“PL da Devastação”: A Subversão da Ordem Constitucional em Nome do Interesse Econômico

Na madrugada desta quarta-feira, 17 de julho de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou, com ampla maioria, o Projeto de Lei nº 2.159/2021, que promove profundas alterações no regramento do licenciamento ambiental brasileiro. A chamada Lei Geral do Licenciamento Ambiental, há anos contestada por ambientalistas, acadêmicos e instituições públicas, passou a ser conhecida como “PL da Devastação” não por acaso: trata-se de um conjunto normativo que enfraquece um dos principais instrumentos de tutela ambiental previstos na legislação brasileira, em evidente retrocesso jurídico e afronta à Constituição Federal (CF).

A fragilização do processo de licenciamento compromete diretamente a eficácia de direitos fundamentais assegurados na CF, entre eles o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), a defesa da biodiversidade e a proteção dos seres vivos, inclusive não humanos, cuja vida e bem-estar são afetados por intervenções autorizadas sem análise criteriosa de impactos.

O retrocesso como política legislativa: violação aos princípios da prevenção, precaução e proibição de retrocesso ambiental

O projeto aprovado flexibiliza o licenciamento ao criar a Licença Ambiental Especial (LAE) e a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), as quais dispensam estudos de impacto e facilitam autorizações mesmo para atividades potencialmente degradadoras. Limita a atuação de órgãos como Ibama, Funai, Iphan e ICMBio, reduz controles sobre o desmatamento na Mata Atlântica e permite renovações automáticas de licenças. Essas alterações representam a consolidação de um retrocesso legislativo institucionalizado, que colide frontalmente com os fundamentos do Direito Ambiental constitucional e vulnerabilizam ainda mais ecossistemas frágeis e espécies ameaçadas.

Nesse contexto, o PL afronta dois princípios estruturantes: o princípio da prevenção, que exige a atuação estatal quando os danos ambientais são certos e cientificamente conhecidos; e o princípio da precaução, que impõe a adoção de medidas protetivas mesmo diante de incerteza científica, priorizando a integridade ecológica em contextos de risco potencial.

Ambos operam sob a lógica da antecipação e do cuidado, orientando o dever do Estado de intervir antes que o dano ambiental ocorra, e não após sua concretização. A desestruturação do sistema de controle desrespeita esses princípios e mina a eficácia da tutela ecológica no país.

Mais grave ainda é a clara violação ao princípio da vedação ao retrocesso ambiental, amplamente reconhecido pela doutrina como princípio geral do Direito Ambiental. Segundo Antônio Herman Benjamin, esse princípio deve ser invocado para aferir a constitucionalidade de propostas legislativas que impliquem redução do patamar de proteção ambiental, especialmente quando envolvem ecossistemas essenciais, áreas ameaçadas ou espécies em risco de extinção — exatamente os casos afetados pelo novo projeto. (BENJAMIN, apud SARLET e FENSTERSEIFER, 2017)

Ao enfraquecer os instrumentos administrativos de controle, o PL da Devastação rompe com o dever constitucional de progressividade na proteção ecológica, substituindo-o por uma lógica de flexibilização normativa a serviço de pressões econômicas. Trata-se de uma inversão de valores, na qual o Estado afronta os princípios ambientais, abandona sua função de protetor da integridade ecológica e se converte em facilitador da degradação ambiental, incompatível com o Estado Democrático de Direito e com o modelo constitucional de desenvolvimento sustentável e intergeracional.

O Congresso e a supremacia do interesse econômico

A tramitação e a aprovação do PL 2.159/21 revelam um padrão cada vez mais recorrente no cenário político-institucional brasileiro: a submissão da função legislativa às pressões econômicas organizadas. A prevalência do discurso da desburocratização e da atração de investimentos para o crescimento tem se sobreposto à necessidade de garantir um mínimo ético-jurídico de proteção ecológica.

A Constituição de 1988 impõe um compromisso inequívoco com a preservação ambiental. O artigo 225 estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, sendo dever do poder público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo. Trata-se de norma de eficácia plena, que impõe condutas positivas ao Estado brasileiro.

No mesmo sentido, o artigo 170, que disciplina a ordem econômica nacional, determina em seu inciso VI que esta deve observar o princípio da defesa ambiental, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços. Assim, a própria noção constitucional de desenvolvimento econômico é delimitada pelo imperativo da sustentabilidade.

Nas lições de Eros Grau, a Constituição rejeita qualquer dicotomia entre crescimento e proteção ecológica, pois ambos são partes da mesma equação. Para o autor, a tentativa de opor tais dimensões revela uma visão regressiva e obscurantista que busca legitimar a exploração predatória dos recursos naturais sob o pretexto de modernização. (GRAU, 2010)

Dessa forma, ao aprovar o chamado PL da Devastação, o Congresso Nacional ignorou a necessária conjugação dos artigos 170 e 225 da Constituição Federal, que impõe a harmonização entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental. Tais dispositivos estabelecem que ambos não se contrapõem, mas integram uma mesma equação constitucional, cujo objetivo maior é garantir uma existência digna a todos os seres vivos — humanos e não humanos. Ao desconsiderar esse equilíbrio, o legislador incorre em flagrante afronta ao modelo de desenvolvimento sustentável delineado pela Constituição de 1988.

A fauna silvestre e doméstica: sujeitos invisibilizados

Um dos aspectos mais preocupantes do projeto é o impacto sobre a biodiversidade e, em especial, sobre os animais não humanos. O licenciamento ambiental tradicional permite a avaliação de riscos à fauna local e, eventualmente, a exigência de medidas mitigadoras. Com a flexibilização das exigências e o aligeiramento procedimental, perde-se a capacidade institucional de prevenir danos irreversíveis à vida animal.

