Entrevista com Edna Cardozo Dias
“É preciso que a sociedade como um todo evolua mais no sentido de um mundo mais ético, mais solidário e mais responsável. É preciso que todas as teorias não fiquem apenas nas discussões acadêmicas e se reproduzam no mundo dos fatos.”
O Jus Animalis tem a honra de trazer aos leitores uma entrevista exclusiva com aquela que é considerada a personalidade mais importante do Direito Animal brasileiro, pelo fato de ser a primeira que escreveu sobre o tema e reivindicou, a partir dos exemplos concretos de sua vivência ativista iniciada há mais de quarenta anos, o reconhecimento efetivo de direitos aos animais. Estamos falando da professora e advogada Edna Cardozo Dias, que inaugurou no país um novo campo de estudo que se voltava, exclusivamente, à defesa jurídica de tantas outras criaturas vivas que, embora dotadas de sensibilidade, são consideradas instrumentos servis, coisas para uso e fruição, objetos de consumo, de diversão pública ou meros recursos naturais. Edna foi a voz pioneira que, inconformada com o rigor perverso que o sistema antropocêntrico impunha aos animais, pediu socorro àqueles que tanto precisavam de justiça.
Do contundente livro “SOS Animais”, que remonta aos já distantes anos 80, até o trabalho de maturidade intitulado “O Caminho de União ente o Ambientalismo e o Animalismo Brasileiros” produzido em 2023, nossa entrevistada fez um percurso memorável em busca daquilo que sempre acreditou e, com seu incansável espírito de luta, seguiu em frente sem nunca esmorecer. Seja para embasar expressivas vitórias conquistadas aos animais, seja para denunciar flagrantes retrocessos, Edna Cardozo Dias tornou-se figura central em todos os momentos do direito animalista no Brasil, contribuindo muito para o avanço da disciplina. Seus livros são prova disso, porque neles a autora demonstra o amor incontido que sente pela natureza e os animais. Na obra mais recente, Edna faz uma retrospectiva histórico-jurídica do movimento animalista brasileiro, a partir do ambientalismo, revelando em suas páginas uma cosmovisão bem mais generosa de mundo.
Nesta entrevista ela viaja do passado para o presente, resgata sua trajetória de vida, evoca a memória da gatinha Toulouse para representar todos os animais de seu afeto, fala de escritos que se tornaram livros, revisita pessoas e lugares, reconstrói ações políticas no tempo em que o ativismo era realizado, com fé e perseverança, por meio de correspondências, telefonemas e corpo-a-corpo. E assim foi. Nada impediu que Edna transitasse no parlamento e nas cortes judiciárias, que estabelecesse contatos essenciais, dentro e fora do país, que redigisse importantes projetos de lei, que participasse ativamente dos debates constituintes, que levasse sua mensagem compassiva a qualquer canto e que, sobretudo, ensinasse que os animais têm direitos e merecem ser respeitados. Enfim, uma biografia simplesmente exemplar. Edna Cardozo Dias é tudo isso e muito mais. Única, visionária, imprescindível...
Jus Animalis - Conte sobre suas origens e como foi a decisão de se radicar em Belo Horizonte. Fale também sobre a ideia de cursar direito, se ela já existia desde cedo ou foi se construindo aos poucos.
Edna Cardozo Dias - Nasci em Vassouras-RJ. Meu pai era engenheiro e trabalhava no Departamento de Estradas de Rodagem- DER. Toda minha família é radicada no Estado do Rio. Nosso núcleo familiar se mudou para Ouro Preto-MG, porque meu pai foi convidado para assumir a cátedra da disciplina “Cálculo Infinitesimal” na consagrada Escola de Minas de Outro Preto. Viemos para Belo Horizonte ainda na minha adolescência, quando eu cursava o curso médio. Fui criada entre intelectuais, e com isso, desde os sete anos de idade lia livros de adultos sobre história, arqueologia, filosofia, guerras, revoluções sociais, discos voadores e vidas extraterrestres. Sempre me senti atraída por uma vida além das pessoas mais próximas ou do meu país. Estudar e tocar piano faziam parte de uma severa educação que recebi. Logo após terminar o curso médio decidi continuar estudando e escolhi Direito levada pelo meu anseio de justiça. Me graduei na PUC/Minas. O doutorado fiz na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1998/2000) e o pós-doutorado na Universidade Federal da Bahia - UFBA (2023/24). Decidi fazer doutorado para que o tema Direito Animal se tornasse científico, eis que algumas entidades ambientalistas de Minas, formada por professores universitários, menosprezavam a causa.
