Maus-tratos a animais: Fundamentos legais para a justa causa nas relações de trabalho
A relação de trabalho abrange todas as formas de prestação de serviços humanos, como o trabalho avulso, eventual, autônomo e o estágio. Já a relação de emprego é espécie dentro desse gênero e pressupõe requisitos específicos — como subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade — aplicáveis a empregados urbanos, rurais, domésticos e aprendizes.[1]
O vínculo empregatício é regido por princípios fundamentais, como a boa-fé objetiva, a lealdade, a cooperação e a função social do contrato. Tanto o empregado quanto o empregador estão obrigados a observar condutas pautadas no respeito mútuo e na probidade. Quando esses deveres são violados de forma grave, é possível a dissolução motivada do contrato de trabalho.[2]
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê duas modalidades de rescisão por justa causa:
Justa causa do empregado, prevista no art. 482 da CLT, aplicada quando o trabalhador comete falta grave, como mau procedimento, desídia, improbidade ou incontinência de conduta;
Rescisão indireta, disciplinada no art. 483 da CLT, espécie de "justa causa invertida", aplicável ao empregador em casos de rigor excessivo, descumprimento contratual, exigência de atos ilícitos, agressão física ou ofensa à honra, entre outros.
Nesse contexto, surge o questionamento: a prática de maus-tratos a animais no ambiente laboral pode justificar a extinção do vínculo empregatício por justa causa? A resposta é positiva, desde que analisadas as circunstâncias do caso concreto.
Embora a legislação trabalhista não trate expressamente dos maus-tratos a animais, essa conduta pode ser enquadrada nas hipóteses legais previstas, especialmente quando ocorre no exercício das atividades profissionais ou quando afronta valores éticos da empresa ou da coletividade.
É importante ressaltar que os maus-tratos a animais configuram crime ambiental, previsto no artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, com pena agravada quando cometidos contra cães e gatos, após a edição da Lei nº 14.064/2020. A legislação penal, portanto, oferece um referencial claro para a avaliação da gravidade da conduta.
Além disso, a Resolução nº 1.236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) estabelece definições como "crueldade", “abuso” e "maus-tratos" contra animais, já que a Lei de Crimes Ambientais prevê tais termos sem defini-los. Segundo esse normativo, maus-tratos englobam qualquer ato que provoque dor ou sofrimento desnecessário aos animais, de forma comissiva ou omissiva. Crueldade e abuso são formas ainda mais graves, podendo ser intencionais ou reiteradas. Essas definições ajudam a compreender o alcance da conduta e suas implicações trabalhistas.[3]
Não é difícil imaginar contextos em que tais práticas possam ocorrer: um tratador de animais que agride os bichos sob seus cuidados, um empregado de pet shop que negligencia suas funções de forma dolosa, um trabalhador rural que abusa de sua autoridade sobre animais da fazenda. Situações como essas, se comprovadas, podem ser enquadradas como mau procedimento, ato de improbidade ou até insubordinação, dependendo da dinâmica do caso.
E se os maus-tratos forem praticados ou incentivados pelo próprio empregador? Nessa situação, é perfeitamente possível que o trabalhador pleiteie a rescisão indireta do contrato de trabalho, nos termos do artigo 483 da CLT. Isso porque condutas como o rigor excessivo, o descumprimento de obrigações contratuais ou a imposição de práticas ilícitas — como a agressão a animais — violam de forma clara os deveres legais e éticos do empregador. Da mesma forma, atos de violência praticados contra animais tutelados pelo empregado, especialmente quando perpetrados por superiores hierárquicos, podem configurar violação à dignidade da pessoa humana e ensejar, inclusive, indenização por danos morais.
Cabe reforçar que, conforme já mencionado, tanto a justa causa quanto a rescisão indireta configuram formas de extinção motivada do contrato de trabalho e, por essa razão, demandam prova substancial e avaliação rigorosa de fatores como a gravidade da infração, sua relação com as atribuições do cargo, os efeitos no ambiente laboral e a adequação entre a conduta e a penalidade aplicada.
