Crime de maus-tratos a cães e gatos
A Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020, nomeada Lei Sansão, modificou o artigo 32 da Lei nº 9.605/98 para elevar as penas cominadas ao crime de maus-tratos aos animais quando se tratar de cão ou gato.
Refletindo a singular relação entre homens e estes animais em especial, adveio após triste caso de maltrato animal envolvendo o pitbull Sansão que foi amordaçado com arame e teve as patas traseiras decepadas a golpes de facão por um vizinho Júlio César Santos de Souza, aos 6 de julho de 2020, em Confins, Minas Gerais [1].
Verdade é que, nada obstante a Declaração Universal dos Direitos dos Animais prescrever os maus-tratos em seu art. 3º, 1 – “Nenhum animal deve ser submetido a maus-tratos ou atos cruéis.” – a tradição tem imposto uma perspectiva depreciada da crueldade animal, vislumbrando-a tão somente como um crime menor.
Especificamente no Brasil, em que pese a tutela jurídica dos animais alcançar status constitucional em 1988, no art. 225 que coíbe “as práticas que (...) submetam os animais à crueldade”, não é infrequente deparar-se com casos de tortura e morte de animais não humanos, expondo sofrimentos que, todavia, não sensibilizam o Direito, sobretudo o Direito Penal. Destarte, o crime de maus-tratos contra os animais não ostenta grandeza no bojo do ordenamento jurídico sendo considerado em sua quase totalidade, infração de menor potencial ofensivo.
Tal quadra entretanto, “parece” ser excepcionada diante dos animais que mais comumente são adotados como de estimação e estabelecem relação de intimidade com os seres humanos, ou seja, os cães e gatos.
Neste sentido, a Lei Sansão que, além de original medida de vedação da guarda, oferta substancial aumento de pena: de detenção, de três meses a um ano para reclusão, de dois a cinco anos. Realmente, animais para companhia, e, saliente-se, canídeos e felídeos, despertam compaixão e desfrutam de maior proteção legal que outros animais.
Se originalmente, todos os animais eram selvagens, cerca de 15.000 anos atrás, nossos ancestrais caçadores-coletores alcançaram a primeira domesticação: o cão. Supõe-se que, lobos cinzentos começaram a seguir bandos de caçadores-coletores para capturar presas mortas e roedores atraídos pela comida e consumir detritos despejados pelos humanos. Mais protegidos contra predadores maiores, tornaram-se paulatinamente mais habituados ao contato humano, num novo nicho ecológico. Com o instinto de matilha, encaixaram-se na família humana, sujeitos à hierarquia de membros dominantes e submissos, mas com grande habilidade em ler gestos humanos[2].
No que concerne ao gato, dados históricos mostram gatos como animais de estimação desde 4.000 a.C. no Egito, a partir de pinturas em cenas domésticas em paredes dos templos. Mais adiante, por volta de 3.500 a.C., os gatos tornam-se objetos de adoração e, por conseguinte, passíveis de sacrifício. Assim, também eram produzidos aos milhões para serem mumificados.
Se as ameaças de roedores aos grãos armazenados pelos humanos, apontam que, os gatos eram vantajosos na caça destes pequenos animais, no século XIII, foram associados à feitiçaria pela Igreja Católica e torturados sistematicamente, situação revertida apenas no século XVIII, quando a Rainha Victoria demonstra ser grande amante dos felinos. E hoje, e.g., há mais gatos compartilhando lares americanos que cães, num total de mais de meio bilhão de gatos em todo o mundo[3].
E, afinal, o que explica este especialíssimo liame que envolve a relação de cães e gatos com os respectivos tutores? Definidos como animais com os quais convivemos e que não têm função aparente, há consenso sobre uma troca de afetividade permanente e um apoio emocional com contribuição significativa para o bem-estar advindo dos animais usados para companhia, o chamado “efeito animal”[4].
Aliás, a Antrozoologia diagnosticou uma nova interação entre animais humanos e não humanos, a família multiespécie, conceituada como aquela que agrupa membros humanos e também, seus animais de estimação, isto é, abarca os animais usados para companhia como membros da comunidade familiar[5].
Inobstante tal ilação, cães e gatos não detêm qualquer status diverso de coisa. Segundo a legislação brasileira, mister recordar-se que estão eles classificados como bens: os animais domésticos seriam bens semoventes submetidos aos ditames dos direitos reais, consoante o Código Civil (art. 82). Vale sublinhar que, esta coisificação pode ruir na revisão do estatuto civil. O anteprojeto de Código Civil reconhece que os animais são seres vivos sencientes. Assim:
Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
§1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais;
§2º Da relação afetiva, entre humanos e animais, pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.
O sentido e o alcance deste artigo e expressões, se aprovadas, dependerão, contudo, de uma árdua hermenêutica jurídica que necessita estar alinhada à ideia de Direitos Animais como questão de Justiça Social, i.e., defesa de quaisquer animais – humanos ou não humanos – em condição de vulnerabilidade, opressão, dominação, exploração e, violência[6].