Jus Animalis - Qual a imagem mais remota reveladora de sua empatia com os animais e de que modo isso a influenciou? Cite alguns bichos e bichanos que fizeram parte de sua vida e o que aprendeu com eles. Qual o papel da gata Toulouse como fonte de inspiração à defesa animal?
Edna Cardozo Dias - Passei a infância nos casarões de Outro Preto com quintais imensos onde transitavam animais da nossa residência e dos vizinhos. Eu e meus irmãos adorávamos os animais, mas nossa mãe permitia viver dentro da casa só um gato, e não autorizava a permanência de novos hóspedes. Em Campos dos Goitacazes, onde ainda vive a maior parte da família, na casa de meus avós e tios viviam muitos animais e eu sonhava viver em um lar assim multiespécie. A minha empatia com animais era recíproca, pois os cães me seguiam na rua, inclusive entrando comigo no colégio. Os professores já até me pediram para sair de sala para que um cão debaixo de minha carteira me seguisse e abandonasse o recinto. Nasci vegana, cuspia todo alimento que fosse carne, ovo ou leite. Mas, segundo recomendação médica da época, minha mãe me obrigava a comer.
A gata Toulouse foi uma das pessoas mais importantes na minha vida. Quando eu olhava para ela via uma deusa. Nós nos encontramos no abrigo da Sociedade Mineira Protetora dos Animais - SMPA em Belo Horizonte. Ela sofreu um desastre e um veterinário amputou uma de suas patas. Eu a adotei e criamos uma dependência mútua que perdurou por quinze anos. Devido ao meu amor por Toulouse, quando trabalhei na Câmara de Deputados consegui que o Deputado Newton Cardoso entrasse com o projeto de lei nº 6680/82, autorizando a permanência de animais em apartamentos. E no mandato seguinte foi substituído pelo PL 266/83 do deputado Luís Leal. O que aprendi com os animais? O amor devocional e a gratidão.
Jus Animalis – Após se formar pela Universidade Federal de Minas Gerais, quais as funções que exerceu? Fale um pouco de sua trajetória no magistério e da atuação jurídica ambiental e animalista, no tempo em que crueldade era apenas uma contravenção penal e os animais eram invariavelmente tratados como coisas, objetos ou recursos.
Edna Cardozo Dias - Na área ambiental fui assessora jurídica da Secretaria de Ciência Tecnologia e Meio Ambiente e, após me aposentar no cargo, fui Gerente de Defesa dos Animais na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, tendo sido a redatora do Decreto nº 16.431, de 22 de setembro de 2016, que institui a Política de Proteção e Defesa dos Animais do Município de Belo Horizonte. Atuei, ainda, no magistério ministrando as cadeiras de “Direito Ambiental” e “Direito Urbanístico” na graduação e pós-graduação, não só nos cursos de Direito, mas nos cursos de Administração Ambiental e Geografia Ambiental. Já em 1994 ministrei aulas de “Crimes ambientais” na Academia de Polícia Civil de Minas Gerais – ACADEPOL, no curso onde se formaram 37 novos delegados concursados, e vários peritos e escrivães. Foi o primeiro curso ministrado para o pessoal da Polícia Civil de Minas Gerais. Nos meus cursos inseria o Direito Animal. Tive uma gratificante caminhada no magistério.
