Entrevista com Daniel Braga Lourenço
“A mesma Constituição que protege de maneira importante os animais contra práticas cruéis é a mesma Constituição que fomenta a atividade agropecuária e que permite o uso de animais no âmbito de atividades desportivas e culturais. Existe, de fato, um paradoxo normativo bastante evidente.”
Daniel Braga Lourenço, autor dos livros Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas (2008) e Qual o Valor da Natureza? Uma introdução à ética ambiental (2019), é certamente um dos maiores expoentes do Direito Animal brasileiro. Afinal, sua obra, titulação acadêmica e carreira universitária falam por si. Formado em ciências jurídicas pela PUC-Rio, obteve o grau de mestre em direito pela Universidade Gama Filho e, depois, o título de doutor em direito pela Universidade Estácio de Sá. Como professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Centro de Ética Ambiental da própria UFRJ, Daniel Lourenço se tornou membro do renomado Oxford Center for Animal Ethics, distinção concedida àqueles que têm contribuído de modo significativo para promover a perspectiva ética animal em publicações, pesquisa acadêmica e ensino. Foi uma escolha merecida.
Dentre as grandes contribuições intelectuais suas cabe citar a Teoria dos Entes Despersonalizados, voltada à consideração dos animais como sujeitos de direito e que costuma ser utilizada, também, para embasar propostas legislativas que buscam maior avanço para a tutela animal em nosso país. Eis aqui um importante diferencial trazido por Daniel Lourenço em seu livro Direito dos Animais, cujo mérito maior foi o de colaborar para a construção de uma base teórica que rompe com a dogmática civilista clássica e atribui aos animais um status jurídico diferenciado, isso tudo sem afrontar o regramento constitucional vigente. Segue na mesma linha reflexiva o livro Qual o Valor da Natureza?, no qual o autor mergulha fundo na questão ecológica para trazer à tona o tema da ética ambiental e dos direitos animais, assunto que se mostra mais do que pertinente no Brasil de hoje, quase às vésperas da COP30.
Mas o prestígio de Daniel Lourenço não se resume à sua obra doutrinária, seus estudos acadêmicos ou suas iniciativas e ações animalistas. Vai muito além disso. O entrevistado que agora o Jus Animalis passa a entrevistar é, sobretudo, um tremendo boa-praça. Um homem cordial, amável, sensível, ético, que preza pelas coisas simples da vida e ama os animais. Não é à toa que dezessete anos atrás, ao se lançar escritor, ele agradeceu às pessoas que lhe apoiaram no árduo trabalho de pesquisa e, como não poderia deixar de ser, manifestou sua gratidão aos animaizinhos com os quais pôde conviver. Esta família não humana, segundo as palavras do próprio Daniel Lourenço, não apenas comprovou como os animais podem interagir conosco em níveis muito profundos, mas acima de tudo que eles fazem da nossa vida um contínuo aprendizado de amor, sinceridade, admiração, lealdade e respeito.
Jus Animalis - Sua trajetória pelo Direito, ao se formar pela PUC-Rio em 1997, revela desde cedo um acentuado interesse pelos estudos, iniciando com o tema da Personalidade Jurídica (sob orientação de Antônio Murta Filho), passando por especializações na FGV em Direito Ambiental (orientado por Oscar da Graça Couto) e Direito Internacional Econômico (orientação de Luís Roberto Barroso), até chegar aos Direitos Animais, seja pela dissertação de mestrado na Universidade Gama Filho (Direito, Alteridade e Especismo, sob orientação de Ricardo Lobo Torres) e pelo doutorado na Universidade Estácio de Sá (Concepções da Natureza em Diálogo: As Vertentes Éticas do Pensamento Ecológico, orientado por Fábio Corrêa Souza de Oliveira). Em meio a esse percurso acadêmico multifacetado, o que lhe motivou a atentar para a situação dos animais e enaltecer a ética ambiental?
