Proteção jurídica dos animais comunitários: um “direito-dever” fundamental
Segundo o último índice divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, as populações de cães e gatos no Brasil eram estimadas em 54 milhões e 24 milhões, respectivamente. A Organização Mundial de Saúde estima que no Brasil já existem mais de 30 milhões de animais em situação de rua, em abandono, sendo em torno de 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães.
O descontrole populacional traz consequências para o bem-estar animal, mas também é um problema climático, de segurança pública, social e econômico, com reflexos na saúde única – animal, humana e ambiental.
Os animais em situação de rua, em completo abandono, procuram áreas com oferta de alimento e abrigo, geralmente áreas urbanas com alta densidade populacional. Entretanto, por estarem em vulnerabilidade, vivem em péssimas condições de saúde e bem-estar, expostos a abusos, agressões, fome, sede, acidentes, condições climáticas adversas e doenças. Animais em abandono tornam-se fonte de zoonoses, expondo a população a riscos sanitários.
O impacto ambiental do descontrole populacional de cães e gatos também está no centro dos debates. Com base na média de emissões de carbono de aproximadamente 770 kg CO2 por ano para cães e cerca de 310 kg CO2 por ano para gatos, estima-se que a pegada de carbono desses animais de estimação no país seja de aproximadamente 49 milhões de toneladas de CO2 por ano. Se o Brasil não adotar um manejo populacional adequado, prevê-se que a população de cães chegue a 70 milhões e a de gatos a 41 milhões até 2030. Nesse cenário, estima-se que as emissões anuais aumentem para 66 milhões de toneladas de CO2.
Nesse contexto, diante do altíssimo número de animais em abandono e vulnerabilidade, entra em cena o princípio da participação comunitária implicitamente contido no artigo 225 da CF/88 e o imperioso desenvolvimento de políticas públicas de proteção a animais comunitários. Não existe outra forma de lidar, de forma ética, com o problema do abandono e do descontrole populacional de cães e gatos no Brasil.
Por “animal comunitário” entende-se o cão ou gato que vive em situação de rua e que, apesar de não ter um responsável único e definido, estabelece com membros da comunidade em que vive vínculos de dependência e manutenção. Deve ser vacinado, esterilizado, identificado e devolvido ao local que habita junto à comunidade de origem, lá recebendo cuidados básicos junto a membros da comunidade.
É cada vez mais comum encontrar cães ou gatos comunitários em escolas e instituições de ensino superior; em condomínios; em órgãos e entidades da Administração Pública, direta e indireta; e nas ruas das nossas cidades, recebendo alimento, água, abrigo e cuidados veterinários básicos de membros da comunidade humana.
Muita gente, porém, é contra a existência de animais comunitários. Ou por possuir uma visão romântica da realidade que defende que “todos os cães e gatos” merecem um lar – visão romântica sim, já que se trata de algo irrealizável na conjuntura do abandono e descontrole populacional de cães e gatos no Brasil atual -, ou simplesmente por falta de empatia e indiferença em face do sofrimento animal. Mas a proteção dos animais comunitários é um direito dos animais e um dever do Estado brasileiro e da nossa coletividade humana. É uma política pública de base constitucional. Gostem ou não.
Infelizmente, ainda inexiste um marco legal protetivo de animais comunitários em âmbito federal, que sirva como norma geral que possa ser regulamentada na especificidade regional e local pelos estados e municípios. O fato é que, em se tratando de proteção da fauna, os Estados e o DF podem exercer a competência legislativa concorrente (art. 24, VI, da CF).
Diversos estados brasileiros já possuem legislação regulamentando e reconhecendo os animais comunitários e seus cuidadores. Os Municípios também podem legislar com base no interesse local ou mesmo suplementar a legislação estadual porventura existente, regulamentando-a de acordo com as peculiaridades locais.
Na grande maioria das vezes, as leis estaduais existentes de proteção a animais comunitários carecem de regulamentação em nível municipal, ou são muito vagas, gerando problemas ou conflitos não regulados ou previstos na lei estadual.
Muitas vezes deixam para os tutores comunitários um pesado ônus referente à vacinação dos animais, quando também não repassam o ônus da esterilização. Muitas vezes esquecem dos gatos comunitários. E quase que a totalidade das leis existentes não dá a devida importância para a educação e informação da comunidade e dos próprios cuidadores comunitários, sobre os direitos e deveres que decorrem dessa relação.
A proteção jurídica dos animais comunitários é um direito-dever fundamental. Na dimensão do direito, trata-se de um “direito fundamental à proteção” cujos titulares são os animais domésticos em situação de rua, forte no mandamento constitucional anticrueldade animal e no princípio da dignidade animal (art. 225, §1º, VII, parte final, da CF).
Esse “direito fundamental à proteção” abrange uma gama de interesses fundamentais dos animais comunitários, dentre os quais: (a) vida livre; (b) acesso à água e alimento; (c) abrigamento adequado; (d) manutenção no local em que habitam; (e) manutenção dos vínculos de dependência desenvolvidos com os membros da comunidade; (f) saúde animal básica (castração, vacinações, atendimentos regulares e de emergência, sem ônus para os cuidadores comunitários).
Na dimensão do dever é tanto um dever de proteção do Estado, direcionado ao Poder Público em todos os níveis federativos, quanto um dever fundamental direcionado à coletividade em geral, forte no art. 225, caput, e §1º, VII, parte final, da CF, que pressupõe que o Estado e a sociedade devem andar juntos na defesa dos interesses ambientais e no desenvolvimento de uma política ambiental adequada, o que abrange a tutela dos animais.
Nessa dimensão, o dever em questão exige políticas públicas de proteção a animais comunitários na esfera do Executivo, nos três níveis federativos; exige regulação jurídica adequada, sobretudo na esfera do legislativo, observadas as regras constitucionais de competência legislativa; exige controle das inconstitucionalidades/ilegalidades, sejam por ação ou omissão na esfera judicial; e exige dos particulares em geral, envolvimento, participação, respeito, e colaboração na proteção dos animais comunitários.
Em 2023, o Departamento de Proteção, Defesa e Direito dos Animais, da Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima iniciou uma série de diálogos com a sociedade civil, movimentos sociais e autoridades governamentais e do judiciário para a elaboração do Programa Nacional de Manejo Populacional Ético de Cães e Gatos.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, o manejo populacional é um conceito mais amplo do que a mera castração. Envolve critérios científicos, censo animal, diagnóstico, elaboração de um plano, implementação de leis, combate aos maus-tratos, educação para guarda responsável, identificação do animal, saúde animal.
No Brasil, a regulamentação de programas de manejo populacional ético de cães e gatos e de proteção de “animais comunitários” está em sintonia com a Constituição Federal e com nossa legislação infraconstitucional. Configura uma política pública necessária e promissora para o manejo e controle populacional ético dos animais em vulnerabilidade nas cidades, com melhorias significativas em termos de saúde única.
Um bom programa de políticas públicas de proteção aos animais comunitários é uma ferramenta política importante para o manejo populacional ético de cães e gatos em situação de rua, para a promoção do bem-estar e respeito aos direitos animais, para obtenção de resultados mais eficazes em matéria de saúde única, e participação comunitária.