Os pioneiros do(s) Direito(s) dos Animais em Portugal Parte I de II – António Maria Pereira, o parlamentar visionário
“A causa dos animais é mais importante para mim
do que o receio de ser ridicularizado.”
“(…)falamos uma linguagem universal quando clamamos
por misericórdia e justiça para os animais.”
(Émile Zola)
Em 1896, Émile Zola proferiu as luminosas palavras acima citadas, ao receber da Sociedade Protetora dos Animais francesa um diploma honorífico pela defesa eloquente da causa animal. Dois meses antes, o célebre escritor francês tinha publicado um longo texto na página do jornal “Figaro”, intitulado “o amor dos animais”, que, contrariamente às suas expetativas, lhe valeu um efusivo apoio popular, traduzido em mais de duzentas cartas que lhe foram dirigidas.
Um século depois, em 1995, a República Portuguesa aprovava finalmente a primeira lei de proteção dos animais de iniciativa nacional e parlamentar [1], a histórica Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, ainda hoje em vigor após sucessivas alterações [2], também conhecida por “Lei de Proteção dos Animais (LPA)”.
António Maria Pereira foi o primeiro Deputado subscritor do projeto de lei (PJL) que está na génese da LPA, e ao qual coube o ónus de o apresentar em sede de discussão no plenário parlamentar.
O eminente Deputado, na altura com 71 anos de idade e um dos advogados mais prestigiados do país, não se poupou em acutilância na defesa de um propósito de justiça elementar que, como frisou, se arrastava na Assembleia da República há 10 anos, ao longo de três legislaturas, esbarrando com entraves e adiamentos sucessivos e deliberados.
O objetivo inicial da iniciativa era particularmente ambicioso, refletindo os avançados horizontes do seu autor: aprovar um código dos direitos dos animais, de consulta acessível, que reunisse, também, toda a legislação vigente e dispersa por múltiplos diplomas.
Mercê das críticas que recebeu, anunciando uma mais do que provável rejeição, o texto originário plasmado em 128 artigos deu lugar a um PJL-quadro sob o n.º 530/VI, contendo uns modestos doze artigos.
Ainda assim, António Maria Pereira e os restantes subscritores, aí se incluindo nomes tão ilustres da História parlamentar portuguesa e de diversificada proveniência política como Narana Coissoró, Almeida Santos, Pacheco Pereira, Rui Machete e José Lello, entre outros, tiveram que fazer novas cedências aos interesses instalados para conseguirem fazer aprovar alguma proteção normativa para os animais, em geral.
O PJL inicial acolhia, desde logo, no seu artigo 1.º, o princípio do não sofrimento injustificado, estabelecendo que “são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal”. A redação final aprovada, e ainda hoje vigente, adota uma definição afunilada do conceito de “violências injustificadas”, exigindo-se que o sofrimento seja “cruel e prolongado” e que as lesões sejam “graves”. A inclusão dos referidos requisitos qualitativos não foi ingénua, dificultando, ou mesmo comprometendo, a aplicação da norma, atentas as exigências do princípio da legalidade.
Por outro lado, excluíram-se do elenco de proibições previsto no artigo 2.º, os atos de praticar a caça a cavalo, de criar raposas ou outros animais com o objetivo de posteriormente os caçar, de organizar corridas de cães com lebres vivas, e de organizar provas de tiro a animais vivos [3].
Outrossim, eliminou-se a norma que proibia as touradas à espanhola, implicando a morte do touro na arena [4] e a imposição do abate imediato dos touros após a lide, outra medida inovadora que só duas décadas mais tarde, em 2014, seria adotada, ainda que com limitações, pelo regulamento tauromáquico [5]. Ainda no capítulo da tauromaquia, suprimiu-se a proibição de realizar touradas em recintos improvisados e a norma que vedava a assistência a touradas por crianças com menos de 14 anos, sendo esta uma demanda prioritária de proteção da integridade mental e emocional das crianças e que tarda a merecer a devida atenção dos decisores políticos nacionais [6].
O texto inicial do PJL previa igualmente a obrigatoriedade de identificação permanente de cães e gatos, uma medida fundamental de combate ao abandono, que, na altura, também foi descartada, só sendo executada cabalmente através do DL n.º 82/2019, de 27 de junho, diploma que aprovou o Sistema de Informação de Animais de Companhia.
Por fim, assinala-se, como a mais lamentável desvirtuação da proposta inicial, a exclusão da parte concernente ao regime sancionatório aplicável.