Daniel Lourenço – O tema da relação homem-mundo natural sempre me interessou. Desde muito cedo sempre apreciei o contato com a natureza. Sou de uma cidade pequena, do interior de Minas Gerais, Cataguases, e minha infância foi povoada de muita aproximação com as plantas e animais. Talvez essa infância próxima da animalidade e da natureza tenha contribuído de maneira decisiva para que mais tarde projetasse uma reflexão mais crítica sobre o modo como tratamos as outras criaturas que compartilham o planeta conosco. Há, portanto, nessa aproximação temática um tanto de prazer e outro de assombro, pois da mesma forma que a natureza nos integra, nos afasta. Cada vez mais, confirmamos a noção de que somos animais e seres naturais. No entanto, ainda refutamos a condição animal. Tentamos nos afastar dela, normalmente atribuindo a nós um excepcionalismo e associando aos animais uma percepção de carência, de falta. Aos animais faltariam os elementos que estruturam a a experiência humana de mundo. Essa exclusão da animalidade do teatro da comunidade moral sempre me causou muita estranheza. Na graduação em Direito, me incomodava sobremaneira a aceitação irrestrita da atribuição do status de coisas aos animais. Isso sempre me causou muita perplexidade. Me sentia deslocado ao ver os professores e colegas de sala aceitando esse dogma de forma acrítica. Em razão desse estranhamento, fui aos poucos me interessando pela leitura de obras filosóficas. Uma das primeiras que li, ainda em 1994, foi a versão em inglês da obra "Libertação Animal", de Peter Singer. Lembro, como se fosse ontem, que a leitura do texto constituiu um verdadeiro despertar para mim, um autêntico divisor de águas. Fiquei muito impactado com a descrição das instâncias de instrumentalização dos animais e pela articulação, ainda que de maneira simples, no capítulo 1 da obra, da ideia fundamental da igual consideração moral dos animais. No dia seguinte à conclusão da leitura decidi me tornar vegetariano. Tratava-se de um imperativo ético. Desde então, passei a dedicar atenção, de maneira mais sistemática, à ética aplicada, em especial à ética animal. Sou muito grato aos meus colegas, professores e orientadores pela possibilidade do diálogo crítico acerca do tema, ainda que tenha, na maioria das vezes, encontrado pouca ressonância nas ideias que sustentava.
Jus Animalis - Ainda com os olhos voltados ao passado, poderia falar um pouco de que maneira o Direito passou a fazer parte de sua vida e direcionou seus caminhos profissionais? Depois de formado, a organização do tradicional Encontro Carioca de Direito dos Animais, ao lado de Fabio Corrêa Souza de Oliveira no início deste século, no Rio de Janeiro, parece ter sido fundamental para o avanço reflexivo do tema que mais lhe cativava. Em relação ao magistério, especificamente, como o dom de ensinar incorporou-se ao seu jeito de ser, haja vista que sua didática no ensino jurídico dos direitos animais tornou-se uma grande referência entre nós?
Daniel Lourenço – Na década de 90, quando me formei em Direito, o tema relativo aos animais era, ainda, marginal. Não ocupava a academia. Não pelo menos no campo do Direito. Havia uma dificuldade de compreensão acerca do alcance do tema e mesmo uma certa ridicularização do debate. A esse respeito, lembro que, em 2010, quando já Professor Efetivo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, propus a criação da disciplina "Direito dos Animais" como uma disciplina eletiva. No entanto, naquele momento, o colegiado do curso entendeu não haver espaço para o assunto, tendo sido sugerida sua inserção transversal no âmbito do Direito Ambiental ou por meio da criação de uma cadeira de Ética Ambiental, de cunho mais geral. Felizmente essa realidade foi sendo paulatinamente alterada. Hoje, o debate acerca do direito dos animais está consolidado e obteve legitimação e reconhecimento. Para mim foi especialmente importante ter conhecido o amigo Fábio Corrêa Souza de Oliveira, a quem sou extremamente grato pelo convívio e pelo estímulo que sempre me deu em relação à docência. Nos conhecemos em 2008, por ocasião do lançamento do meu primeiro livro, "Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas" (Sergio Fabris Editor). Essa amizade fraternal deixa frutos no campo da ética animal. Temos tentado promover conjuntamente o debate da questão na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde ambos lecionamos. Uma de nossas iniciativas é o mencionado Encontro Carioca de Direito dos Animais, realizado anualmente. Agora em outubro, lançaremos uma nova obra conjunta reunindo textos que produzimos sobre o tema ao longo de nossas trajetórias.