Fui professora concursada de Direito Animal e Direito Ambiental - PUC/Minas - 2001/2002 e primeira docente no Brasil a ministrar a disciplina Direito Animal, professora de Direito Ambiental na FUMEC - Faculdade de Ciências Humanas, desde 2001 até 2013, nos cursos de graduação e mestrado, professora de Crimes Ambientais nos cursos de aperfeiçoamento da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais – ACADEPOL (1994-1996), professora de “Legislação Ambiental” no curso de Pós - graduação em Educação Ambiental promovido pelo Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais de Minas Gerais - CEPEMG/Universidade Estadual de Minas Gerais (1994).
Também fui professora concursada na Faculdade Newton de Paiva das cadeiras Direito Ambiental e Direito Urbanístico (2002-2005), professora de Direito Ambiental do curso de pós-graduação em Educação Ambiental da Universidade Estadual de Minas Gerais, professora de Direito Ambiental e das Organizações Sociais, na Faculdade Arnaldo Janssen (2003-2007), professora de Direito Ambiental no curso de Direito Municipal do Instituto de Direito Municipal JN & CIDM (2006/2007), professora de Direito dos Animais no curso de pós de Direito Ambiental no Centro de Estudos da Área Jurídica Federal - CEAJUFE (2009), professora de Direito Urbanístico na Faculdade Milton Campos, no curso de pós em Direito Ambiental (2011-2012). Professora convidada para o curso de pós-grado da Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales y Políticas da Universidad Nacional del Nordeste, Corrientes, Argentina - 2013. Professora convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal (2017).
Além do serviço público e magistério na área ambiental construí uma carreira paralela desenvolvendo atividades não remuneradas. Atuei na Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, seccional de Minas Gerais, onde tive oportunidade de ministrar palestras em congressos, seminários e minicursos nas subseções do interior de Minas. E de participar frequentemente de audiências públicas junto ao Poder Legislativo e Poder Público em geral. Esta oportunidade ampliou os meus horizontes e deu força à minha voz. Fui conselheira seccional da OAB/MG (2013-2015 – 2016/2018), Presidente fundadora da Comissão dos Direitos dos Animais da OAB/MG (2013/2018), Presidente fundadora da Comissão de Direito Urbanístico da OAB/MG (2006/2013), e fui membro da Comissão de Meio Ambiente de 1992 até 2005.
Tive a honra de ser coordenadora e palestrante do primeiro curso de Direito Ambiental realizado pela Escola Superior de Advocacia – ESA/MG (1997), do qual participaram Ana Lúcia Hartman, Procuradora da República, Clarismundo Luiz Pereira Junior, Secretário de Meio Ambiente de Goiás e Gilberto Passos de Freitas, desembargador do Tribunal de Alçada de São Paulo, que era o Presidente da comissão que redigiu a Lei de Crimes Ambientais. A nivel nacional, fui membro de comissão extraordinária de Defesa e Proteção dos Animais do Conselho Federal da OAB em 2015 e 2019/21. Ainda junto a entidades de classe, fui, no ano 2000, conselheira suplente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica – ABMCJ, tendo sido coordenadora e conferencista do primeiro evento sobre meio ambiente da entidade em 2001. Publiquei três livros na área de Direito Ambiental: “Manual de Crimes Ambientais” em 1998, “Manual de Direito Ambiental” em 2003 e “Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito” em 2013.
Ainda na área de meio ambiente e políticas públicas, atuei na Câmara Técnica de Assuntos Jurídicos do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, a convite da representante das ONGs da região sudeste, Dra. Fernanda Colagrossi, presidente da Associação dos Amigos de Petrópolis, Patrimônio e Proteção Animal-APANDE. Isso no decorrer das décadas de 1980 a 1990. Fui eleita conselheira suplente do CONAMA, sendo titular o Dr. Paulo Pinotti, e fui empossada em 27 de julho de 2000 para mandato de dois anos. Na oportunidade participei da construção de políticas ambientais e da redação de normas ambientais, indo frequentemente a Brasília e participando de reuniões realizadas em outros estados do país.
