Críticas à Lei 9605/98: Artigo 32
Dando sequência à série referente às críticas à Lei n. 9605/98 (Lei de Crimes Ambientais), passa-se à análise de seu art. 32, que assim dispõe:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda. (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020). § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
No caso do artigo 32, crime de maus-tratos aos animais, observa-se primeiramente a falta de precisão diante dos termos adotados para os núcleos das condutas lesivas ao bem jurídico em comento, mencionando-se ainda o desleixo do legislador ao equiparar no mesmo tipo condutas de “ferir” e “mutilar”, com o mesmo patamar de penas.
O fato é que, na ausência da definição legal, esta vem sendo suprida atualmente por uma norma infralegal: a Resolução n. 1.236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), que, em seu art. 5º, elenca um rol de condutas consideradas como maus-tratos, incluindo nestas as condutas omissivas, tais como abandonar animal, deixá-lo sem água e alimentação adequada, deixar de buscar assistência veterinária quando necessária, etc.
Ressalta-se, ainda, que a supramencionada resolução traz uma definição para os núcleos do tipo penal, em seu art. 2º, incisos II, III e IV:
Art. 2º Para os fins desta Resolução, devem ser consideradas as seguintes definições: (...) II - maus-tratos: qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais; III - crueldade: qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais; IV - abuso: qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado, incorreto de animais, causando prejuízos de ordem física e/ou psicológica, incluindo os atos caracterizados como abuso sexual. (...)
Desta forma, depreende-se que atos de crueldade só podem ser perpetrados de forma comissiva, por meio de dolo direto, diferentemente dos atos de abuso e maus-tratos, que consistem em toda conduta comissiva e omissiva praticada contra os animais. Não obstante, é importante esclarecer que a supracitada Resolução, apesar de desprovida de valor penal, serve como baliza norteadora para delimitar quais condutas podem ser consideradas maus-tratos no âmbito criminal.
Com relação ao §1º, § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos, nota-se que a expressão final “quando existirem recursos alterativos” simplesmente deixa atípica a conduta de maltratar um animal em pesquisas ou testes considerados (por quem?) como procedimentos em que inexistam outras formas de fazê-los que não pelo uso de um ou de milhões de animais.
Irrazoável tal disposição legal, principalmente tendo em vista que atualmente já existem métodos alternativos muito mais eficazes e tecnologia o suficiente para impulsionar o desenvolvimento da ciência, e com isso abandonar em definitivo o uso de animais, uma exploração totalmente desnecessária e imoral.
Ainda com relação ao crime de maus-tratos, menciona-se a inclusão, pela Lei Sansão (Lei 14.064/20), do §1º-A no art. 32: “Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”.
Desta forma, a alteração permitiu a retirada do crime de maus-tratos contra cães e gatos da esfera dos Juizados Especiais Criminais e do terreno dos crimes de menor potencial ofensivo, deixando de permitir a suspensão condicional do processo, composição civil dos danos e a transação penal.
Observa-se que o legislador privilegiou as espécies de cães e gatos em detrimento de centenas de milhares de outras, igualmente sencientes e, portanto, merecedoras da mesma tutela penal. Revela-se frágil e vergonhosa a suposta justificativa de que estas espécies são as que mais sofrem maus-tratos, considerando que o Brasil é o país que mais trafica animais silvestres no mundo.
Mostra-se, desta forma, inaceitável o descaso do legislador, tendo em vista a imprescindibilidade de que o ordenamento jurídico promova a tutela penal da maneira mais precisa e eficaz, de forma a coibir as condutas que lesem a dignidade animal como um todo, pra além de cães e gatos, espécies que se encontram nesta bolha de proteção do ser humano, como as únicas dignos de piedade e proteção.
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Referências bibliográficas
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA – CFMV. Resolução n. 1.236, de 26 de outubro de 2018. Define e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais vertebrados, dispõe sobre a conduta de médicos veterinários e zootecnistas e dá outras providências. Disponível em:
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/47542721/do1-2018-10-29-resolucao-n-1-236-de-26-de-outubro-de-2018-47542637. Acesso em: 10abr2024.