A zoopolítica e o princípio da cidadania animal

Os direitos fundamentais de 4ª dimensão são os direitos fundamentais dos seres não-humanos sencientes, caracterizando-se, em essência, pela titularidade não-humana. Têm, por isso, uma natureza material mesclada e híbrida, no sentido de reunir – para conferir a necessária densidade ao direito fundamental à existência digna – direitos individuais, sociais e transindividuais, distribuídos, no caso dos animais, de acordo com a sua classificação ontológico-normativa, a qual reflete o grau de dependência dos animais para com os humanos e, consequentemente, a sua vulnerabilidade.

De tudo isso é imprescindível admitir que os interesses animais não podem deixar de ser incluídos nas discussões políticas que os afetem, especialmente, por expresso comando constitucional, o bem-estar dos habitantes animais nas cidades (art. 182, Constituição). 

Essa conclusão nos permite falar, especialmente em relação aos animais domésticos – os que convivem em interação e dependência diretas com os humanos – em direitos de cidadania animal, como direitos inclusos nessa nova dimensão da fundamentalidade jurídica, os quais “refletem obrigações positivas que temos em virtude de termos trazido animais domesticados para a nossa comunidade, assumindo assim a responsabilidade de (re)moldar a nossa sociedade coletiva para acomodar esses animais de forma justa.”[1]

Por essa razão, a concepção política do Estado transita para uma nova configuração, pós-humanista e zoopolítica.

A expansão pós-humanista no mundo jurídico – com o reconhecimento expresso da perspectiva zoopolítica – já consta de algumas leis municipais brasileiras.

Quando tratamos, aqui no Jusanimalis, do princípio da educação animalista ou animalitária, dissemos que o art. 2º, III, d, da Lei 3.917, de 20 de dezembro de 2021, do Município de São José dos Pinhais/PR, ao contemplar o referido princípio, ressaltou que um dos objetivos da pedagogia animalista é enaltecer as “práticas de vivência e convivência mais éticas, pacíficas e solidárias, dentro de uma perspectiva multiespecífica, zoopolítica e não-especista”.

Outros municípios também se declararam zoopolíticos, como Juazeiro do Norte/CE (Lei 5.327/2022, art. 2º, III); Juranda/PR (Lei 2.521/2023, art. 2º, III); Vila Flores/RS (Lei 2.614/2023, art. 2º, III); Feliz/RS (Lei 4.000/2022, art. 2º, III); Valinhos/SP (art. 2º, III); e Campina Grande/PB (art. 5º, IV).

Essa nova perspectiva na concepção dos fins do Estado conduziu ao princípio da cidadania animal, catalogado pela primeira vez, doutrinariamente, como princípio exclusivo do Direito Animal, em nosso livro Introdução ao Direito Animal, publicado em fevereiro de 2025.[2]

Esse novo princípio já foi positivado na legislação infraconstitucional brasileira.

O art. 1º-A, IV, do Código Estadual de Proteção aos Animais, de Pernambuco, introduzido pela Lei 18.031/2022, define o princípio da cidadania animal como uma determinação no sentido de que “os interesses dos animais, como habitantes das cidades, devem ser levados em consideração pelas leis e outros atos normativos que possam impactá-los.”

A lei pernambucana buscou inspiração na Lei 3.917/2021, do Município de São José dos Pinhais/PR, primeira lei brasileira a catalogar, expressamente, o princípio da cidadania animal, com essa definição normativa: “os interesses dos animais, vertebrados e invertebrados, como habitantes das cidades, devem sempre ser levados em consideração nas leis municipais que possam impactá-los.”

Além da lei do Estado de Pernambuco, as outras leis municipais que se declararam zoopolíticas, também contemplaram o princípio da cidadania animal, seguindo o paradigma são-joseense (Juazeiro do Norte/CE [Lei 5.327/2022, art. 2º, IV]; Juranda/PR [Lei 2.521/2023, art. 2º, IV]; Vila Flores/RS [Lei 2.614/2023, art. 2º, IV]; Feliz/RS [Lei 4.000/2022, art. 2º, IV]; Valinhos/SP [art. 2º, IV]; e Campina Grande/PB [art. 5º, V]).

Percebe-se, claramente, pela dicção dos dispositivos normativos que já contemplam, expressamente, o princípio da cidadania animal, que, quando se fala em interesses dos animais, fala-se em animais como habitantes das cidades.