Jus Animalis - Na advocacia, de modo pioneiro, sua atuação animalista foi marcada por demandas inusitadas no campo da experimentação animal. Consta que em 2007, em face da resistência demonstrada pelo curso de biologia da UFRGS, você ajudou o então estudante Rober Freitas Bachinski a pleitear o direito de objeção de consciência em atividades didáticas de vivissecção, tendo o juiz federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior concedido, nessa oportunidade, a primeira medida liminar objetora no país. Anos depois fez o mesmo em face da UFRJ, defendendo os interesses da estudante de biologia Juliana Itabaiana de Oliveira Xavier. Nessa área tabu, considerando o pensamento jurídico da época e o antropocentrismo arraigado também na ciência, que lições pode tirar?
Daniel Lourenço – No caso do Rober, minha participação foi apenas indireta. Na realidade, atuei mais diretamente no caso da Juliana, onde conseguimos uma liminar no âmbito de uma objeção de consciência que movemos em face da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Juliana, na época, aluna de biologia, sentia-se desconfortável e incomodada com aulas práticas que faziam uso experimental de animais. Trata-se de um tema ainda hoje controverso. A meu juízo, avançamos pouco no sentido de realmente eliminar ou substituir o uso dos animais no campo experimental. O paradigma científico vigente aceita a utilização de animais para experiências cientificas e o direito legitima a prática, ainda que o faça com salvaguardas, por meio da Lei n. 11.794/08. Algumas iniciativas têm sido propostas, e destacaria a recente decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADI n. 5.996/AM que entendeu como constitucional lei estadual que ampliava as restrições do uso de animais para fins cosméticos. Talvez seja um começo de mudança. Ainda há um duro caminho a percorrer. A resistência é grande. Penso, inclusive, que alguns institutos jurídicos muito interessantes se comunicam com a questão animal e, em realidade, são ainda pouco estudados e trabalhados no Brasil. A objeção de consciência é um deles. Está relacionada diretamente ao tema da desobediência civil, do direito de resistência e mesmo da ação direta como formas de reação a práticas ou normas injustas. Precisamos verticalizar esse debate. Um número expressivo de animais é privado de sua liberdade e atingido em sua integridade por meio de práticas que nada os beneficia. Os princípios básicos que regem a pesquisa com animais (substituição, redução e refinamento) não parecem ser eticamente suficientes para dar conta dessa realidade.
Jus Animalis - Não se pode esquecer, também, que sua coragem em enfrentar certas barreiras do Direito ficou mais do que demonstrada quando, representando ONGs animalistas em 2011, impetrou habeas-corpus na expectativa de livrar o chimpanzé Jimmy de seu cativeiro no zoo de Niterói, onde, segundo a diretora, o animal vivia bem em uma área de 120 metros quadrados. Mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por unanimidade, denegou o pedido alegando que macaco não é pessoa e, portanto, não poderia ter acolhida a impetração. Olhando para esse julgamento nos dias de hoje, após a superveniência da Declaração de Cambridge e outros avanços incorporados na legislação de muitos países, pode-se afirmar que as coisas estão mudando?
Daniel Lourenço – O caso Jimmy foi, de fato, bastante emblemático. A utilização do habeas corpus, instrumento voltado à tutela do direito à liberdade (tipicamente de seres humanos) para animais foi um meio de provocar o Poder Judiciário para refletir sobre a condição dos animais, especialmente daqueles mantidos aprisionados em zoológicos. Sabíamos que a chance de êxito da impetração seria muito reduzida, mas, ainda assim, queríamos, por meio da utilização de uma medida na época praticamente inédita, chamar a atenção do grande público sobre a questão. Tivemos sucesso nesse ponto. A medida judicial suscitou uma controvérsia bastante grande que se mantém viva até os dias de hoje. Em que medida é razoável manter em cativeiro animais selvagens para finalidade recreativa/educacional/ambiental? É um tema de fronteira. Recentemente está em debate o destino do elefante Sandro, também mantido preso em Sorocaba-SP. Penso que deveríamos voltar a investir em medidas como o habeas corpus do Jimmy. Hoje temos um ambiente mais propício ao debate. Existem diversas ações indenizatórias propostas por animais que já ocupam o cenário judiciário brasileiro, inclusive com sucesso no reconhecimento da capacidade processual dos animais.