Análise de jurisprudência em demissão por justa causa em casos de maus-tratos
A seguir, são apresentados precedentes da Justiça do Trabalho que analisam a possibilidade de enquadramento da prática de maus-tratos a animais, ocorrida no contexto laboral, como falta grave passível de dispensa por justa causa, nos termos do artigo 482 da CLT:
1. TRT da 2ª Região (SP) — Justa causa por maus-tratos em petshop
A 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região confirmou, por unanimidade, a demissão por justa causa de uma funcionária de petshop acusada de maus-tratos reiterados contra animais sob seus cuidados. A decisão considerou configurado o mau procedimento e a desídia no desempenho das funções, reforçados por histórico de advertências e suspensão anteriores pelos mesmos motivos.
Provas testemunhais comprovaram condutas violentas da ex-funcionária, como puxar, levantar e até enforcar animais. A tentativa de descredibilizar uma das testemunhas, sob alegação de intimidade com o empregador, foi rejeitada pela relatora, desembargadora Sônia Maria Forster do Amaral, que destacou não haver vínculo de amizade capaz de comprometer a isenção do depoimento. Processo: 1000402-85.2021.5.02.0442. [4]
A decisão, ao reconhecer a gravidade da conduta em contexto profissional, reforça que a proteção aos animais deve ser observada também nas relações de trabalho, sobretudo quando há interação direta com seres sencientes. Nesses casos, a dispensa por justa causa cumpre não apenas a função de proteger o empregador, mas também reafirma o compromisso ético do Direito do Trabalho com a prevenção dos maus-tratos no ambiente laboral.
2. TRT 3ª Região (MG) — Reversão de justa causa de trabalhador que chutou cachorro de empresa
A 7ª Turma do TRT da 3ª Região (MG) manteve a reversão da demissão por justa causa de um eletromecânico acusado de maltratar um cão no pátio da empresa. Segundo os magistrados, não houve comprovação de má conduta intencional, mas sim uma reação instintiva de autodefesa após o trabalhador ser perseguido por cães soltos no ambiente laboral. A decisão ressaltou a ocorrência de dupla punição pelo mesmo fato, ausência de imediatidade na aplicação da penalidade e falta de tipicidade da conduta.
O trabalhador havia sido advertido formalmente dias após o incidente e, posteriormente, demitido por justa causa com base no mesmo episódio. As provas testemunhais confirmaram que os cães, de fato, perseguiam motos e bicicletas dentro da empresa e que o chute foi uma reação defensiva, sem dolo ou crueldade. A decisão de 1º grau foi mantida pelo relator, desembargador Antônio Carlos Rodrigues Filho, e o processo foi remetido ao TST. Processo: 0010325-45.2020.5.03.0092. [5]
Neste caso, o TRT-3 entendeu que o trabalhador agiu por reflexo diante de um risco, sem intenção de agredir o animal, afastando a configuração de maus-tratos.
3. TRT 15 (Campinas) — Justa causa de trabalhador por maus-tratos a animais na fazenda onde residia
A 1ª Câmara do TRT da 15ª Região (Campinas/SP) manteve, por unanimidade, a dispensa por justa causa de um tratorista acusado de maus-tratos a animais na fazenda onde morava e trabalhava. A conduta foi registrada em Boletim de Ocorrência da Polícia Civil, com evidências fotográficas e relatório ambiental apontando que o trabalhador mantinha cães amarrados, feridos e sem acesso à água, além de um papagaio em condições precárias. O próprio empregado admitiu os maus-tratos.
Ele havia recorrido da decisão da Vara do Trabalho de Olímpia/SP, alegando que os fatos não tinham relação com o contrato de trabalho. No entanto, o colegiado considerou que os atos ocorreram dentro da propriedade do empregador, onde o trabalhador residia com os animais, o que fragilizou a fidúcia necessária à relação empregatícia.
A relatora, juíza convocada Candy Florencio Thomé, afirmou que os atos constituíram falta grave, justificando a demissão com base nas alíneas "b" e "h" do artigo 482 da CLT (mau procedimento e indisciplina). Assim, o recurso foi negado e a justa causa foi mantida. Processo: 0011016-73.2023.5.15.0107. [6]
O caso evidencia a intersecção entre o Direito Animal e o Direito do Trabalho, ao reconhecer que maus-tratos a animais, mesmo fora da atividade direta, configuram falta grave quando ocorrem em espaços vinculados ao contrato. A decisão reforça a responsabilidade ética nas relações laborais, ao considerar que tais condutas comprometem a confiança necessária ao vínculo empregatício.