O texto inicial criminalizava as violências contra animais aí previstas, e, bem assim, a infração a normas comunitárias e internacionais de proteção de animais, estatuindo pena de prisão até seis meses ou pena de multa pelo mesmo período. Previa-se que a morte injustificada ou a inflição de dor ou sofrimento consideráveis e injustificados a animal vertebrado fosse punida com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 360 dias, sendo a reincidência agravada para o dobro e a negligência atenuada para metade dessa bitola. Se a vítima fosse um animal de companhia, era aplicável pena de prisão de um a dois anos.
Contudo, a redação aprovada limitava-se, laconicamente, a remeter as sanções para “lei especial” a (nunca mais) aprovar…como é habitual nesta República de autoproclamados “brandos costumes”, essa ansiada “lei especial” nunca se deu a conhecer. Tal clamorosa omissão e o embaraço político daí resultante foram resolvidos, em 2014, de uma assentada, com a misericordiosa supressão da norma de remissão [7].
Foram necessárias quase três décadas para dotar a infortunada LPA de um regime sancionatório, ainda que contraordenacional, através da Lei n.º 6/2022, de 07 de janeiro.
A epopeia legislativa aqui sumariamente descrita é sintomática de um país atavicamente hesitante na evolução ética das suas práticas e concedente aos interesses antagónicos dominantes. Mas também é representativa de um conjunto de ilustríssimos combatentes por uma tão nobre causa de justiça para com os outros animais. António Maria Pereira liderou essa demanda, ignorando os opositores que o tentaram ridicularizar, desarmando-os, com elevação, e fazendo aprovar a primeira LPA de origem parlamentar.
O seu legado vai, porém, muito além, desse contributo, como aqui se procurou assinalar, a partir dos trabalhos parlamentares consultados, que evidenciam em António Maria Pereira um visionário comprometido com a justiça, que antecipou soluções normativas vindouras.
São suas as seguintes palavras dirigidas aos seus pares, aquando da apresentação do projeto de LPA: “A proteção aos animais é, hoje, um dado irreversível da cultura dos povos, em particular da cultura ocidental. (…) É uma questão cultural de ordem ética que está em causa”.
Por tudo isso, e muito mais que ficou por registar, importa, hoje, como antes, prosseguir a obra inacabada, mas decisiva, de António Maria Pereira [8].
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[1] Várias tentativas anteriores no mesmo sentido foram frustradas. Em 1877, um grupo de Deputados, entre os quais Carlos Testa e Manuel Pinheiro Chagas, apresentaram um projeto de lei (PJL) com vista à proteção dos animais, que foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas não chegou a ser discutido e aprovado na Câmara dos Pares do Reino, requisito para conclusão do processo legislativo.
Logo após a instauração da República, em 1911, nova iniciativa foi desencadeada junto da Assembleia Nacional Constituinte, através de um PJL apresentado pelo Deputado Fernão Boto Machado, também subscritor de um outro PJL que visava a abolição das touradas. Naquele diploma, previa-se e punia-se como crime os “maus tratos” contra animais, aí se incluindo os animais domésticos e quaisquer mamíferos e aves. Considerava-se ação maltratante a que causasse deliberadamente “sofrimentos que a necessidade absoluta não justifique”, designadamente, a “ação violenta.que tenha por fim causar aos animais sofrimentos, dores ou torturas.desnecessárias e injustificáveis, por mero divertimento e malvadez ou para conseguir deles esforços visivelmente superiores às suas forças, ou, ainda, para lhes exigir trabalho de que, por natureza, sejam incapazes”. De registar, ainda, que, tratando-se de animal objeto de propriedade, previa-se o concurso real dos crimes contra animais e contra a propriedade. A essas iniciativas parlamentares, seguiram-se outras com o mesmo desiderato e destino, nenhuma tendo chegado a ser aprovada. É, porém, de notar, para além da coragem progressista dos referidos protagonistas, a consciência de então sobre a capacidade de sofrimento dos animais e a necessidade de erradicar a violência injustificada.
Já por iniciativa do Governo, em 1919, foram aprovados os decretos n.ºs 5650 e 5864, visando reprimir a violência contra animais. O primeiro diploma citado declarava como punível, no seu artigo 1.º, “toda a violência exercida sobre os animais”, contudo apenas sancionava as agressões públicas a animais domésticos (punidas com multa e, em caso de reincidência, com prisão) e o emprego, em público, de animais debilitados, feridos ou doentes (punido com multa). O segundo diploma a que acima se aludiu veio concretizar o conceito de “violência” enunciado no artigo 1.º do decreto n.º 5650, estabelecendo um elenco de comportamentos típicos, designadamente, entre outros, os atos de “espancar animais”, “oprimir animais com trabalho excessivo”, “obrigar ao trabalho animais doentes ou feridos”, “apedrejar animais”, “abandonar na via pública animais velhos ou doentes”; infelizmente, omitiu-se, deliberadamente ou por (improvável e reiterada) incúria, a sanção aplicável a essas condutas.