Jus Animalis - Em 2008 foi lançado seu primeiro livro, Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas, trabalho de fôlego que incorporou uma necessária base filosófica aos estudos jurídicos da nova disciplina que então surgia no país, o Direito Animal. Levando-se em conta que este ramo do Direito prescindia, também, da sondagem reflexiva relacionada à vida e seu valor intrínseco, independentemente de como e onde ela se manifestasse, a obra tornou-se referência aos estudiosos do tema. Sinta-se à vontade para falar desse antológico Direito dos Animais e, em especial, de sua Teoria dos Entes Despersonalizados, cujas ideias têm ajudado na construção dos novos modelos jurídicos animalistas em nosso país.
Daniel Lourenço – Na verdade a minha obra deve muito a outros autores e obras anteriores. Nesse sentido, destaco as obras pioneiras do Direito Animal no Brasil dos professores Laerte Levai e Edna Cardozo Dias. Só pudemos avançar, porque tivemos pessoas brilhantes e corajosas que abriram essa trilha para que conseguíssemos seguir adiante. No meu livro tentei colaborar para mapear o debate acerca da evolução histórica da questão animal, como também propor um caminho teórico seguro para a inserção dos animais no campo da subjetividade jurídica. O tema não é simples em termos de teoria do Direito. A tradição jurídica nunca tratou os animais como personagens ativos dessa narrativa. A sua inserção pode romper a estrutura e a coerência dessa história. Embora essa tarefa não seja exatamente simples, propus o uso do instituto dos entes despersonalizados como um caminho possível para tanto. A alocação dos animais na categoria de pessoas, com a respectiva concessão a eles de personalidade jurídica, parece ainda difícil de ser pragmaticamente concretizada, pois dependeria de uma modificação legislativa muito intensa, tomada a partir da Constituição Federal às demais normas de nosso ordenamento jurídico. A alteração do regime jurídico atual dispensado aos animais com o intuito de serem tratados como pessoas não é uma missão simples. Na verdade, parece ser um pouco menos difícil considerar que os animais, ou ao menos algumas espécies de animais, possam ser sujeitos de direito, mas na condição de entes despersonalizados. Me parece que esse caminho seria menos traumático para a tradição jurídica. Por meio dele o Direito poderia ir paulatinamente reconhecendo direitos subjetivos aos animais e preenchendo a titularidade de direitos pelos animais em consonância com os avanços civilizacionais. A ruptura da teoria dos entes despersonalizados é menos abrupta e, por isso, mais assimilável.
Jus Animalis - Coincidências à parte, o fato é que no mesmo ano do surgimento da pandemia que paralisou o planeta, sua vertente de escritor trouxe a público outra singular obra-prima: Qual o Valor da Natureza? Uma introdução à ética ambiental. Debruçando-se sobre a questão crucial de saber se natureza possui valor apenas instrumental para os seres humanos ou se ela teria valor próprio, você avança para o direito da natureza e o direito dos animais. Que contribuição esse livro traz para nossa melhor compreensão de mundo, sobretudo em relação ao agir consciente e ao respeito para com as outras realidades sensíveis?
Daniel Lourenço – Na obra Qual o Valor da Natureza? Uma Introdução à Ética Ambiental, fruto das minhas pesquisas no doutorado, procurei realizar uma espécie de taxonomia do debate moral relativo ao valor intrínseco/inerente de entes não humanos. Tentei organizar as diversas correntes filosóficas que, a partir de pontos de partida distintos e também de chegada diversos, sustentam a existência de valor próprio para além da humanidade. Essas correntes, embora aparentemente próximas, possuem tensionamentos existenciais e incompatibilidades que necessitam ser explicitadas. Falar de direitos dos animais e de direitos da natureza, por exemplo, é falar de coisas distintas. A obra, portanto, pretende ter um sentido crítico, discriminatório, no sentido de elucidar os critérios demarcatórios do valor em si provenientes de propostas ético-normativas que caminham em sentido ampliativo às correntes centradas na experiência humana de mundo.