No contencioso da área do Direito Animal só atuei com representações junto aos órgãos públicos e Ministério Púbico, mas já em nome das organizações não governamentais a que pertenci. Foram inúmeras e sobre os mais diversos temas. Exarei inúmeros pareceres para membros do legislativo e do executivo de todo Brasil. Entre inúmeros temas atuei contra rinhas de galo, corrida de greyhounds em Belo Horizonte, farra do boi, vaquejadas, tiro ao pombo, carroças, touradas e muitas outras. Algumas representações tiveram papel histórico.
A legislação que considerava maus-tratos aos animais contravenção dificultou muito e por esta razão trabalhei durante mais de dez anos para a criminalização da crueldade contra os animais (1983 a 1998) e depois de aprovada a Lei de Crimes Ambientais mais duas legislaturas para derrubar emendas que pretendiam descriminalizar rodeios, vaquejadas e brigas de galo, alterando o art. 32 da Lei de Crimes Ambientais. Por quase 20 anos enviei ofícios e pareceres às autoridades, publiquei artigos, proferi palestras, dei entrevistas, propus projetos de lei, a maioria com vistas à criminalização dos maus-tratos aos animais e a punição dos infratores.
Jus Animalis - Este ano a Sociedade Mineira de Proteção Animal tornou-se centenária. Qual foi a sua participação nessa antiga entidade e por que saiu para fundar a Liga de Prevenção da Crueldade Contra os Animais, com autonomia de atuação?
Edna Cardozo Dias - Eu me filiei à SMPA, onde fui secretária e vice-presidente tendo como lema: Proteger, amar e salvar os animais. Era sempre questionada por não ter optado por ajudar seres humanos. A escolha pelos animais se deu por considerar que são seres mais frágeis e os mais agredidos pela sociedade. Ademais, não descobrimos diferença em ajudar um animal ou ajudar um humano, já que são nutridos pelo mesmo sangue vital. Todos sentem, sofrem, respiram e têm vida. Todo ser tem a mesma importância no universo. Para as mãos do justo tudo que vive é sagrado. Sempre tive certeza de minha escolha.
A SMPA realizava um trabalho assistencial de recolhimento de animais. A falta de recursos e a falta de mão de obra tornou o abrigo superpovoado, causando grande estresse aos animais. Percebi que proteger os animais é sobretudo educar os homens. Criei na SMPA o “ZOO Jornal” com a finalidade de realizar um trabalho educativo e angariar novos sócios. O trabalho foi mal compreendido. Foi a razão pela qual me desliguei para fundar a Liga e Prevenção da Crueldade contra o Animal - LPCA, em 12 de dezembro de 1983.
A LPCA foi fundada com a finalidade conscientizar as pessoas sobre a interdependência das espécies, já que o que acontece a uma perturba todos as outras. Fazer cumprir as leis e, principalmente, aprimorar a legislação existente, que necessitava ser revista. A ideia fundamental que desde o início sustentou o conjunto de proposições da entidade tinha como meta estabelecer para os animais um status jurídico que os retirasse do status de semovente para o de sujeito de direitos protegido por leis eficazes. A LPCA trabalhou para que o animal não fosse considerado sob o ponto de vista de seu proprietário ou de seu utilizador, mas como indivíduo que tem seus direitos próprios, conforme sua natureza biológica, seus instintos sociais e sua sensibilidade. Atuou em várias áreas como vivissecção, engenharia genética, vegetarianismo, animal para consumo, criação intensiva, animais domésticos, animais silvestres, caça, zoos e circos, esportes cruéis, entre outros. Tinha representantes em vários estados e trabalhou durante toda sua vigência em parceria com outras entidades do Brasil e do exterior.
