A (des)atualização da jurisprudência do transporte aéreo de animais na cabine de aeronave
Ano após ano, com a evolução e concretização da família multiespécie e a constante busca por meios seguros de transporte aéreo, em especial quanto aos animais de suporte emocional, bem como pelo hiato regulamentar e legislativo, cada vez mais o Poder Judiciário vem sendo chamado para resolução do conflito, buscando equalizar o transporte seguro dos animais com as leis que temos vigentes.
Contudo, essa busca por uma solução judicial traz, como naturalmente é, decisões conflitantes em si, onde se encontram respostas diametralmente opostas, que são fruto de uma falta de definição legislativa, que acarreta uma priorização de um direito à liberdade econômica em detrimento à vida e à saúde do animal ou dos seus tutores, quando se trata de suporte emocional.
Isto porque a ANAC editou a Portaria 12.307 buscando solucionar o problema, ao trazer uma definição mais ampla do que chamou de “animais de estimação”, mas a portaria insistiu no mesmo equívoco de entregar às companhias a opção, especista, de eleger quais animais irão transportar.
No entanto, logo percebeu-se que a “regulamentação” realizada pela ANAC não foi o bastante para solucionar os problemas do transporte aéreo, visto que se percebe uma incoerência no transporte aéreo dos animais, muitas vezes enviados no bagageiro, seja pelo tamanho, seja pela espécie, pois mesmo reconhecendo e permitindo o embarque de “animais de estimação” e “assistência emocional”, a portaria manteve a “possibilidade” de as companhias embarcarem os animais, espécies, peso que desejarem, mantendo-se, portanto, a exclusão e o mesmo panorama já havido antes da Portaria.
Neste sentido, diante da regra desproporcional e irrazoável, seguiu sendo necessária a intervenção do Poder Judiciário a fim de reconhecer, por exemplo, o direito de embarque de animal de outras espécies, tais como coelhos, hamsters, porquinhos da índia, chinchilas, twisters, calopsitas, dentre outras diversas espécies já judicializadas, a fim de garantir um embarque não especista, sem que isso signifique sacrificar o direito dos demais passageiros.
Até porque o transporte inadequado no bagageiro gera danos à saúde e vida dos animais, como, por exemplo, os lamentáveis fatos ocorridos em 2021, com o falecimento de dois cachorros em trânsito no bagageiro de uma companhia aérea, tal como amplamente divulgados pela mídia, além do caso Pandora, onde o animal desapareceu durante a conexão no maior aeroporto da América Latina, em Guarulhos e, agora, em 2024, o triste “caso Joca”, com o falecimento deste durante o transporte.
Ou seja, se a cabine é o meio mais seguro de transporte aéreo, sendo este viável, a despeito dos cães e gatos já autorizados, inclusive os “cães guias”, cujo tamanho e raça são ignorados, então conclui-se que todo e qualquer outra modalidade de transporte aéreo é, por si, defeituosa por não respeitar a modalidade mais segura.
Nesta caminhada, após, literalmente, milhares de processos judiciais, observou-se as mais variadas soluções, mas cuja discussão se assentou no conflito entre a liberdade econômica das empresas, fruto do artigo 170 da Constituição Federal, e o exercício potestativo dado pela ANAC para a prestação ou não do serviço e, do outro lado, a garantia à saúde e vida dos animais, humanos e não humanos, quando se pensa em transporte aéreo de pets e no suporte emocional.
A primeiro momento, embora a saúde e a liberdade econômica partam da Constituição Federal e possam ensejar um conflito horizontal, logo se percebe que a saúde e a vida têm ampla prevalência à liberdade econômica, pela natureza jurídica dos bens tutelados e a essencialidade de cada um desses para a coexistência dos demais.
Ademais, na análise dos demais comandos legislativos, temos o estatuto PCD, de caráter supralegal, que prevê, expressamente, o direito ao transporte, inclusive aéreo, reforçando a prevalência dos animais de suporte emocional em detrimento aos demais direitos.
No mais, podemos citar, ainda, outras leis, como o código de defesa do consumidor, que veda o serviço defeituoso – inseguro – e busca garantir a razoabilidade e proporcionalidade nos contratos, que parece passar longe quando se observam companhias autorizando animais de suporte para o México, em voos de 9 horas e meia, mas proibindo para voos de São Paulo até o Rio de Janeiro que duram cerca de 50 minutos.
Contudo, mesmo com o panorama acima e a priorização da vida, o STJ, em recente julgado da 4ª Turma, entende que as companhias podem – sim – restringir o serviço de animais de suporte emocional, reforçando a validade da portaria da ANAC que trouxe facultatividade para a oferta dos serviços.
Ora, além da parte jurídica acima exposta, buscando uma adequação fática do embarque, existem diversas condicionantes à concessão da liminar que poderiam se tornar obrigatórias por força de lei, como o treinamento do animal, que é essencial para um voo tranquilo para todos, inclusive para o mesmo, além de deliberar espaços apropriados para os animais, demonstrando que, tanto quanto as companhias conseguem incluir um cão guia, seja qual for seu peso, sem se preocupar com alergias e fobias dos demais passageiros, consegue, certamente, fazer com os demais animais de suporte ou serviço.
Nesta linha, percebemos se tratar de uma questão cultural, a qual, pelo visto, o STJ preferiu por ignorar, prevalecendo uma análise legalista que remonta à escola clássica de Montesquieu do “juiz boca de lei”, que se limita à repetição do pouco que a lei consegue trazer do plano teórico para dar vida ao plano prático.
De qualquer forma – ainda bem – que se trata de uma decisão que hoje reflete apenas o entendimento da 4ª Turma do STJ, cuja composição, ou reflexão, pode alterar e sem efeitos vinculativos, sendo certo, ainda, que se aguarda, ansiosamente, a apreciação da matéria pelas demais turmas do STJ e pelo STF, na esperança que, estes órgãos da Justiça ou, ainda, o próprio legislador, acorde e escute o clamor da sociedade por mudanças e, principalmente, priorize a vida para um transporte digno para todos os animais, humanos ou não.
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Referências bibliográficas
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RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2 ed. (ano 2008), 4ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2012. p. 188-189.
REGIS, Arthur e outros. Panorama do Direito Animal Brasileiro. Ed. Ilustração, 2024. p. 640.
BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, Ação Civil Pública nº. 5000389-28.2022.4.04.7000.
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