Por outro lado, por força da adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, em 1986, o ordenamento jurídico nacional vinha recebendo normas de proteção de animais utilizados em contextos económicos. As iniciativas legislativas comunitárias, por via de diretivas, foram sendo débil e tardiamente complementadas pelos governos nacionais, como resulta patente dos diplomas de transposição.
Já no plano internacional, entre outras convenções aprovadas no seio do Conselho da Europa visando a proteção dos animais, Portugal tinha ratificado, em 1993, a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, de 1987. Contudo, as normas de execução dessa Convenção só foram aprovadas, entre nós, quase uma década depois, através do DL n.º 276/2001, de 17 de outubro.
[2] Designadamente, por força da Lei n.º 6/2022, de 07 de janeiro, que representa a mais substancial alteração ao texto originário, mediante a inclusão de um regime sancionatório. A citada lei teve origem num projeto de lei apresentado pelo partido animalista e ambientalista Pessoas-Animais-Natureza (PAN).
[3] Só recentemente, através da citada Lei n.º 6/2022, se conseguiu mitigar, ainda que parcialmente, a injustiça dessas exclusões, aditando-se ao elenco de proibições o ato de “utilizar pombos como alvo na prática desportiva do tiro ao voo, incluindo treinos e provas”.
[4] Mais tarde, através da Lei n.º 19/2002, de 31 de julho, aditou-se à LPA a proibição de realizar qualquer espetáculo que implicasse a morte do touro na arena, com a lamentável exceção do que designou, com pompa eticamente desajustada, por “evento histórico”, aí se inscrevendo as tradições locais ininterruptas nos, pelo menos, 50 anos anteriores à data de entrada em vigor dessa lei (ou seja, 05-08-2002). Foi a “solução política” encontrada para calar as vozes denunciantes de eventos com touros de morte e o embaraço pela clamorosa inércia dos agentes de fiscalização nos locais dessas práticas populares obstinadas, casos de Barrancos e Monsaraz.
[5] Referimo-nos ao regulamento tauromáquico aprovado pelo DL n.º 89/2014, de 11 de junho. Aí se prevê, nas disposições conjugadas do artigo 32.º, que, nos espetáculos tauromáquicos realizados em praças de touros fixas, os animais lidados cuja carne não se destine ao consumo humano sejam objeto de occisão imediata, nos curros. Se o destino for o consumo humano, os animais lidados em praças fixas deverão ser sacrificados em sala de abate (aplicável apenas às praças de touros que sejam construídas ou sofram obras de remodelação após a entrada em vigor desse diploma). Não existindo sala de abate ou, nas situações de animais lidados em praças de touros ambulantes, os mesmos devem ser encaminhados para matadouro e abatidos no período máximo de cinco horas, a contar do fim do espetáculo. Como é do conhecimento geral, a exigência de abate nesse período, que não é alvo de fiscalização, é amplamente infringida, sendo os animais abatidos, em regra, muito para além das cinco horas.
[6] O DL n.º 23/2014, de 14 de fevereiro, que aprova, entre outras matérias, o regime de classificação etária de espetáculos prevê que os espetáculos tauromáquicos se destinam a “maiores de 12 anos”. Contudo, alguns setores vêm pugnando pelo caráter meramente orientativo dessa classificação. O que é certo é que as praças de touros continuam a ser frequentadas impunemente por crianças de todas as idades. Em 2014 e 2019, o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas instou Portugal a fixar em 18 anos a idade mínima para participação e assistência a eventos tauromáquicos, devendo afastar as crianças e os jovens da “violência da tauromaquia”. Em 2021, o Governo, satisfazendo uma exigência do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), aprovou um decreto-lei que aumentou para maiores de 16 anos a idade de acesso a espetáculos tauromáquicos, diploma que, após meses a aguardar promulgação pelo Presidente da República, acabou por ser devolvido ao Governo, por motivos que se desconhecem e que Marcelo Rebelo de Sousa não tornou públicos.
[7] Por ironia, foi a Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, a mesma que criminalizou os maus tratos e o abandono de animais de companhia, que eliminou essa norma de remissão.
[8] António Maria Pereira faleceu a 28 de janeiro de 2009, a escassos dias de completar 85 anos de idade. Ficará para sempre associado à intransigente defesa dos direitos humanos, quer antes, quer depois do 25 de abril de 1974, e dos direitos dos animais, recebendo por este último contributo o epíteto de “pai dos direitos dos animais em Portugal“.