Jus Animalis - Um marco na história da proteção animal brasileira chama-se SOS Animal, que surgiu como boletim da LPCA e, posteriormente, se tornou livro. Como surgiu a ideia dessa publicação e qual a influência que ela teve na campanha da criminalização da crueldade aos animais?
Edna Cardozo Dias - Logo que fundei a LPCA comecei a publicar o boletim “SOS Animal” com o triplo objetivo de conscientizar pessoas, angariar adeptos para a causa e sensibilizar as autoridades. O boletim era distribuído para as entidades de outros estados do país, para as autoridades e a mídia em geral. A LPCA editou, também, a “Cartilha Animal” para as crianças. Em 1996 transformei o “SOS Animal” em um livro editado pela LPCA. O livro continua disponível como publicação independente na Amazon e Clube dos Autores. O livro aborda a questão dos maus tratos em geral, os animais nas religiões e trata da parte jurídica e legal, falando das leis e a forma de aplicá-las. Nesse sentido, a LPCA também distribuiu em 1991 um manual intitulado “Como defender os animais em Juízo” a todas as entidades de proteção animal cujo endereço possuía, em formato encadernado e digitado. Escrevi o manual porque eu recebia consultas de todo Brasil e verifiquei que os ativistas não conheciam a organização dos estados e muito pouco as leis.
Eu correspondia com entidades protetoras dos animais de vários países, que me enviaram farto material para embasar meu trabalho. De grande importância em minha atuação junto ao terceiro setor foi ter sido eleita vice-presidente para as Américas da Organisation Internationale pour la Protection des Animaux et pour l’Abolition de la Vivisection, então presidida pela médica Milly Schar Manzoli, com sede em Arbedo - Suíça. Eu traduzia as obras da Dra. Milly e de outros médicos vivisseccionistas da entidade “Médicos pela abolição da vivissecção” e, em 1995, fui eleita para esse honroso cargo, e reeleita em 1998. Em 2001, com a morte de Mme. Milly, a entidade foi assumida pela delegação da Itália tendo à frente Max Pradella e Francesca Schar, que me mantiveram no cargo. Neste ano de 2025 fui contatada pelo Sr. Max Pradella, me comunicando que decidiram transferir oficialmente a sede para Itália e registrar a entidade junto ao “Registro Único Nazionale Terzo Settore do Ministerio del Lavoro e dele Politiche Sociale”, e que eu serei mantida no cargo, o que muito me honrou e emocionou.
Fui presidente do Instituto Abolicionista Animal – IAA em 2018 e 2019, trabalhando junto aos maiores expoentes do Direito Animal, Heron Santana Gordilho, Tagore Trajano, Luciano Santana, Daniele Tetu e de vossa senhoria que me entrevista. E graças a essa abençoada aliança recebi uma das maiores honras de minha vida: ocupar a cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Direito Animal e Natureza-ABDAN, idealizada e criada pelo talento do professor Heron José de Santana Gordilho (2022). Eu diria que graças a esse grupo de iluminada inteligência e espírito de liderança hoje podemos dizer que o Direito Animal é um ramo autônomo do Direito e que já foi construída uma Teoria do Direito Animal no Brasil.
Sem dúvida nenhuma o SOS Animal foi uma semente, mas a criminalização dos maus-tratos aos animais é uma vitória de todos nós. Para ajudar na aprovação da Lei nº 9.605/1998 publiquei “Liberticídio dos Animais” (1997), que distribui entre os membros da Comissão que redigiu a lei e para quinhentos membros do Congresso Nacional. Mantive contato com a comissão de redação da Lei de Crimes Ambientais e acompanhei a tramitação do projeto enviando pareceres para as comissões e lideranças onde o projeto foi examinado. Meus principais apoiadores foram Dr. Gilberto Passos de Freitas e o Ministro Herman Benjamin.
