Indenização a animal vítima de maus-tratos: Análise jurídica do caso Tokinho
A evolução do Direito Animal no Brasil tem se consolidado como uma das expressões mais relevantes do amadurecimento ético e jurídico da sociedade contemporânea, e o que antes era invisível agora ganha espaço nos tribunais: os animais começam a ser reconhecidos não só como seres sencientes, capazes de sentir dor e prazer, mas também como sujeitos de direitos. Esse movimento reflete a maneira como a Justiça interpreta a dignidade da vida de animais não humanos.
Neste sentido, o Judiciário deixa de tratá-los unicamente como bens patrimoniais para reconhecer que, como parte integrante da vida e da biodiversidade, os animais possuem valor intrínseco e devem ser protegidos não apenas pelo interesse humano.
Casos emblemáticos envolvendo maus-tratos, guarda, adoção e indenizações vêm mostrando que o Direito Animal está deixando de ser uma promessa normativa para se tornar uma realidade judicial. Trata-se de uma conquista civilizatória, que projeta um futuro mais justo, inclusivo e ético — não apenas para os humanos, mas para todos os seres que compartilham este planeta.
Um dos marcos mais expressivos dessa mudança é o recente caso “Tokinho”, um cão vítima de maus-tratos, que recebeu indenização por danos morais e materiais em seu próprio favor.
O crime ocorreu em junho de 2023, em que um homem de 25 anos foi registrado por uma câmera de monitoramento agredindo o animal a pauladas, em Ponta Grossa, Paraná. O vídeo foi amplamente divulgado nas redes sociais e a comoção pública gerada pelo caso foi acompanhada de uma importante resposta do Judiciário: o agressor foi condenado a pagar uma indenização de R$ 820 por danos materiais e R$ 5 mil por danos morais diretamente para o animal, valor que será utilizado exclusivamente para garantir seu bem-estar e cuidados futuros. A decisão, proferida pela juíza de Direito Poliana Maria Cremasco Fagundes Cunha Wojciechowski, da 3ª vara Cível de Ponta Grossa, reconhece o animal como vítima e titular do direito violado, e não apenas como reflexo de um dano sofrido por seu tutor.
O juízo, ao analisar o pedido, reconheceu a legitimidade de Tokinho para integrar o polo ativo da demanda, ao lado de seus representantes legais, fundamentando-se na premissa de que "os animais, enquanto sujeitos de direitos subjetivos, são dotados da capacidade de ser parte em juízo (personalidade judiciária), cuja legitimidade decorre não apenas do direito natural como também do direito positivo estatal". [1]
Antes da decisão em favor de Tokinho, em setembro de 2023, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmou uma sentença que reconheceu o direito de dois cães, Tom e Pretinha, a receberem indenização por danos morais decorrentes de maus-tratos. Essa foi a primeira vez que o Judiciário brasileiro reconheceu o direito animal à reparação por danos morais.
Esses precedentes representam significativo avanço no campo do Direito Animal, cuja base jurídica vem se fortalecendo ao longo dos anos. A Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), que previa pena de 3 meses a um ano de detenção e multa para quem praticasse abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilações em animais, foi alterada em 2020 pela Lei nº 14.064/2020, conhecida como “Lei Sansão”, que aumentou a referida pena (porém apenas para crimes contra cães e gatos), estabelecendo reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição de guarda.
O avanço agora é a consolidação do entendimento de que os próprios animais sejam reconhecidos como sujeitos passivos deste delito, vítimas diretas e indenizáveis, algo que já é defendido há anos por juristas, porém ainda tema de divergências. Apesar de a proteção contra a violência aos animais ter sido incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, na esfera cível a possibilidade de um animal figurar como parte autora em uma ação judicial ainda gera controvérsias e debates jurídicos.
Isso ocorre porque o Código Civil ainda classifica os animais como "coisas móveis semoventes", conforme o art. 82, tratando-os como propriedade e desprovidos de direitos individuais, sendo contemplados apenas quando pleiteados por terceiros, ou seja, seus donos. Segundo o Código, os animais não possuem a capacidade, por exemplo, de processar indivíduos em busca de ressarcimento financeiro, como uma indenização. Desta forma, a inclusão de Tokinho como parte autora decorreu da compreensão de que os animais devem ser tratados como sujeitos de direito, dotados de personalidade jurídica.[2]
E a destinação da indenização ao próprio Tokinho pelo Judiciário demonstra essa sensibilidade emergente. O valor não será revertido ao Estado, tampouco ao tutor, mas sim direcionado às necessidades do animal, como tratamentos médicos, alimentação, acompanhamento comportamental e demais cuidados essenciais à sua recuperação. Trata-se de uma reparação voltada ao não humano que foi diretamente atingido em sua integridade física e emocional.
O Judiciário brasileiro começa, ainda que tardiamente, a acompanhar o entendimento consolidado pela ciência, pela ética e pela consciência social de que os animais não são meras coisas. São vidas que importam, que sofrem e que devem ser protegidas. O caso Tokinho é, sem dúvida, um divisor de águas. E, espera-se, apenas o início de uma nova era em que a justiça também se volta àqueles que não têm voz, mas que têm direitos.
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Referências bibliográficas
[1] TJ/PR: Cão "Tokinho" será indenizado pelo ex-tutor por maus-tratos. Jus Animalis. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/noticias/tjpr-co-tokinho-ser-indenizado-pelo-ex-tutor-por-maus-tratos. Acesso em: 04jun25.
[2] Caso Tokinho abre precedentes em prol dos animais, diz defensora do cão. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/399426/caso-tokinho-abre-precedente-em-prol-dos-animais-diz-defensora-do-cao. Acesso em: 04jun25.