Tal tarefa redunda hercúlea na medida em que deverá abarcar todos os animais não humanos em diversificados empregos – e.g., animais usados para o entretenimento, animais usados para o trabalho, animais usados para alimentação, animais usados na experimentação científica e, outros animais de companhia – bem como deverá estender seus efeitos para outros campos do Direito – Direito Contratual, Direito de Família e Sucessões, Direito Consumerista, Responsabilidade Civil, Direito Administrativo e, inclusive o Direito Penal.
Independentemente da votação da proposta para atualização do texto do Código Civil, que pode robustecer a defesa animal, fato é que o art. 32 da Lei nº 9.605/98, sobretudo com a nova redação da Lei Sansão que inseriu um par.1º - A no deduzido versículo – Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda. – já ostenta norma protetiva de Direito Animal apta para reprimir os atentados contra os animais, impondo sua sensível aplicação.
Assim, para além da senciência regulada no novel Código Civil ou da “experiência consciente” fixada na recente Declaração de Nova York sobre Consciência Animal, de 19 de abril de 2024, verdade é que a criminalização do maltrato animal, qualificada em face de cães e gatos, já preconiza que o bem jurídico tutelado constitui-se pela integridade física e mental do animal como um ser vivo, por si só objeto de proteção. Noutras palavras, seriam eles titulares de direitos, sofrendo as consequências do fato típico, perfazendo-se como vítimas do crime de maus-tratos animais porque detentores do bem jurídico protegido penalmente[7].
Observe, contudo, que o deduzido versículo 32, não criminaliza, de forma autônoma, a morte do animal, recebida somente como causa de aumento de pena no par. 2º: A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. Noutros termos, o delito de maus-tratos a animais consiste em ação de maltratar, praticar violência, mediante ações ou omissões, que acarretem ao animal dor ou sofrimento – o tipo objetivo se utiliza dos verbos praticar, ferir e mutilar –, majorado quando do óbito do animal. A morte do animal não humano como injusto típico estará, em verdade, proscrita no artigo 29 da mesma lei regente, com as restrições do artigo 37[8].
O tratar mal, a deliberada ação de causar dor e sofrimento, o “mau uso” do animal perfazem comportamento doloso, inexistindo na prescrição típica previsão de modalidade culposa (negligência, imprudência ou imperícia). A falta de previsibilidade de punição da conduta culposa – hipótese que deveria ser cogitada numa alteração legislativa – implica o enquadramento típico somente se provada a vontade da ação orientada ao ato de maus-tratos, seja com dolo direto ou eventual.
Enfim, ressalte-se que, em simples leitura do dispositivo penal, o art. 32 da LCA, trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. E, recordando-se que a Lei n.º 9.605/98, em seu art. 3º, adotou expressamente o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica (c.c. art. 225, par. 3º da Constituição Federal), pode ser sujeito ativo tanto a pessoa física como jurídica, medida a ser aplaudida, mas carente de efetiva aplicação, nesta seara.[9]
Não se desconsiderando a imprescindibilidade de uma evolução legislativa atrelada à conscientização dos Direitos dos Animais, para todas as espécies nas mais diferenciadas formas de exploração, realmente o maltrato de cães e, também gatos de estimação, na dita família multiespécie, é conduta que provoca indiscutível comoção e indignação. Que tal sentimento de revolta e injustiça espraie-se indefinidamente pela sociedade.
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Referências bibliográficas
[1] CASO SANSÃO: MPMG oferece denúncia contra homem acusado de mutilar cão em Confins. Disponível em: MPMG oferece denúncia contra homem acusado de mutilar cão em Confins | Portal Acesso em: 30 abr. 2024.
[2] FOGLE, B. Guia ilustrado Zahar: cães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
[3] HERZOG, H. Biology, culture, and the origins of pet-keeping. Animal Behavior and Cognition, v. 1, n. 3, p. 296-308, 2014. Disponível em: doi: 10.12966/abc.08.06.2014. Acesso em: 30 abr. 2024.
[4] HERZOG, 2014.
[5] RODRIGUES, T. D.; FLAIN, V. S.; GEISSLER, A. C. J. O animal de estimação sob a perspectiva da tutela jurisdicional: análise das decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 11, n. 22, p. 83-119, maio/ago. 2016.
[6] JONES ,Robert C. Animal rights is a social justice issue. 2015/10/02. Contemporary Justice Review. Routledge. Disponível em: doi: 10.1080/10282580.2015.1093689. Acesso em: 30 abr. 2024.
[7] RÍOS CORBACHO, J. M. Los animales como posibles sujetos de derecho penal. Algunas referencias sobre los artículos 631 (suelta de animales feroces o dañinos) y 632 (malos tratos crueles) del código penal español. Revista de 32 Derecho penal de la Universidad de Friburg. Disponível em: https://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/articulos/a_20080526_86. Acesso em: 30 abr. 2024.
[8] PRADO, L. R. Direito penal do ambiente: crimes ambientais (Lei 9.605/1998). 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[9] CASO JOCA: Companhia aérea será investigada por maus tratos após cachorro morrer em viagem. Disponível em: Companhia aérea será investigada por maus tratos após cachorro morrer em viagem | CNN Brasil. Acesso em: 30 abr. 2024.