Em 2015, quando entreguei ao Senador Anastasia meu projeto de alteração do art. 82 do Código Civil, acreditei que a LPCA havia terminado sua missão e dei baixa na mesma, muito embora outras pessoas quisessem assumi-la. Em 10/06/2015 o Senador Antônio Augusto Anastasia entrou com o PL 351/2015 para alterar o art. 82 do Código Civil, para que os animais deixassem de ser considerados coisas. Em 18/11/2015 o PL 351 foi remetido à Câmara de Deputados e se transformou no PL 3670/2015, onde teve apreciação e aprovação conclusiva nas Comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e na de Constituição e Justiça e de Cidadania. Antes de ir para sanção presidencial, em 15/08/2017, o Deputado Valdir Colato apresentou recurso contra apreciação conclusiva acarretando necessidade de apreciação pelo plenário. Concomitantemente, o PL do Deputado Ricardo Izar alcançou mais popularidade, embora tivesse sofrido emendas inaceitáveis. Ambos estão arquivados e atualmente o tema está sendo discutido junto à reforma do Código Civil e outras lideranças surgiram para somar esforços e garantir o êxito da necessária mudança no status jurídico dos animais.
Jus Animalis - Os anos 70 e 80 foram marcados por duas grandes frentes de luta animalista, que tiveram repercussão internacional, sendo elas a caça das baleias e a farra do boi. Como vê, nesses temas complexos, as extraordinárias vitórias ativistas conquistadas no século passado?
Edna Cardozo Dias - Eu vejo esta vitória com muita esperança e repito suas palavras em seu livro: “O futuro chegou” (Levai, 2023). Na questão das baleias tive um papel coadjuvante, quando em 1981 auxiliei o ambientalista José Truda Palazzo Jr. a recolher assinaturas em prol do Projeto Baleia Franca em um berçário no litoral catarinense. Resultou na criação da Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia-Franca para proteger o principal berçário da espécie no Brasil. Enviei inúmeras correspondências a órgãos internacionais como The International Whaling Commission (IWC) sede da Inglaterra e dos Estados Unidos para que esse se valesse da Pelly and Packwood-Magnuson Amendments para impedir que o Brasil, Noruega e Japão desrespeitassem decisões da IWC.
Já em relação à Farra do Boi me envolvi em todos os momentos do movimento contra o evento. Mantive contato permanente com o jornalista Dagomir Marquezzi, compareci à passeata realizada em São Paulo em 6 de maio de 1987; em 1988 fiz parte da comitiva do deputado Fábio Feldman que foi até Florianópolis e compareci à audiência com o governador Pedro Ivo; compareci à reunião no Copacabana Palace com representante da WSPA para planejar ações internacionais; ajudei na redação do material colecionado pelas entidade do Rio de Janeiro (APANDE, SOZED e APA) que moveram Ação Ordinária para proibir Farra do Boi. Enviei pareceres ao Superior Tribunal de Justiça-STF (Principalmente Ministro Francisco Rezek e Maurício Correia), quando o processo chegou à instância superior.
Jus Animalis – Qual foi sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88? Sobre a redação do redentor do artigo 225 § 1º, VII da Constituição Federal, o que nos pode dizer? E na Lei de Crimes Ambientais, dez anos depois, qual foi a contribuição da LPCA?
Edna Cardozo Dias - Tive a honra de participar durante a constituinte de vários encontros prévios promovidos pelo governo e dos vários Encontros das Entidades Ambientalistas Autônomas-ENEAA. Enviei sugestões à Comissão Provisória de Estudos Constitucionais. Na carona do ambientalismo reivindiquei a inclusão da proteção dos animais na nova Constituição durante debates públicos. Recebi grande apoio dos ambientalistas e inclusive do Deputado Fábio Feldman a quem serei grata pelo resto da vida. Recolhi várias moções de apoio junto ao legislativo e executivo e consegui, inclusive, assinatura do então governador Newton Cardoso para apoio ao texto já pronto. Estive presente na seção solene realizada na Câmara de Deputados em Brasília, dia 5 de outubro de 1987, ocasião em que o Deputado Fábio Feldmann entregou o texto do capítulo do meio ambiente ao relator Senador Bernardo Cabral. Fui convidada pelo Deputado Fábio Feldmann para representar as entidades de proteção animal, tendo sido bem recepcionada pelo Senador relator Bernardo Cabral.
