Marquezi: Eu estive em Lucena numa reportagem para a extinta revista Status. Vi esse retalhamento. Só não tive coragem de acompanhar a caça em si. Eu acho que a imprensa e a mídia brasileiras de uma maneira geral não se interessam por esses assuntos, não consideram relevantes. Quando escrevi essas matérias, nas décadas de 1980 e 1990, não havia um interesse em direitos animais, só em ecologia como um todo. Hoje existe uma super polarização política no Brasil, e parece que a imprensa trata ainda menos dessa pauta. Por outro lado, hoje existe uma rede de sites, como o Jus Animalis, a ANDA, a Arca Brasil, o Fala Bicho e outras, que hoje são a verdadeira fonte de informação para quem se interessa pela causa. Muita gente da área, no Brasil e no exterior, possui contas em redes sociais, como o X e o Instagram. Fora isso, a internet oferece infinitas fontes de informação. É só saber como separar as fontes mais confiáveis.

 

 Jus Animalis: Na sua reportagem “Bicho-Homem”, que saiu na revista Playboy em 2000, você protagonizou de modo real a vida de alguém trancafiado numa jaula do zoo de Bauru, tendo por vizinho um babuíno. Como surgiu a ideia de realizar a matéria de forma tão pouco usual, sob uma perspectiva não apenas humana, naquele domingo de sol repleto de gente?  Que estilo jornalístico é esse que o levou a experimentar o próprio cárcere para melhor falar dele? Houve, porventura, alguma relutância ou exigência do diretor do zoológico em disponibilizar uma jaula para a exposição do Homo Sapiens, “o animal mais perigoso da Terra?”

Dagomir Marquezi: A ideia surgiu quando eu ainda era um pré-adolescente na década de 1960 e vi num jornal uma reportagem que me chamou a atenção. Mostrava um homem vestido como um executivo sentado num banco com seu chapéu. Aquele homem estava sendo exibido no zoo de Londres como um espécime de homo sapiens, assim como existiam tantas outras espécies. Aquilo me impressionou muito. Em 2000 aquela matéria veio à minha memória e eu sugeri fazer algo parecido numa reportagem para a revista Playboy. Combinei com o diretor do zoo de Bauru, que gostou da ideia e deu todo o apoio. Ele fez do evento uma ação educativa, me anunciando como o “animal mais perigoso do planeta”. Muita gente achou que eu ia ficar nu, comendo carne crua. Mas fiquei numa poltrona, vestido e lendo revistas. Foi uma experiência muito rica para mim me colocar no lugar daqueles babuínos. E tentei ser bem emocional também, acho que só assim a gente conquista as pessoas. O diretor do zoo entendeu muito bem o espírito da matéria e ainda reforçou o realismo da situação: ele exigiu que eu ficasse preso e exposto por todo o tempo em que os babuínos ficam, e que comesse uma refeição preparada pela mesma cozinha dos animais. Foi uma excelente refeição vegetariana, claro. Esse estilo de jornalismo se chama “gonzo” e foi inventada por um americano chamado Hunter S. Thompson. O jornalismo gonzo rompe a barreira tradicional. Ele não descreve a realidade, mas vive a situação. E a reportagem é sobre suas impressões da experiência. Eu acho que o jornalismo sobre animais, especialmente sobre direitos animais, sai ganhando com uma abordagem mais emocional. Afinal, essa é nossa comunicação com eles: emocional.

 

 Jus Animalis: Nessa matéria que se tornou antológica no jornalismo brasileiro sobre direito dos animais, há trechos impactantes a denunciar a realidade que se abate sobre os animais cativos. Não se trata apenas de uma reportagem, mas de uma sondagem psicológica do comportamento humano, uma reflexão filosófica sobre a condição animal, um estudo antropológico de certo aspecto da cultura humana. É um belo e poético texto literário, um pequeno tratado de pedagogia, um libelo contra os estabelecimentos de diversão pública que aprisionam e exploram outras espécies.  24 anos depois, como você avalia a reportagem Bicho-Homem e a contribuição que ela trouxe para o futuro, sabido que hoje o modelo dos zoos tradicionais, com animais mantidos presos, já não é aceito pelo público?  