A destruição de habitats, o aumento do risco de atropelamentos em áreas de preservação, o ruído gerado por grandes empreendimentos e a supressão de áreas verdes urbanas são apenas alguns dos impactos que se intensificarão com a aprovação do novo marco legal. Embora muitas vezes invisibilizados nas análises jurídicas tradicionais, os animais são vítimas diretas das políticas de desregulamentação ambiental. Nesse sentido, sustenta-se, em consonância com parte da doutrina, uma interpretação ampliada do termo “todos”, constante do caput do artigo 225, de forma a incluir todos os seres vivos, humanos e não humanos, como titulares do direito ao ambiente equilibrado.

Importa destacar que o PL sequer contempla dispositivos específicos voltados à proteção da fauna silvestre ou doméstica. Embora trate genericamente de “impacto ambiental”, o texto não exige estudos específicos sobre os efeitos à fauna, tampouco prevê medidas de mitigação voltadas à proteção dos animais, revelando uma lacuna grave diante da centralidade da fauna no equilíbrio ecológico.

O PL nas mãos do Presidente da República

A proposta segue agora para sanção ou veto do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem, na qualidade de Chefe do Poder Executivo, incumbe o dever constitucional de proteger o ambiente (art. 225 da Constituição Federal). Em pleno ano da realização da COP 30, que ocorrerá em Belém (PA), mais de 250 cientistas de 27 países assinaram uma carta aberta ao presidente, conclamando-o a liderar uma transição energética justa e a assumir o protagonismo como liderança climática global.

Portanto, cabe ao Presidente da República demonstrar seu compromisso com a ordem constitucional, com a justiça climática e com a proteção de todos os seres, humanos e não humanos, promovendo o veto integral do PL 2.159/21. Ainda há tempo de evitar uma regressão histórica e uma grave ameaça à integridade ecológica brasileira. Para tanto, é fundamental que o Presidente também se articule com a sociedade civil, a comunidade científica e os movimentos socioambientais, de modo a fortalecer o apoio público ao veto e pressionar o Congresso Nacional para que este não o derrube, preservando o interesse coletivo e os direitos socioambientais assegurados pela Constituição.

Considerações finais

O denominado “PL da Devastação”, que desmonta importantes dispositivos da Lei da Mata Atlântica e, ironicamente, é aprovado justamente no Dia Nacional de Proteção das Florestas, representa uma grave ameaça ao bioma mais desmatado do país. Trata-se, sobretudo, de um projeto inconstitucional, que viola cláusulas pétreas da Constituição relativas à proteção ambiental e compromete o direito das futuras gerações a um ambiente equilibrado. Ao flexibilizar mecanismos essenciais de controle e fiscalização, o projeto expõe não apenas os recursos naturais, mas a própria vida em suas múltiplas formas a riscos irreversíveis.

Mais do que nunca, é necessário que a sociedade civil, os operadores do Direito, o Ministério Público e o Poder Judiciário atuem com firmeza na defesa da ordem constitucional ambiental. O Brasil não pode se permitir retroceder naquilo que constitui uma das suas maiores riquezas: a diversidade de sua fauna, de sua flora e de seus povos.

O desafio é imenso, mas o dever jurídico é claro: proteger o ambiente é proteger a própria dignidade da vida.

Por isso, esta não é apenas uma coluna de crítica: é um chamado à resistência. Precisamos recuperar o sentido original da Constituição de 1988, que estabeleceu, com coragem, que não há dignidade sem equilíbrio ambiental. Precisamos romper com essa lógica de devastação travestida de governabilidade  e crescimento econômico em prol da nação. Precisamos, sobretudo, lembrar que os direitos dos animais e da natureza não são obstáculos ao desenvolvimento, mas seu limite ético e jurídico.

A aprovação do PL 2.159/21 não é uma vitória do progresso. É a crônica anunciada de uma regressão civilizatória.

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Referencias:

CÂMARA aprova projeto conhecido como “PL da Devastação”, que altera regras de licenciamento ambiental. Jus Animalis, 17 jul. 2025. Disponível em: jusanimalis.com.br/noticias/camara-aprova-projeto-pl-da-devastacao-que-altera-regras-de-licenciamento-ambiental. Acesso em: 17 jul. 2025.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.

MAIS de 250 cientistas de 27 países cobram Lula por ações na COP30. Academia Brasileira de Ciências (ABC) – Boletim, 23 jun. 2025. Disponível em: https://www.abc.org.br/2025/06/23/mais-250-cientistas-27-paises-cobram-lula-cop30/. Acesso em: 17 jul. 2025.

NOTA contra o PL da Devastação. AJD – Associação Juízes para a Democracia, 24 maio 2025. Disponível em: https://www.ajd.org.br/noticias/3276-nota-contra-o-pl-da-devastacao. Acesso em: 17 jul. 2025.

NOTA técnica detalha desmonte do licenciamento ambiental no Senado. Observatório do Clima, 2025. Disponível em: https://www.oc.eco.br/nota-tecnica-detalha-desmonte-do-licenciamento-ambiental-no-senado/. Acesso em: 17 jul. 2025.

PROJETO de lei do licenciamento ambiental desestrutura regramento e viola Constituição Federal. Ministério do Meio Ambiente, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/noticias/projeto-de-lei-do-licenciamento-ambiental-desestrutura-regramento-e-viola-constituicao-federal. Acesso em: 17 jul. 2025.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do Direito Ambiental. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Advogada. Pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Público. Presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP. Presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP – Subseção de Amparo. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais – OAB/SP. Vice-Presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis – SOSAFRA.

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