A primeira vez que o tema proteção animal foi levado à Assembleia Legislativa de São Paulo durante um seminário organizado pelo deputado Oswaldo Bettio em parceria com a Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal e a Associação Protetora dos Animais São Francisco de Assis – APASFA (13, 14 e 15 de outubro de 1988). Para a inclusão do art. 32 na Lei de Crimes Ambientais, conforme relatado, desenvolvi ações diversas por mais de dez anos. As ações abrangeram atuação junto à sociedade civil em geral, as ONGs, as autoridades dos três poderes e a mídia.
Jus Animalis – Seu nome também é conhecido na área do direito ambiental desde os anos 90, quando escrevia artigos para uma coluna que assinava no periódico dirigido por Mário Viêgas, Meio Ambiente em Jornal. Fale desse outro aspecto relevante de sua atuação pessoal.
Edna Cardozo Dias - Como jornalista provisionada fui Diretora Secretária de um jornal editado pela Sociedade Ornitológica Mineira-SOM, o Meio Ambiente em Jornal, colorido em papel voucher. Nele publiquei inúmeros artigos. A coluna que eu tinha chamava-se Ecologia Legal e a primeira coletânea delas virou um livreto intitulado “Crimes Ambientais”, editado pela LPCA.
Também publiquei artigos em jornais de vários estados do país na coluna opinião, além de conceder inúmeras entrevistas. Em 1996 fui uma das apresentadoras do programa “Soltando os Bichos” apresentado na CNT Rio, produzido por Herbert Salles e Rosana Trindade. Tratava-se de uma tribuna televisiva em defesa da natureza onde eram contadas histórias e em que pessoas recebiam orientação de como exercer cidadania ambiental.
E foi essa experiência na área ambiental que me levou à publicação de outras obras, como os livros “Manual de Crimes Ambientais” e “Manual de Direito Ambiental”, ambos pela editora Mandamentos. E, ainda, “Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito”, editado pela Fórum. Minha obra mais recente foi o meu trabalho de pós-doutorado: “O Caminho de União entre o Ambientalismo e o Animalismo Brasileiros”, lançado em 2023 pelo Instituto Abolicionista Animal – IAA, na forma impressa e e-book, com traduções também para o inglês e o francês.
Jus Animalis - A obra A Tutela Jurídica dos Animais, que nasceu de sua pioneira tese de doutorado na UFMG, menciona o rumoroso caso dos Botos de Sete Lagoas, levado ao Ministério Público Federal. Fale de sua participação nessa denúncia e se, quiser, de outros casos que projetaram seu nome na advocacia animalista, na época em que quase ninguém atuava na área.
Edna Cardozo Dias - Em 1985, botos foram capturados no Rio Formoso em Goiás e levados para as cidades de Sete Lagoas e Lagoa da Prata. O caso exigiu muita mobilização, ações e entrevistas na mídia em geral. Culminou inclusive com impetração de Ação Civil Pública. O protagonista no caso foi o professor ambientalista Márcio Augelli, presidente do Grupo Tucuxi. Como o caso estava na jurisdição de Minas Gerais eu pude contribuir graças a meu bom relacionamento com o Instituto Brasileiro e Meio Ambiente-IBAMA. Em 1993, Augelli esteve em Belo Horizonte, quando entregamos ao Procurador da República pedido de instauração de Ação Civil Pública contra o IBAMA para devolução dos botos a seu habitat. Contamos com o apoio do superintendente e do biólogo Alisson Coutinho do IBAMA de Minas Gerais. Ao final saímos vitoriosos e os botos retornaram à natureza em 1984.