4. TRT 23ª Região (MT) — Justa causa de trabalhador de frigorífico por maus-tratos a animal durante o abate
A 2ª Turma do TRT da 23ª Região (Mato Grosso) manteve, por unanimidade, a justa causa aplicada a um trabalhador do setor de abate de um frigorífico, que praticou maus-tratos contra animal considerado ainda vivo no momento do ato. O empregado foi flagrado por filmagens internas manipulando os úberes de uma vaca abatida em tom de chacota e, em seguida, "testando" facas afiadas na pata do animal, que chegou a reagir à dor.
O ex-funcionário alegou que os atos não configuravam maus-tratos, pois o animal estaria morto, e pleiteou reversão da demissão, além de indenização por estabilidade provisória na CIPA. No entanto, a empresa apresentou sindicância interna e apontou violação a normas técnicas de bem-estar animal e segurança do trabalho, exigidas pelo setor frigorífico, incluindo o Regulamento de Abate Humanitário do Ministério da Agricultura (MAPA).
A Justiça do Trabalho de 1ª instância reconheceu a gravidade da conduta, destacando que o animal ainda demonstrava sinais vitais ao ser cortado. O juízo reforçou que o ato contrariou a Constituição Federal, a Lei de Crimes Ambientais e regulamentos técnicos específicos, podendo inclusive causar prejuízos operacionais e econômicos ao estabelecimento.
O TRT manteve a decisão, negando a reversão da justa causa e os pedidos de indenização, sob relatoria da desembargadora Eleonora Lacerda. O processo transitou em julgado.
Processo: 0000256-17-2023.5.23.0051. [7]
O caso destaca o bem-estar animal em setor historicamente controverso como o frigorífico. Ao reconhecer que a prática cruel durante o abate fere normas legais e técnicas, a decisão afirma que a ética no trato dos animais integra os deveres do empregado em sua conduta profissional.
É relevante que a Justiça tenha considerado o sofrimento do animal dentro de um sistema de abate como critério válido para aplicação da sanção máxima na esfera trabalhista.
Conclusão
A prática de maus-tratos a animais, além de constituir crime ambiental, pode comprometer a confiança essencial à continuidade do vínculo empregatício, configurando, em certos casos, falta grave passível de rescisão motivada. A análise deve considerar o contexto, a função exercida, a repercussão da conduta e a existência de prova consistente.
Mais do que uma violação legal, condutas cruéis contra animais refletem o descompasso com a evolução do ordenamento jurídico brasileiro, que tem reconhecido progressivamente o bem-estar animal como valor jurídico relevante.
A jurisprudência trabalhista tem afirmado que tais práticas, quando ocorridas no ambiente laboral ou sob responsabilidade do trabalhador, podem justificar a dispensa por justa causa, reafirmando o compromisso do Direito do Trabalho com a dignidade – humana e animal – nas relações laborais.
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Referências bibliográficas
[1] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2011, p. 489.
[2]MARTINEZ, Luciano. Justa causa. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Pedro Paulo Teixeira Manus e Suely Gitelman (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/363/edicao-1/justa-causa
[3] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA (CFMV). Resolução nº 1.236, de 26 de outubro de 2018. Disponível em: https://manual.cfmv.gov.br/arquivos/resolucao/1236.pdf. Acesso em 27.05.2025
[4] Trabalhadora que maltratava animais em petshop tem justa causa mantida. Migalhas. 13 de julho de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/369743/trabalhadora-que-maltratava-animais-em-petshop-tem-justa-causa-mantida. Acesso em 27.05.2025
[5] TRT-3 reverte justa causa de empregado que chutou cachorro da empresa. Migalhas. 07 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/371107/trt-3-reverte-justa-causa-de-empregado-que-chutou-cachorro-da-empresa. Acesso em 27.05.2025
[6] TRT15: Maus-tratos a animais resultam em demissão por justa causa. Jus Animalis. 01 de maio de 2025. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/noticias/trt15-maus-tratos-a-animais-resultam-em-demisso-por-justa-causa?rq=justa%20causa. Acesso em 27.05.2025
[7] TRT/MT: Justiça mantém justa causa a trabalhador de frigorífico por maus-tratos animal. Jus Animalis. 22 de abril de 2024. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/noticias/trtmt-justia-mantm-justa-causa-a-trabalhador-de-frigorfico-por-maus-tratos-animal?rq=justa%20causa. Acesso em 27.05.2025