Jus Animalis - Sua obra jurídica, enfim, distingue-se por aproximar o Direito da Filosofia, como se ambas as disciplinas precisassem andar sempre juntas para atingir suas finalidades primordiais. Afinal, falar em Justiça sem olhar para a Ética, dispor sobre a Vida sem refletir sobre a Existência ou pensar o Meio Ambiente sem verdadeiramente compreender a Natureza, talvez não seja suficiente para quem se propõe a pensar o mundo e suas grandes questões. Como a Filosofia lhe cativou e por que ela é tão importante em nossa jornada vital?
Daniel Lourenço – A questão da animalidade é essencialmente uma questão filosófica. Por mais de meio século o debate sobre a consideração moral dos animais não humanos tem mobilizado parte das reflexões da comunidade acadêmica. Como mencionamos, o crescente interesse pela temática consolidou no âmbito da Filosofia a Ética Aplicada aos Animais, também designada comumente por Ética Animal ou Ética Interespécies, e os Estudos Críticos Animais. A Antropologia, desconfortável com o correlacionismo antropocêntrico, fez surgir um núcleo de trabalhos voltados às metafísicas indígenas e à multiplicidade de naturezas possíveis, sendo factível hoje tratar da existência de um campo de investigação ligada à antropologia da natureza e mesmo de uma virada ontológica nos estudos antropológicos que passaram a incorporar diretamente a reflexão acerca da condição animal. A Literatura, por sua vez, já organiza a temática por meio da Zooliteratura e da Zoopoética e no campo do Direito se consolida, com força cada vez mais consolidada, o debate a respeito da subjetividade jurídica dos animais não humanos. Nesse sentido, esses campos do saber se entrelaçam de maneira viva, dinâmica e permanente. Não há como pensar a questão animal sem lançar mão dessas correlações e sem tratar a questão filosoficamente.
Jus Animalis - Mais recentemente, em razão de seu histórico de pesquisas e publicações na área da Ética Animal, ao defender o valor inerente a todos os seres sencientes, você se tornou membro do Oxford Centre for Animal Ethics, o que lhe permite se aproximar e interagir com outras instituições e personalidades que se dedicam, no Exterior, ao estudo dos direitos animais. O que significa, para sua biografia, ter sido escolhido para compor esse seleto grupo e o que o diálogo acadêmico além-fronteiras pode ajudar na implementação dos direitos animais em escala mundial?
Daniel Lourenço – Para mim foi motivo de muita satisfação ter sido convidado a participar do Oxford Centre. A Universidade de Oxford, uma das mais tradicionais no mundo, sempre teve um papel de destaque no que se refere ao debate da ética animal. O conhecido Grupo de Oxford foi um grupo de intelectuais associados à Universidade de Oxford no final dos anos 1960 e início dos 1970, que foi pioneiro na discussão acadêmica sobre os direitos e a libertação animal, influenciando decisivamente o desenvolvimento da ética animal. Dele participaram além do próprio Peter Singer, Tom Regan, Andrew Linzey e os Godlovitch. É sempre muito saudável esse intercâmbio de ideias e poder fazer agora parte desse grupo. O Oxford Centre realiza anualmente as Summer Schools e incentiva publicações e o livre debate sobre a questão animal, congregando pesquisadores do mundo inteiro com reconhecida produção na área.
Jus Animalis – O Brasil, apesar do fortalecimento do discurso pelos direitos animais, convive com situações paradoxais tristes, em meio a retrocessos jurídicos e casos de crueldade extrema. O modelo econômico perverso representado pelo embarque marítimo de bovinos destinados à exportação, a volta dos rodeios em ritmo frenético e a morte, por tortura, de um cavalo cujas patas foram decepadas pelo montador, são exemplos revoltantes do que ainda acontece aqui. Pela sua experiência pedagógica especializada, o que pode ser feito para reverter isso? E no caso do cavalo de Bananal, que chocou a sociedade, não seria o momento de o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais ser alterado para aumentar a pena nos delitos cometidos também contra os equídeos, animais domésticos habitualmente utilizados em atividades de tração e montaria, a fim de que os malfeitores possam ser presos e respondam a processo?
