Rodeios, vaquejadas e o julgamento da EC 96/17 pelo Supremo Tribunal Federal

O rodeio do Brasil se distingue um pouco do norte-americano. Aqui foi inventada uma modalidade denominada cutiano. No cutiano, o peão também precisa ficar em cima do cavalo por 8 segundos, mas o que conta ponto são as esporeadas que ele dá no animal. Cada um dos juízes, que são três, dá notas de 0 a 100, e a nota intermediária é a que vale para a classificação. Os peões afirmam que as esporas não têm pontas e, por isso, não machucam os animais. Quanto ao sedém (Corda feita com os pelos da crina ou da cauda do boi e usada para manejar o animal), preso na virilha do animal, é o mesmo tipo usado pelos norte-americanos (DIAS, 2000).

A modalidade mais antiga de rodeio praticada nos Estados Unidos é a saddle bronc, em que o peão se apoia nos estribos, sentado sobre uma sela, segurando um cabo de 1,20 m de cumprimento (DIAS, 2000). Como se vê é o rodeios é de origem norte americana, portanto descartada a possibilidade de ser integrado ao patrimônio imaterial brasileiro.

O bareback é uma prova sem estribos, tendo o peão como apoio uma única alça. Fica quase deitado sobre uma sela pequena, com um braço no ar e mesmo assim não pode parar de esporear o animal (DIAS, 2000, p. 199). No final, o peão é salvo pelo madrinheiro (ou madrinhador), espécie de peão que tem função semelhante ao de um salva-vidas; sua missão é entrar na arena para garantir a segurança dos peões, impedindo-lhes a queda e agilizando a volta dos animais Além da missão de livrar o peão da queda esses profissionais também são responsáveis por agilizar a volta dos animais aos bretes.

A prova mais perigosa é a de montaria em touro, ou bullriding, a prova que substituiu o cavalo pelo boi. O peão tem de se manter por 8 segundos montado num animal que corcoveia, para ganhar nota de 0 a 100. Quanto mais o touro corcoveia e o peão esporeia, maior é a nota. O boi tem seus órgãos sexuais apertados pelo sedém, provoca nele pulos. Uma corda de náilon é amarrada no touro, para que o peão a segure com uma só mão. As esporas não podem ter pontas. São frequentes as distensões musculares em peões e no animal, podendo ocorrer até fraturas. No final da prova, o peão escolhe o melhor momento para saltar, enquanto um madrinhador, muitas vezes fantasiado de peão-palhaço, distrai o animal depois que o peão desmonta (DIAS, 2000).

Existe, ainda, a prova do laço do bezerro, que é capturado pelo pescoço, ou calf roping. O laçador, montado num cavalo, atravessa a porteira perseguindo um bezerro de apenas três ou quatro meses de idade. O peão laça a cabeça do animal, o puxa para trás e para de correr. Depois, desce do cavalo e levanta o filhote até a altura da cintura e, com a corda que carrega na boca, amarra três de suas patas. Três juízes cronometram o tempo da prova, e vale a marcação intermediária. Não podem ser ultrapassados 2 (dois) minutos. O laçador não pode sair do box antes do bezerro, sob pena de ser penalizado com 5 (cinco) segundos a mais na contagem do tempo final (DIAS, 2000).

À leitura da descrição desses denominados “esportes” resta claro que esses eventos são de extremo mau gosto e excessivamente perversos para com os animais. Segundo os promotores de rodeios, os rodeios não envolvem crueldade e os animais são bem tratados. Alegam que as esporas não pontiagudas não causam danos, porém isso não procede. Com ou sem pontas, as esporas têm a finalidade de desferir golpes que machucam o animal. As peiteiras costumam causar ferimentos nos animais. Em alguns rodeios são colocados sob a sela pregos e pedras e outros objetos pontiagudos, ou são aplicados choques elétricos e mecânicos nas partes sensíveis do animal antes de sua entrada na arena. O sedém é aplicado na região da virilha, bastante sensível por ser de pele fina, mas, principalmente, por ser a área de localização dos órgãos genitais Acrescente-se a tudo isso o transporte em condições precárias e o stress no confinamento, no brete, antes das provas.

