Um passo à frente e dois atrás: o desafio da família multiespécie na ColÔmbia
Em 2019, uma juíza da Primeira Vara Criminal do Circuito de Ibagué protegeu os direitos à saúde, vida e integridade de Clifor, um cão que não recebeu um medicamento essencial para o seu tratamento médico, violando assim dois dos princípios da Lei 1751 de 2015, uma lei estatutária de saúde, direito fundamental. Seu artigo 6º dispõe sobre os princípios da continuidade e oportunidade, que foram violados com relação a um dos membros de uma família multiespécie e que, graças à ação tutelar interposta por sua família, pôde continuar com o seu tratamento, garantindo, assim, seu direito à saúde e à uma família não concebida por laços de sangue estreitos, mas por laços socioafetivos.
No meu livro “Os animais como sujeitos de direitos: uma categoria jurídica em disputa”, dediquei um capítulo inteiro ao conceito e à origem da família multiespécie, que remonta ao antigo Egito, onde ocupavam um lugar importante na família, e a outras culturas que construíram cemitérios para os familiares não humanos. Falei também da importância que adquiriram, o que levou a que o seu bem-estar seja atualmente protegido através de fideicomissos e legados que lhes são confiados por um indivíduo ou uma organização, para garantir a sua qualidade de vida após a morte do seu familiar humano.
Outras questões abordadas no meu trabalho foram as disputas de custódia e visitas de animais em divórcios e separações, que, através de diferentes casos, mostraram que os tribunais oscilaram entre tratá-los como coisas e considerá-los como seres vivos cujos interesses superiores, comparáveis aos de um menor, devendo ser incluídos na análise do estilo de vida, condições de trabalho, situação econômica e vínculo desenvolvido de cada membro do casal, a fim de conceder a custódia, ordenar o direito de visita e o pagamento de pensão alimentícia.
Este ano, no dia 30 de abril, o Décimo Primeiro Tribunal de Família de Cali, através do Auto 634, decidiu admitir uma ação como assunto de família, (de acordo com o número 14, art. 21 do Código Geral de Processo (C.G.P. ) por meio de procedimento sumário verbal, artigo 390, n. 7 do mesmo código), mas como direito de "posse de animais de estimação, e não de custódia, como inicialmente apresentado por Daniel Mauricio Londoño, contra a sua ex-companheira com quem tinha uma união conjugal de fato, solicitando a custódia de Milo, um macho da raça Border Collie que ele considera seu filho.
Segundo este tribunal, a analogia com a guarda dos filhos humanos não é aplicável "apenas com base na afirmação do requerente" de que este é o laço que os une. Infelizmente, apesar de o argumento do autor se centrar no fato de Milo fazer parte de sua família, o tribunal optou por este procedimento, porque ele tinha provado a sua propriedade através de um contrato de venda de animais. Desta forma, baseou-se na ambiguidade do tratamento dado aos outros animais pelo Código Civil colombiano, art. 655, que os classifica como bens móveis, semoventes, contrariamente ao conceito de seres sencientes, como defende Gary Francione há muitos anos.
O juiz sublinhou que, como o "animal de estimação" foi adquirido durante a união conjugal, os litígios sobre a "propriedade" destes "bens" são da competência do juiz de família (art. 22.º, n.º 16 do C.G.P.). Explicou também que, apesar de ser louvável a decisão do Tribunal de Bogotá do ano passado que defendeu a posição de tratar os animais como dependentes da tutela do requerente para o seu cuidado, tal como uma criança humana, o vazio normativo existente em relação à família multiespécie na Colômbia impede a aceitação, tanto na jurisprudência como na sociedade, do fato de que, para muitos de nós, incluindo eu própria, exercemos a maternidade/paternidade multiespécie com absoluta seriedade e responsabilidade, para além da caricaturização destes laços afetivos.
O tom, a linguagem utilizada e o apego a categorias jurídicas erradamente atribuídas a seres vivos como os outros animais, impedem o avanço do direito enquanto produto social e petrificam-no ao agarrarem-se à mitologia jurídica da modernidade que o Maestro Paolo Grossi sabiamente questionou.
Por último, é importante esclarecer que aqueles de nós que defendem a descoisificação jurídica e social dos outros animais não o fazem com uma fé cega nas instituições que muitas vezes desiludiram os animais humanos, mas conscientes das suas deficiências e tentando aproveitar as fissuras no campo jurídico como mais uma arena de luta, e que não substitui outras formas como a libertação direta, o ativismo acadêmico e a educação para reconhecer estes seres como iguais em dignidade, embora diferentes em atributos de acordo com a espécie a que pertencem.