Esses dispositivos legais revelam que o princípio da cidadania animal, ainda que este deite raízes no art. 225, § 1º, VII, da Constituição, de onde emanam a regra da proibição da crueldade e o princípio da dignidade animal, tem seu fundamento bem encaixado no art. 182 do texto constitucional, o qual, ao tratar da política urbana, estabelece que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (grifos nossos).

Nesse contexto, o art. 182, interpretado à luz do art. 225, § 1º, VII, e conectado com o art. 1º, II, todos da Constituição, estabelecem os fundamentos constitucionais do princípio da cidadania animal.

Como bem deixam claro a lei pernambucana e as leis municipais citadas, os animais também são habitantes das cidades, pelo que o seu bem-estar deve ser considerado nas políticas de desenvolvimento urbano (art. 182, Constituição).

Em outras palavras, animais, como habitantes das cidades, têm interesse nas políticas que possam, direta ou indiretamente, impactar a sua qualidade de vida e a sua dignidade própria. É nesse sentido que deve ser interpretado o princípio da cidadania animal: os interesses animais devem ser levados em consideração nas decisões políticas, sejam legislativas, sejam administrativas.

No livro Zoopolis, Sue Donaldson e Will Kymlicka, ao trabalharem a distribuição de direitos animais, de acordo com os parâmetros da teoria política, afirmam que “a melhor maneira de ver alguns animais é como concidadãos de nossa comunidade política, cujos interesses têm peso na hora de determinar o nosso bem coletivo”.[3]

O estado de coisas a ser promovido pelo princípio da cidadania animal é a consecução de um Estado Zoopolítico, em que os interesses animais sejam considerados e levados a sério quando das decisões políticas, em seus variados palcos de manifestação, sobretudo na elaboração de leis e de outros atos normativos.

Em termos de eficácia jurídica, percebe-se que o princípio da cidadania animal tem, como primeiros destinatários, os parlamentares de todos os níveis federativos, os quais não podem produzir leis que impactem os animais, sem levar em consideração o interesse destes.

Mas, evidentemente, o princípio também é dirigido à Administração Pública e ao Poder Executivo, além das agências estatais e paraestatais, os quais também são obrigados a produzir decretos e outros atos normativos levando em consideração os interesses animais, além de estabelecer parâmetros de bem-estar animal nas licitações e contratos administrativos.

Portanto, não se pode deixar de considerar os animais, como habitantes das cidades, na elaboração dos planos diretores das cidades (art. 182, § 1º, Constituição e art. 40, § 4º, Lei 10.257/2001), nos zoneamentos ambientais (art. 9º, II, Lei 6.938/1981; art. 4º, III, c, Lei 10.257/2001), no Código de Posturas e, também, na própria Lei Orgânica municipal.

Pragmaticamente, a realização do princípio da cidadania animal exige conexão com o princípio da participação comunitário[4], pelo qual serão as entidades de proteção animal os principais responsáveis por dar voz aos animais no debate político.

Não seria necessário dizer, mas é melhor deixar claro, que o princípio da cidadania não implica o direito político de votar ou de ser votado para animais. Animais não detêm essa capacidade política porque, civilmente, são absolutamente incapazes e, portanto, “incapazes de entender as plataformas políticas dos diferentes candidatos ou partidos.”[5] O que o princípio comanda é, de fato, a participação política dos animais[6], por meio de seus representantes adequados.

Mas, considere-se, como o fazem Donaldson e Kymlicka, que os próprios animais, “com sua presença, são agentes de mudança. Não são agentes deliberados, mas são agentes – levam suas vidas, fazem as coisas que fazem – e, como essa atividade se exerce no âmbito público, serve de catalisador para a deliberação política.”[7]



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Referências bibliográficas

[1] DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoopolis: a political theory of animal rights. New York: Oxford University Press, 2011, p. 129, tradução nossa.

[2] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal: a teoria das capacidades jurídicas animais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025, p. 119-122.

[3] DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will.Zoopolis: una revolución animalista.Tradução: Silvia Moreno Parrado. Madrid: Errata Naturae, 2018, p. 103, tradução nossa.

[4] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal: a teoria das capacidades jurídicas animais, cit., p. 130-141.

[5] DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoopolis: una revolución animalista, cit., p. 270.

[6] DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoopolis: una revolución animalista, cit., p. 200-206.

[7] DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoopolis: una revolución animalista, cit., p. 203.

VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR

Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFPR e da UFPB (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

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