Estudos médico-veterinários vêm argumentando que, além da dor física sofrida pelos animais, o barulho, as luzes e cordas usadas lhes causam stress. Afirmam, ainda, que a repetição dos impactos do peão caindo sentado na coluna do animal pode pressionar os discos gelatinosos que separam as vértebras, principalmente na região lombar.

O primeiro passo para a legalização dos rodeios no Brasil foi dado em 2001, no Governo de Fernando Henrique Cardoso, quando foi aprovada a Lei n. 10.220, que classificou a atividade de peão de rodeios como atleta profissional, regulamentando assim a profissão. A lei estabelece o direito ao contrato e à remuneração. Além da remuneração, os peões passaram a ter direito a seguro de vida e de acidentes, ressarcimento de despesas médico-hospitalares em caso de acidentes, bem como às terapias que se fizerem necessárias para a recuperação do acidentado. A lei veda o trabalho do menor sem autorização do responsável e estabelece jornada máxima de 8 (oito) horas de trabalho para o peão, porém não estabelece limites para o horário de trabalho dos animais (BRASIL, 2001). Foi o primeiro passo para a legalização dos rodeios em todo pais.

Foi quando surgiu em São Paulo um jovem promotor talentoso que moveu uma corajosa ação contra a realização de um rodeio em São José dos Campos – doutor Laerte Levai. Em 2003 Levai impetrou uma ACP contra a VENUE PRODUÇÕES ARTÍSTICAS E PUBLICIDADE S/C LTDA e PIAF SOM E LUZ COMÉRCIO E LOCAÇÃO LTDA, onde no período de 15 a 18 de maio, se pretendia realizar na VALE FEST 2003 um rodeio profissional. Alega que “Os animais utilizados para esse fim, sem dúvida, são submetidos à violência. Pulam e escoiceiam nas provas de montaria em decorrência de alguns subterfúgios bem conhecidos na atividade do peão: o sedém e a espora.” Graças a essa ação pioneira outros promotores começaram a se manifestar contra os rodeios dando início no país a ações contra esse “esporte” cruel.

A vaquejada nasceu na cidade de Santo Antão- PE. Dois vaqueiros, um denominado puxador e o outro esteireiro, montados em cavalos, acompanham um boi desde a saída da sangra (box feito para a largada da rés) até a faixa de julgamento. Ali, devem tombar o boi ao chão, arrastando-o brutalmente até que mostre as quatro patas. Caso queiram aumentar os pontos com o feito, no ato da derrubada, o boi tem de cair de patas para cima.

As chamadas apartações, que eram feitas até a primeira metade deste século nos sertões nordestinos eram presenciadas por multidões que se deslocavam de grandes distâncias para ver as atrocidades impostas aos animais. Isso era feito no tempo em que o gado era criado em campos abertos. Depois das épocas invernosas os criadores se juntavam e arrebanhavam o gado para fazer o devido reconhecimento de propriedade do animal pela marca registrada do fazendeiro (feita com ferro quente). A derrubada era feita no final da operação, quando os bezerros já haviam sido reconhecidos através de suas mães. Cada rês que era mutilada na queda era sacrificada para servir de pasto aos participantes. As apartações já não existem hoje, depois que o gado passou a ser criado em mangas de terras cercadas pelos latifundiários.

Os animais usados em vaquejadas sofrem luxações e hemorragias internas devido ao tombo. E não é só o sertanejo que participa da derrubada do boi. Hoje em dia, já vêm entrando em cena empresários, profissionais liberais e outras categorias profissionais, como se essa prática fosse um esporte. Todo esse tormento que sofrem os animais é para ganhar prêmios oriundos de rateio das inscrições pagas pelo vaqueiro.

Quando, em 1983, o Estado do Ceará editou a Lei 15.299, que regulamentou  as vaquejadas, foi requerida a sua inconstitucionalidade (ADI 4983) pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot. Em 2016 o STF julgou inconstitucional a lei do Ceará.