Daniel Lourenço – A mesma Constituição que protege de maneira importante os animais contra práticas cruéis é a mesma Constituição que fomenta a atividade agropecuária e que permite o uso de animais no âmbito de atividades desportivas e culturais. Existe, de fato, um paradoxo normativo bastante evidente. Ao mesmo tempo em que caminhamos, a duras penas, para conscientizar a população e as nossas instituições acerca da relevância da proteção dos animais, não conseguimos ainda, de maneira clara, modificar o estatuto jurídico dos animais. Volta e meia somos assombrados por casos de absoluto horror, como foi o lamentável e triste episódio envolvendo o cavalo de Bananal. Penso que, de fato, tal como ocorreu em um primeiro momento com cães e gatos, que motivaram a majoração da sanção penal no âmbito do crime de maus-tratos, faz-se necessário rever o tipo penal para que sejam aumentadas as sanções para condutas abusivas também para outros animais, como é o caso de equídeos, bovinos, suínos, aves, e mesmo as situações que envolvem os animais silvestres. Em relação a essas espécies, a pena atual é excessivamente branda e não cumpre, com isso, a função essencial de prevenção geral do delito. Para além dessa importante constatação, também penso ser fundamental a discussão sobre a incorporação dos maus-tratos na forma culposa. Atualmente o crime de maus-tratos é punido somente na modalidade dolosa, deixando de lado, com isso, situações de grande dano aos animais derivadas de condutas negligentes, imprudentes ou imperitas.
Jus Animalis - Sabe-se que nosso equilíbrio interior, em meio a tantas lutas e realizações cotidianas, também necessita de atividades simples ou prazerosas. E para encerrar esta conversa com leveza, tratemos agora de coisas amenas (mas não menos importantes) que lhe motivam. Pode ser sobre uma outra paixão sua, a música. Conte aos leitores do Jus Animalis como o blues e o rock and roll lhe tocaram a alma e qual foi o papel de Elvis Presley na construção dessa ponte encantada cuja linguagem sonora é capaz de nos aproximar da arte e do belo. Seu exemplo de vida, acredite, é a melhor prova disso.
Daniel Lourenço – Gostaria de agradecer muito a delicadeza e a gentileza da entrevista. Muito me honra ter sido entrevistado por Laerte Levai, amigo tão generoso, gentil e central na luta pelo direito dos animais. Nutro pelo Laerte um sentimento de admiração e reconhecimento. Para mim, a vida só tem sentido a partir da construção dessas relações de afeto e carinho. A arte em geral, e no caso específico, a música, é uma forma de possibilitar o contato com essa dimensão do sensível, do belo, do indizível. O blues e o rock representam para mim uma aproximação com esse universo. Quando pequeno, lembro de duas experiências que me marcaram muito. Uma delas foi quando minha mãe, retornando de uma viagem, me presenteou com um vinil duplo intitulado "Elvis, o ídolo imortal". Ouvir naquela ocasião o disco me desestruturou e até hoje tenho, pelo "rei do rock", uma relação de afetuosidade quase nostálgica. Lembro também de outra experiência marcante, indiretamente musical. Também quando ainda criança, lembro de me aproximar de um cavalo negro. Pequeno diante da beleza do animal, olhando-o de baixo para cima, fiquei perplexo, em estado de assombro e genuíno encantamento pela grandiosidade daquele ser que se colocava diante de mim, quase divino. Parece que posso sentir até hoje o calor do seu hálito e seu olhar majestoso. Os sons que produzia com os suspiros e relinchos eram para mim, melodiosos. A música está em tudo. Está nos pequenos sons, e mesmo no silêncio. Que por meio dela possamos escutar e saber ouvir também a natureza e os animais.
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