Também consegui a declaração da inconstitucionalidade de leis autorizando briga de galos em Salvador e no Estado do Rio de Janeiro. Graças aos inúmeros pareceres que espalhei pelo judiciário tive meu nome citado pelo ministro relator Celso de Mello do STF. Não poderia deixar de citar o Campeonato Nacional de Brigas de Galo, que 1993 se realizaria em Belo Horizonte e que foi sustado com representação da LPCA dirigida ao então Procurador do Estado de MG Dr. Jarbas Soares Júnior. Cabe também lembrar das corridas de Greyround em Belo Horizonte, que eu e Ana Maria Pinheiro conseguimos extinguir. Considero, ainda, de grande importância a minha presença no evento paralelo realizado pelas organizações sociais na Praia do Flamengo durante a RIO/92.
Jus Animalis - Sua trajetória no campo dos direitos animais virou referência no país, como escreveu a advogada Laura Cecília Braz no livro que a homenageia. Acredita que o avanço teórico que o Direito Animal vem alcançando hoje poderá favorecer outras espécies, incluindo aquelas que são subjugadas no setor científico, na produção ou nas atividades de lazer?
Edna Cardozo Dias – Sobre essa trajetória gostaria de registrar que fui palestrante do Seminário Internacional de Direito Ambiental, realizado pelo Colégio de Magistrados, na sede do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, de 9 a 11 de maio de 2001: "A proteção da fauna". Também foi a primeira vez que o debate chegou às instâncias superiores do Poder Judiciário.
Mas uma coisa é certa: tudo que envolve questões econômicas é dificultado pela concupiscência do lucro latente no ser humano. No caso da vivisseção acredito que envolve, além das verbas recebidas para pesquisa, a vaidade do mundo acadêmico e a obrigação de publicar trabalhos a fim de aumentar currículos. Esses são os principais fatores impeditivos para a extinção dessas atividades. Inclusive são os obstáculos encontrados para mudança do status dos animais no Código Civil brasileiro.
Jus Animalis - Os desafios jurídicos têm sido muitos. Basta dizer que após o STF julgar inconstitucional a lei cearense das vaquejadas, os parlamentares da bancada ruralista conseguiram aprovar uma emenda na própria Constituição Federal, que afastou a crueldade nas atividades desportivas tidas como culturais. Como vê tamanhos paradoxos legais?
Edna Cardozo Dias - Um retrocesso lamentável. E no que pese o reconhecimento da importância do Supremo Tribunal Federal em julgamentos anteriores, a meu ver, a defesa do direito à vida e ao não sofrimento deve ser priorizada em qualquer discussão ou situação que envolva direitos. Ao cotejarmos o artigo 225 (meio ambiente) da Constituição com o artigo 215 (cultura), o primeiro deve prevalecer. Cultura é unicamente aquilo que eleva o homem acima do instinto e o leva a viver em harmonia com a ética, rejeitando do passado tudo o que atavicamente o mantenha na brutalidade e na grosseria. Consideramos esses esportes uma incultura. Portanto, com todo respeito, não só lamentamos como discordamos do entendimento do colendo STF de que a Emenda Constitucional 96/17 é constitucional.
Jus Animalis - Qual sua opinião sobre as perspectivas do Direito Animal no mundo, haja vista o aumento de países que já reconhecem, em leis, os animais como seres sencientes?
A lei surge dos usos e costumes. A mudança nas leis é sinal de que a revolução consciencial já começou. Entretanto, esta mudança é incipiente. É preciso que a sociedade como um todo evolua mais no sentido de um mundo mais ético, mais solidário e mais responsável. É preciso que todas as teorias não fiquem apenas nas discussões acadêmicas e se reproduzam no mundo dos fatos. Por isso, em 2021, escrevi o livro “Advocacia animalista na prática”, que distribuí a todas as subseções da OAB/MG na expectativa de que mais advogados abracem a causa. Só então os animais alcançarão a merecida liberdade.
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