O princípio da primazia da liberdade natural dos animais

O princípio da primazia da liberdade natural é um desdobramento do princípio da dignidade animal, na sua dimensão de liberdade, de maneira que também tem sede no art. 225, § 1º, VII da Constituição da República de 1988.[1]

Não obstante, a identificação normativa desse princípio é auxiliada pela regulamentação internacional e infraconstitucional.

A famosa carta de princípios, conhecida como Declaração Universal dos Direitos dos Animais (1978), já proclamava:Art. 4º – 1. Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir. 2. Toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito. Art. 5º – 1. Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie. 2. Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com fins mercantis é contrária a este direito.”

No plano jurídico internacional, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), da ONU (1992), adotada pelo Brasil, considera a conservação ex situ como complementar à conservação in situ, restando nítido que esta forma de conservação da biodiversidade – com os animais livres na natureza – é preferencial àquela.

No plano federal, a preferencialidade pela conservação da fauna in situ é confirmada pela Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), a qual ostenta, como uma das suas diretrizes, “o uso das unidades de conservação para a conservação in situ de populações das variantes genéticas selvagens dos animais e plantas domesticados e recursos genéticos silvestres” (art. 5º, VII, Lei 9.985/2000).

Também nesse sentido pode ser considerada, como fonte do princípio da primazia da liberdade natural, a Lei Complementar 140/2011, responsável pela “cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora”, na qual se encontram dispositivos que apontam a preferencialidade da conservação in situ (na natureza) dos animais, em especial aqueles cujas espécies estão ameaçadas de extinção e são sobre-explotadas no território nacional.[2]

Mas é o art. 25, § 1º, da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), com a redação dada pela Lei 13.052/2014,[3] que se afigura como principal fonte normativa infraconstitucional do princípio da primazia da liberdade natural: “Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados.”

Como se não bastasse, também os estados, no âmbito da sua competência legislativa concorrente com a União para a proteção do meio ambiente e dos animais, têm aprovado dispositivos legais contemplando esse princípio, como é o caso dos Códigos de Direito e Bem-Estar Animal dos Estados da Paraíba (art. 9º)[4], de Roraima (art. 10) e do Amazonas (art. 9º).

O estado de coisas a ser promovido por esse princípio é a integridade das comunidades de animais, especialmente as dos silvestres, colocando-as a salvo das intervenções humanas destrutivas, além de conduzir à progressiva extinção de cativeiros animais que não tenham funções conservacionistas, mas que se consubstanciem, apenas, em estabelecimentos destinados apenas à exploração animal.

As entidades, como os Centros de Triagem de Animais Silvestres (CETAS), que recebem animais silvestres apreendidos pela fiscalização ambiental ou feridos por causas diversas, como os atropelados em rodovias, para tratamento veterinário, tem sua atuação ressalvada pela parte final do próprio art. 25, § 1º da Lei 9.605/1998. 

A importância do princípio da primazia da liberdade natural é exatamente impor que entidades como essas – públicas ou privadas - engendrem todos os esforços possíveis para a reintegração do animal silvestre ao seu habitat ou, em caso de manifesta impossibilidade, comprovada e devidamente fundamentada em termos técnicos, que o novo ambiente a que se destine o animal possibilite a imitação, o tanto quanto possível, do respectivo habitat, inclusive quanto à natural socialização, quando for o caso de espécie social. 

É o interesse animal – não o interesse humano – que deve preponderar na decisão sobre a destinação do animal cativo. Por essas razões, e pelo princípio em questão, devem ser melhor refletidas as decisões judiciais que permitem que animais silvestres – como papagaios – por estarem, por longos períodos, na convivência doméstica humana, como verdadeiros pets, permaneçam nessa reclusão,[5] com a perda das suas chances de convivência natural com outros membros de sua espécie, ainda que em cativeiro regularmente estabelecido.[6]

O princípio da primazia da liberdade natural recebeu, recentemente, um importante reforço normativo, pela superveniência do precedente obrigatório do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 640, o qual fixou a tese que considera como ilegítima “a interpretação dos arts. 25, §§ 1º e 2º, da Lei 9.605/1998, bem como dos artigos 101, 102 e 103 do Decreto 6.514/2008 e demais normas infraconstitucionais, que autorizem o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos.”[7]

Por fim, é muito importante pontuar que, quando se fala no princípio da primazia da liberdade natural dos animais silvestres e se considera que a liberdade é essencial para que os animais silvestres possam florescer todas as suas capacidades e contribuir para com o meio ambiente ecologicamente equilibrado (a função ecológica da fauna), deve-se refletir sobre a juridicidade da criação de animais silvestres em cativeiro, seja para transformá-los em pets, seja para matá-los e explorá-los como gado silvestre (tema para um estudo posterior).

Como salientou o Prof. Tom Regan, bem refletindo o conteúdo do princípio em análise, “Não sendo nem contadores nem gerentes de felicidade na natureza, os gestores da vida selvagem devem se preocupar principalmente em deixar os animais em paz, mantendo os predadores humanos fora de seus assuntos, permitindo que essas ‘outras nações’ estabeleçam seu próprio destino.”[8]



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Referências bibliográficas

[1] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 98-100.

[2] Segundo o art. 7º, XVI, dessa Lei, dentre as ações administrativas da União, está a elaboração da “relação de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção e de espécies sobre-explotadas no território nacional, mediante laudos e estudos técnico-científicos, fomentando as atividades que conservem essas espécies in situ”. O mesmo se atribui à ação administrativa dos estados, no âmbito dos seus respectivos territórios, conforme art. 8º, XVII, da mesma Lei.

[3] A redação anterior do parágrafo era assim: “Os animais serão libertados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.” Note-se que, nesse caso, não havia primazia da liberdade natural, como agora se estabelece. Havia uma opção discricionária entre libertar o animal ou levá-lo a cativeiro, desrespeitando a dimensão de liberdade ínsita à dignidade animal, reconhecida pela Constituição Federal.

[4] “Art. 9º. Os animais silvestres deverão, prioritariamente, permanecer em seu habitat natural.”

[5] Cf. STJ, 2ª Turma, REsp 1.797.175/SP, Relator Ministro OG FERNANDES, julgado em 21/3/2019, publicado em 28/3/2019.

[6] Sobre o tema, consultar, BAMBIRRA, Sérgio Alves; RIBEIRO, Amanda de Oliveira. Tendências nos programas de reintrodução de espécies de animais silvestres no Brasil. Bioikos, Campinas, v. 23, n. 2, p. 103-110, jul./dez. 2009; CID, Bruno Cid; FIGUEIRA, Luiza Figueira; MELLO, Ana Flora de T. Mello; PIRES, Alexandra S.; FERNANDEZ, Fernando A. S. Short-term success in the reintroduction of the redhumped agouti Dasyprocta leporina, an important seed disperser, in a Brazilian Atlantic Forest reserve. Tropical Conservation Science, v. 7, n. 4, p. 796-810, 2014.

[7] STF, Pleno, ADPF 640, Relator Ministro GILMAR MENDES, julgado em 17/9/2021, publicado em 17/12/2021.

[8] REGAN, Tom. The case for animal rights. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2004, p. 357.

VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR

Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFPR e da UFPB (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

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