Dagomir Marquezi: Muito obrigado pelos elogios! Acho que essa matéria tem relação com minha resposta anterior. Ela foi concebida sem vergonha de ter emoção. O jornalismo no Brasil costuma seguir velhas regras consideradas imutáveis. Uma delas diz que o jornalista tem que ser objetivo e não se envolver com os entrevistados e os objetos de sua reportagem. Eu não funciono assim. Eu posso dizer com orgulho que essa matéria atingiu o coração de algumas pessoas. E se apenas uma delas foi tocada pelo texto, missão cumprida. Mas confesso que tenho alguns sentimentos contraditórios sobre zoos. Ao mesmo tempo que não admito que animais vivam presos para nossa diversão, eu conheci o trabalho de biólogos e tratadores nos bastidores e tenho muito respeito por eles. Um caso evidente foi o do gorila Idi, no zoo de Belo Horizonte. Sua tratadora, Cynthia Cipreste desenvolveu um trabalho de interação com Idi que me fez ter certeza que ele era – dentro das condições – um gorila feliz dentro das limitações de um zoo.

 

 Jus Animalis: Sobre o tema relacionado aos animais como sujeitos de direitos, especificamente, consta que em 2013 você teve lançado o ensaio “Eu Sou Animal”, coletânea de textos seus publicados no site na Agência de Notícias sobre Direitos Animais-ANDA, da jornalista Silvana Andrade, além da reportagem “Bicho Homem” e do artigo “15 Razões Para não Comer Carne”. Fale um pouco desse livro e da contribuição que ele traz à causa animalista.

 Dagomir Marquezi: Bem lembrado, Laerte. Eu lancei essa coletânea há dez anos. Dez anos depois, estou preparando sua terceira edição, com revisões e atualizações. Gostaria que ele tivesse se espalhado mais, mas infelizmente temos no Brasil a tradicional dificuldade em vender livros. E uma dificuldade ainda maior de vender livros digitais, tratados com preconceito. Mas eu vou sempre editar em digital, é o formato que eu leio. Esse livro foi feito a partir das colunas que eu escrevi para a ANDA e duas matérias para a revista VIP. Na terceira edição vou mudar algumas partes que ficaram ultrapassadas. O mundo está mudando muito rapidamente e Eu Sou Animal é o tipo de livro que precisa de atualizações regulares. O que era normal na primeira edição, há 10 anos, hoje pode ser considerado um absurdo. As touradas são um bom exemplo disso. Há dez anos eram tratadas como um espetáculo cultural. Hoje, é difícil achar quem veja aquele show indecente de sadismo como “uma preservação da cultura ibérica”. Hoje existe um certo consenso de que o animal não pode sofrer. A expressão “abate humanitário” carrega uma tonelada de hipocrisia. Ao mesmo tempo, é um passo para o rumo certo. Eu valorizo cada um desses passos, por menores que sejam. Fora os grandes passos, como a decisão da Coréia do Sul de banir o comércio de carne de cães até 2027. Gostaria que começasse ontem, mas... um passo de cada vez.

 

 Jus Animalis: No trabalho jornalístico especializado e no livro referido na pergunta anterior verifica-se uma séria preocupação sua em fazer valer os direitos dos animais, tal qual preconizado pela própria carta constitucional ao vedar a crueldade para com eles. Você tem algum novo projeto para avançar nesse tema que tem sido tão marcante em sua vida e carreira? 

 Dagomir Marquezi: Por enquanto estou terminando a terceira edição de Eu Sou Animal. Mas pretendo voltar a fazer ficção com esse assunto. Em 1986 publiquei pela Editora Brasiliense, em parceria com o Jo Fevereiro, um livro (HQ) chamado O Último Tiro - Vamos Salvar as Baleias. Tenho muito orgulho desse trabalho, que misturava literatura juvenil com quadrinhos. Pretendo lançar outra versão, atualizada, assim que der.

LAERTE F. LEVAI

Jornalista ambiental (DRT n.º 96682/SP). Realizou essa entrevista exclusiva para o portal Jus Animalis.

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