 Em reação ao julgamento os promotores de vaquejadas e rodeios se mobilizaram e conseguiram que o Congresso Nacional aprovasse a Lei 13.364, de 29 de novembro de 2016 (durante governo Dilma Roussef), que elevou o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial. A lei foi alterada pela Lei 13.873 de 2019 para incluir o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestação cultural nacional (governo Bolsonaro).

Dando continuação a seus propósitos promotores desses eventos conseguiram que o Congresso aprovasse a Emenda Constitucional 96/17, através de negociação do então presidente da República Michel Miguel Elias Temer. A Emenda Constitucional 96/2017, promulgada pelo Congresso Nacional, acrescentou um parágrafo ao artigo 225 da Constituição Federal determinando que as práticas desportivas e manifestações culturais com animais não são consideradas cruéis. Determinou, ainda, que essas práticas sejam registradas como “bem de natureza imaterial” e sejam regulamentadas por lei que garanta o bem-estar dos animais.

Foram impetradas duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e pela Procuradoria-Geral da República (ADI nº 5.728 e ADI nº 5.772, respectivamente) contra a Emenda Constitucional nº 96, de 6 de junho de 2017 (MIGALHAS – 2025).

Em 14 de março de 2025 o plenário do STF julgou constitucional a EC 96 viabilizando a prática de vaquejadas, rodeios e eventos similares. Os ministros acompanharam o voto do relator Ministro Dias Toffoli que destacou:

 “A EC não viola as cláusulas pétreas, pois não abole, mas apenas regulamenta uma prática cultural de modo a conciliar o bem-estar animal com a preservação cultural”. (Toffoli, 2025).

Ora, o capítulo do meio ambiente é constituído por cláusulas pétreas e não enseja emenda constitucional, salvo por nova Assembleia Constituinte. A proteção do meio ambiente, nesta perspectiva de tutela individual e coletiva da vida, encontra fundamento no parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal.

 § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Por outro lado, sendo o meio ambiente ecologicamente equilibrado um bem essencial à sadia qualidade de vida, não se podendo entender existir dignidade sem aquela, tem-se que a proteção ao meio ambiente integra a dignidade da pessoa humana e, portanto, constituiu fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do inciso III do Art. 1º da Constituição Federal. O art. 225 da Carta Magna não pode ser abolido, suprimido ou restringido, nos termos do  parágrafo 4º do artigo 60 do texto constitucional, permitindo- se apenas a ampliação dos direitos ali adquiridos:

O argumento de que a reversão legislativa da jurisprudência do STF é legítima (usado pelo STF) não se sustenta, eis que os arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 13.364/16 que definem a vaquejada como patrimônio cultural imaterial brasileiro também são inconstitucionais.

Se temos que cotejar dois direitos fundamentais - o direito à expressão cultural e o direitos dos animais de não serem submetidos à crueldade - temos que reconhecer que o direito à vida é anterior a todos os outros. A defesa do direito à vida e ao não sofrimento deve ser priorizada em qualquer discussão ou situação que envolva direitos. Portanto, com todo respeito, não só lamentamos como discordamos do entendimento do colendo STF de que a EC 96/17 é constitucional.

EDNA CARDOZO DIAS

Pós doutoranda pela UFBA. Consultora jurídica. Doutora em Direito pela UFMG e ex-professora universitária na graduação e pós graduação das disciplinas Direito Ambiental, Direito Urbanístico e Direito Animal. É especializada em Direito Público, Ambiental e Animal. Autora da primeira tese de doutorado sobre Direito Animal no Brasil, e primeira jurista a lecionar a cadeira Direito Animal no Brasil. Ampla experiência em advocacia pública junto aos órgãos governamentais e relevante participação no terceiro setor. Foi presidente fundadora da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal. Presidiu o Instituto Abolicionista Animal - IAA. Foi fundadora e Presidente da Comissão dos Direitos dos Animais na OAB/MG, bem como da Comissão de Direito Urbanístico. Autora de vários livros e artigos, foi uma das articuladoras da inclusão do Direito Animal na Constituição da República e liderou as ações para criminalização dos maus-tratos aos animais.

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